● Tema: enaltecimento da mulher amada.
●
Assunto: descrição de uma natureza
campestre aprazível, apenas possível pela presença da mulher amada; de
contrário teria o efeito oposto no sujeito: a natureza entristecê-lo-ia.
● Estrutura interna
▪ 1.ª
parte (vv. 1-12) – Descrição de uma natureza idealizada (campestre e
pastoril) ®
o sujeito convida Marília a admirar este cenário idílico, bucólico, harmonioso,
alegre suave:
● NOTAS:
1.ª) Trata-se de um quadro que “obedece” às características do locus amoenus clássico, sintetizado nas duas
exclamações do verso 12: “Que alegre campo! Que manhã tão clara!”.
No entanto, esta
descrição dinâmica não é neutra, há um clima de sensualidade que percorre toda
esta 1.ª parte. Marília é convidada, pelo sujeito poético e em conjunto com
ele, a admirar um quadro da Natureza que convida ao amor: “Incitam nossos
ósculos ardentes”, “o rouxinol suspira”, “a abelhinha sussurrando”. Os dois
amantes deverão integrar-se no ambiente festivo e sensual da Natureza.
2.ª) Por outro lado, trata-se de um
quadro bucólico:
. a luminosidade das águas do Tejo
deslizando suavemente;
. a brisa leve e
acariciadora, graciosamente personificada na imagem mitológica dos Zéfiros a
brincar brandamente com as flores;
. as flores, as borboletas,
o rouxinol, a abelhinha;
. as flautas dos pastores,
cujo som ameno condiz com a simplicidade dos pastores e do cenário campestre;
. as sensações auditivas,
visuais e tácteis;
. os Amores com os seus
beijos apaixonados;
. a natureza harmoniosa e
idílica:
- som das
flautas;
- sorrir do
Tejo e o brincar dos Zéfiros;
- borboletas de
mil cores;
- suspiros do
rouxinol e murmúrios da abelhinha;
- a harmonia entre a natureza e o estado de alma do sujeito poético,
pelo menos enquanto vir Marília.
3.ª) São vários os recursos expressivos
que sustentam a descrição da Natureza:
. sensações:
– visuais: olha, olha, vê;
– auditivas: as flautas dos
pastores soam;
“o rouxinol suspira”;
“nos ares sussurrando”;
– táteis: “... não sentes / Os Zéfiros brincar...”;
“Vê como ali beijando-se...”;
“Incitam nossos ósculos...”;
. personificação do Tejo, do rouxinol, das
borboletas e da abelhinha;. verbos no
imperativo (olha, olha, olha, vê) que
convidam a “saborear” o espectáculo da Natureza;
. emprego do
diminutivo abelhinha marcando a
subjectividade do sujeito;
. anáforas (“Olha,
Marília...” / “Olha o Tejo...”; “Ora nas folhas (...) / Ora nos ares...”),
reforçando o carácter dinâmico da descrição;
. hipérbole: “As vagas borboletas de mil cores!”;
“Mais tristeza que a morte...”;
. hipérbato: “Vê como ali beijando-se os Amores”;
. metáfora hiperbólica: “ósculos ardentes” (v.
6);
. substantivação: “as inocentes” (v. 7);
. adjetivação;
. intensificação: “Que”; ”tão”;
. frases elípticas e
exclamativas (“Que alegre campo! Que manhã tão clara!”) transmitindo a posição
do sujeito poético face ao quadro descrito.
▪ 2.ª
parte (vv. 13-14) – O sujeito poético alerta Marília para a tristeza que a
Natureza lhe causará se não a vir.
● Conclusões:
. a presença da amada
(Marília) é imprescindível para a felicidade do sujeito poético no meio da
Natureza;
. a Natureza é vista como um
cenário harmónico, perfeito, denominado locus amoenus, propício à partilha
amorosa; a pequena nota romântica é diluída na profusão da amenidade.
● NOTAS:
1.ª) A relação entre a Natureza e o
estado de alma do sujeito assenta em alguma incerteza:
A
relação entre o sujeito e a Natureza é sempre múltipla:
– ou a Natureza
reflecte, como um espelho, o estado de espírito do sujeito;
– ou contrasta com o sujeito, pois nela ele não encontra a felicidade
de outrora, alterada que está a ligação amorosa;
– ou comunga o estado de espírito, partilhando os sentimentos dos amantes.
2.ª) Os sentimentos dominantes no poema
são a alegria (1.ª parte) e a tristeza (2.ª parte). Assim sendo, as
duas partes do poema articulam-se por uma relação de oposição, marcada pela
conjunção adversativa mas: se a amada está presente, tudo é belo; se a amada não está
presente, tudo causa tristeza. Essa oposição está exemplificada nos dois
últimos versos pelo contraste entre a manhã (luz) e a noite (obscuridade).
3.ª) No que diz respeito aos recursos
expressivos, temos:
– o abandono do
discurso descritivo, predominante na 1.ª parte;
– o emprego exclusivo dos discursos de 1.ª e 2.ª pessoas, marcando a
relação do sujeito com a mulher amada;
– a utilização da interjeição e da exclamação, marcando o carácter
subjectivo (romântico) da linguagem;
– o trocadilho: “vês
(...) não te vira”;
– a hipérbole e a metáfora: “Mais
tristeza que a morte me causara”.
4.ª) Estão presentes no poema “dois
tipos de descrição”:
® Clássica:
. vocabulário e construção
gramatical utilizada: latinismos cadentes
(harmoniosos), Zéfiros (ventos
brandos do ocidente), Amores (filhos
de Vénus e Marte), ósculos ardentes
(beijos intensos), inocentes (inofensivas),
vagas (errantes, vagueantes);
. uso do pretérito
mais-que-perfeito simples (vira, causara)
equivalente ao imperfeito do conjuntivo (se
eu não te visse) e ao condicional simples (mais tristeza me causaria).
® Romântica:
. pontuação;
. abundância de exclamações (vv. 1-2,
5-6, 6-7, 12, 13);
. interjeição “ah” (v. 13);
. vocabulário próprio da
sensibilidade romântica: “o rouxinol
suspira” (v. 9), “morte” (v. 14).
● Características
● Linguagem e recursos
poético-estilísticos
A forma
do poema (nível fónico) é nitidamente
clássica: um soneto, com versos decassilábicos heróicos, de ritmo
binário, combinados com alguns sáficos (vv. 2, 9-12), em que o ritmo surge mais
entrecortado; rima interpolada, emparelhada e cruzada,
segundo o esquema ABBA / ABBA / CDC / DCD, consoante (“pastores”/”flores”),
grave ou feminina (“cadentes”/”sentes”), pobre (“pastores”/”flores”) e rica (“cadentes”/”sentes”).
Observem-se também os exemplos de transporte nos
versos 3-4, 5-6, e as aliterações em pl (v. 7) a sugerir o voo das borboletas e em s e t no verso 11 a
sugerir o ruído do voo da abelha.
A nível morfossintáctico,
os verbos encontram-se maioritariamente no presente
a traduzir um quadro estático, observado simultaneamente pelo emissor e pelo
receptor. Os verbos, no geral intransitivos, revestem-se do aspecto durativo, a
traduzir a durabilidade das acções e contrastam com os transitivos dos últimos
dois versos a marcar a súbita mudança de sensações. O imperativo (“Olha”,
“Vê”) traduz o convite do sujeito poético à amada para contemplar a Natureza
harmoniosa, alegre e suave. Neste contexto ainda, a presença do verbo “ver” é
muito significativa. Além de conferir visualismo à mensagem do poema, remete
para a noção de que o amor nasce da visão e de que a presença da amada é
necessária para que a natureza tenha valor para os amantes.
É notório também um tom coloquial no poema, traduzido pela função
fática e apelativa da linguagem veiculadas pelo vocativo (“Marília”),
pela frase interrogativa “não sentes?”, pelos imperativos “olha”
(repetido três vezes), “vê” e pelo designativo “ei-las”. O tom coloquial
é também acentuado pela função expressiva patente nas exclamações.
Na realidade, o poema é um monólogo que parece um diálogo. As frases exclamativas/apelativas
e interrogativas traduzem também um intimismo afectivo e sensorial entre
o sujeito poético que fala e a sua muda interlocutora.
Os substantivos (o Tejo
a sorrir, os ventos brandos, as flores, as abelhas,
as flautas e os pastores) e os adjectivos traduzem
um quadro bucólico, uma natureza harmoniosa e idílica – “locus amoenus”; “aurea
mediocritas”.
O vocabulário é latinizante (cadentes, ósculos, vagas,
Zéfiros), traduzindo a erudição do poeta e a sua formação clássica. A anáfora “Ora (...) / Ora...” evidencia os dois movimentos
opostos da abelha; “Olha (...) / Olha” traduz o convite a Marília.
A conjunção adversativa “Mas” e a interjeição “ah” marcam a mudança da 1.ª para a
2.ª parte numa relação de oposição e prenunciam o sofrimento do sujeito lírico
perante a ausência da mulher amada.
A nível semântico, a apóstrofe
inicial marca a importância do destinatário da mensagem. Na descrição da Natureza harmoniosa, suave,
alegre e idílica, destacam-se as sensações visuais, tácteis
e auditivas, as personificações
(Tejo, Zéfiros, Amores), traduzindo a subjectividade do discurso e a sua
formação clássica, e outras nos versos 9 e 11, as exclamações
a traduzirem a exaltação da alegria festiva da Natureza – a exclamação do verso
13 traduz a situação dolorosa hipotética – e as interrogações,
sugerindo o tom coloquial da linguagem.
O diminutivo abelhinha sugere carinho.
Realcem-se ainda as hipérboles “borboletas de mil cores”, “ósculos
ardentes”, “Mais tristeza que a noite me causara” (comparação);
o trocadilho “vês (...) não te vira...” (v. 13).
●
Intertextualidade: “Olha, Marília...” e “A fermosura desta
fresca serra” (Camões)
▪ Estrutura
interna
1.ª parte (2 quadras) – Descrição da Natureza, concretizada (através
da acumulação de frases nominais) de uma forma mais objectiva que no caso do
soneto de Bocage. O quadro aponta também para a Natureza de tipo clássico
(“locus amoenus”): beleza, formosura, frescura, verdura, calma.
2.ª parte (2 tercetos) – Relação do sujeito com a amada e consequente
visão da Natureza: sem a presença dela, o sujeito poético fica insensível à
beleza da Natureza.
▪ Elementos
que compõem a paisagem
Olha, Marília, as
flautas dos pastores
|
A fermosura desta
fresca serra
|
Flautas dos pastores
O Tejo As flores As plantas As borboletas O arbusto O rouxino A abelhinha
|
A serra Os castanheiros Os ribeiros O mar A terra O esconder do so Os gados As nuvens
|
locus amoenus
|
locus
amoenus
|
▪ Diferenças
entre os sonetos
sonetos
elementos
|
Bocage
|
Camões
|
Elementos se-lecionados
|
. espaço mais restrito
. presença de elementos humanos
. rouxinol como
elemento perturbador
|
. espaço mais alargado: presença
dos quatro elementos primordiais ® terra, água, ar e fogo
|
Qualidades da natureza
|
. harmoniosa e luminosa: destaque
para o convite ao amor
|
. formosura, calma, variedade e
raridade: destaque para a beleza
|
Adjectivação
|
. cadentes, ardentes, vagas, alegre,
clara
. menor quantidade de adjectivos: destaque para o sentimento
do amor
|
. fresca, verdes, manso, rouco, estranha,
derradeiros, brandos, rara, mor
. maior quantidade de adjectivos;
destaque para as características dos objectos, à maneira petrarquista
|
Pontuação
|
. exclamações, interrogação: destaque
para a subjectividade
|
. vírgula, ponto e vírgula, ponto
final: discurso mais objectivo
|
Funções da linguagem
|
. apelativa (predomínio), expressiva
e poética: mensagem mais voltada para o destinatário; domínio do sentimento
|
. poética e emotiva: mensagem
mais voltada para a realidade e para o sujeito poético; domínio da razão
|
▪ Semelhanças
entre os sonetos
sonetos
elementos
|
Bocage
|
Camões
|
Construção do quadro
|
. dinâmico, com evidência para as
acções das pessoas, dos entes mitológicos e das aves
|
. estático: frases nominais,
substantivação do infinitivo verbal; forte visualismo da serra ao mar
|
Cenário
|
. locus amoenus e leve
presença do locus horrendus (o suspirar do rouxinol)
|
. locus amoenus e leve
presença do locus horrendus (o rouco som do mar)
|
Aliterações
|
. 2.º verso: monossílabos, dissílabos
e trissílabos; quase onomatopaico, a sugerir o som próprio das flautas; a
repetição dos fonemas /pl/ (v. 7) a sugerir o voo das borboletas; a repetição
do fonema /s/ (v. 11) a sugerir o ruído do esvoaçar da abelha
|
. a repetição do fonema /f/ (v.
1) a sugerir frescura; repetição do fonema /t/ (v. 4) a sugerir uma afirmação
segura
|
Personificações
|
. do Tejo, dos Zéfiros, dos Amores
e do rouxinol
|
. animização dos ribeiros e das nuvens
|
Anáforas
|
. Olha, Olha; Ora, Ora
|
. Sem ti. Sem ti
|
Elementos ro-mânticos
|
. a natureza é um estado de alma
. a pontuação subjectiva e livre
. a presença do
rouxinol e da noite
. o amor sensual
|
. a natureza é um estado de alma
|
Sentimentos
|
. amor (mais sensual)
. alegria / tristeza
|
. amor
. tristeza
|
▪ Síntese
SEMELHANÇAS
1.
Nível temático
. Descrição da Natureza:
“locus amoenus”.
. A personificação dos
elementos descritos.
. Relação sujeito poético
/ mulher / Natureza (de influência petrarquista).
2.
Nível formal
. Uso do soneto e do verso
decassilábico.
. Equilíbrio na construção
frásica de cariz latinizante.
. O processo antitético.
DIFERENÇAS
1.
Nível temático
Bocage
|
Camões
|
. Descrição da Natureza apoiada numa valorização da
sensualidade e da subjetividade.
. Convite ao amor, evidenciando a sua componente sensual e
reforçando o papel ativo do sujeito poético na relação amorosa.
|
. Descrição objetiva da
Natureza.
. O sujeito poético é um ser passivo face ao amor, totalmente
dependente da amada.
|
2.
Nível formal
. Tom oralizante criado
através do emprego de:
–
imperativos;
–
exclamações;
–
diminutivos;
–
interrogações.
As
características diferenciadoras constituem as marcas românticas da poesia de Bocage.