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sexta-feira, 16 de agosto de 2024

A escola do século XIX em imagens - XII


Eduard Ritter – Sala de aula no Tirol (c. 1840)

    Eis, em pleno século XIX, uma sala de aula nada convencional: em vez do mobiliário habitual – carteiras, lousas, secretária, estrado, mapas na parede – o que vemos é um aposento da casa do professor, com quadros na parede e móveis domésticos, sem faltar o pormenor da fruta que o docente vai depenicando durante a aula.
    Mais curiosa ainda é a forma como as crianças surgem divididas em dois grupos contrastantes: à esquerda, junto ao professor, três meninas aplicadas apresentam os seus trabalhos ao professor, enquanto o grupo mais numeroso dos rapazes, à direita, se entretêm com diversas tropelias. O mestre, já idoso, concentra-se nas suas alunas predilectas e no enorme cachimbo que vai fumando, aparentemente alheio a desordem que grassa lá para atrás. A indisciplina não é apenas, como aqui se vê, um problema do nosso tempo…
    Outra reflexão que este quadro nos sugere e que se mantém actual: como explicar que a indisciplina e os comportamentos disruptivos em geral surjam mais frequentemente associados, nas escolas, ao género masculino? Sendo esta uma realidade tanto empírica como estatisticamente demonstrável, o que leva a que os rapazes, de um modo geral, tendam a comportar-se pior na escola? Serão determinantes as características biológicas e psicológicas associadas a cada um dos géneros, as mesmas que levam a que também haja mais delinquentes, criminosos e presidiários entre os homens? Ou é a escola, da forma como tradicionalmente se organiza, que tende a valorizar determinados estereótipos atitudinais e comportamentais mais associados aos género feminino?
    Poderá ser um pouco de tudo isto, mas há um factor de natureza mais sociológica não menos relevante: antes da escolaridade ser obrigatória, eram quase só os rapazes que iam à escola. Numa família pobre ou mesmo remediada, era comum os rapazes estudarem pelo menos o tempo suficiente para aprenderem a ler e escrever, enquanto as suas irmãs ficavam em casa. E é quando começam a ser mandadas à escola que muitas raparigas, vendo nos estudos a possibilidade de ter uma vida diferente das suas mães e avós, e sabendo que ao primeiro sinal de insucesso serão retiradas da escola, não hesitam: agarram essa oportunidade com unhas e dentes…

Análise do poema "Olha, Marília, as flautas dos pastores", de Bocage

  Tema: enaltecimento da mulher amada.
 
 
Assunto: descrição de uma natureza campestre aprazível, apenas possível pela presença da mulher amada; de contrário teria o efeito oposto no sujeito: a natureza entristecê-lo-ia.
 
 
Estrutura interna


 
1.ª parte (vv. 1-12) – Descrição de uma natureza idealizada (campestre e pastoril) ® o sujeito convida Marília a admirar este cenário idílico, bucólico, harmonioso, alegre suave:

                 
 
NOTAS:
 
            1.ª) Trata-se de um quadro que “obedece” às características do locus amoenus clássico, sintetizado nas duas exclamações do verso 12: “Que alegre campo! Que manhã tão clara!”.
            No entanto, esta descrição dinâmica não é neutra, há um clima de sensualidade que percorre toda esta 1.ª parte. Marília é convidada, pelo sujeito poético e em conjunto com ele, a admirar um quadro da Natureza que convida ao amor: “Incitam nossos ósculos ardentes”, “o rouxinol suspira”, “a abelhinha sussurrando”. Os dois amantes deverão integrar-se no ambiente festivo e sensual da Natureza.
 
            2.ª) Por outro lado, trata-se de um quadro bucólico:
. a luminosidade das águas do Tejo deslizando suavemente;
. a brisa leve e acariciadora, graciosamente personificada na imagem mitológica dos Zéfiros a brincar brandamente com as flores;
. as flores, as borboletas, o rouxinol, a abelhinha;
. as flautas dos pastores, cujo som ameno condiz com a simplicidade dos pastores e do cenário campestre;
. as sensações auditivas, visuais e tácteis;
. os Amores com os seus beijos apaixonados;
. a natureza harmoniosa e idílica:
- som das flautas;
- sorrir do Tejo e o brincar dos Zéfiros;
- borboletas de mil cores;
- suspiros do rouxinol e murmúrios da abelhinha;
- a harmonia entre a natureza e o estado de alma do sujeito poético, pelo menos enquanto vir Marília.
 
            3.ª) São vários os recursos expressivos que sustentam a descrição da Natureza:
. sensações:
– visuais: olha, olha, vê;
– auditivas:   as flautas dos pastores soam;
“o rouxinol suspira”;
“nos ares sussurrando”;
– táteis:   “... não sentes / Os Zéfiros brincar...”;
“Vê como ali beijando-se...”;
“Incitam nossos ósculos...”;
. personificação do Tejo, do rouxinol, das borboletas e da abelhinha;. verbos no imperativo (olha, olha, olha, vê) que convidam a “saborear” o espectáculo da Natureza;
. emprego do diminutivo abelhinha marcando a subjectividade do sujeito;
. anáforas (“Olha, Marília...” / “Olha o Tejo...”; “Ora nas folhas (...) / Ora nos ares...”), reforçando o carácter dinâmico da descrição;
. hipérbole:   “As vagas borboletas de mil cores!”;
“Mais tristeza que a morte...”;
. hipérbato:   “Vê como ali beijando-se os Amores”;
. metáfora hiperbólica: “ósculos ardentes” (v. 6);
. substantivação: “as inocentes” (v. 7);
. adjetivação;
. intensificação: “Que”; ”tão”;
. frases elípticas e exclamativas (“Que alegre campo! Que manhã tão clara!”) transmitindo a posição do sujeito poético face ao quadro descrito.
 
 
2.ª parte (vv. 13-14) – O sujeito poético alerta Marília para a tristeza que a Natureza lhe causará se não a vir.
 
Conclusões:
. a presença da amada (Marília) é imprescindível para a felicidade do sujeito poético no meio da Natureza;
. a Natureza é vista como um cenário harmónico, perfeito, denominado locus amoenus, propício à partilha amorosa; a pequena nota romântica é diluída na profusão da amenidade.
 
 
NOTAS:
 
            1.ª) A relação entre a Natureza e o estado de alma do sujeito assenta em alguma incerteza:
            A relação entre o sujeito e a Natureza é sempre múltipla:
– ou a Natureza reflecte, como um espelho, o estado de espírito do sujeito;
– ou contrasta com o sujeito, pois nela ele não encontra a felicidade de outrora, alterada que está a ligação amorosa;
– ou comunga o estado de espírito, partilhando os sentimentos dos amantes.
 
            2.ª) Os sentimentos dominantes no poema são a alegria (1.ª parte) e a tristeza (2.ª parte). Assim sendo, as duas partes do poema articulam-se por uma relação de oposição, marcada pela conjunção adversativa mas: se a amada está presente, tudo é belo; se a amada não está presente, tudo causa tristeza. Essa oposição está exemplificada nos dois últimos versos pelo contraste entre a manhã (luz) e a noite (obscuridade).
 
            3.ª) No que diz respeito aos recursos expressivos, temos:
– o abandono do discurso descritivo, predominante na 1.ª parte;
– o emprego exclusivo dos discursos de 1.ª e 2.ª pessoas, marcando a relação do sujeito com a mulher amada;
– a utilização da interjeição e da exclamação, marcando o carácter subjectivo (romântico) da linguagem;
– o trocadilho: “vês (...) não te vira”;
– a hipérbole e a metáfora: “Mais tristeza que a morte me causara”.
 
            4.ª) Estão presentes no poema “dois tipos de descrição”:
® Clássica:
. vocabulário e construção gramatical utilizada: latinismos cadentes (harmoniosos), Zéfiros (ventos brandos do ocidente), Amores (filhos de Vénus e Marte), ósculos ardentes (beijos intensos), inocentes (inofensivas), vagas (errantes, vagueantes);
. uso do pretérito mais-que-perfeito simples (vira, causara) equivalente ao imperfeito do conjuntivo (se eu não te visse) e ao condicional simples (mais tristeza me causaria).
 
® Romântica:
. pontuação;
. abundância de exclamações (vv. 1-2, 5-6, 6-7, 12, 13);
. interjeição “ah” (v. 13);
. vocabulário próprio da sensibilidade romântica: “o rouxinol suspira” (v. 9), “morte” (v. 14).
 

Características


 
Linguagem e recursos poético-estilísticos
 
            A forma do poema (nível fónico) é nitidamente clássica: um soneto, com versos decassilábicos heróicos, de ritmo binário, combinados com alguns sáficos (vv. 2, 9-12), em que o ritmo surge mais entrecortado; rima interpolada, emparelhada e cruzada, segundo o esquema ABBA / ABBA / CDC / DCD, consoante (“pastores”/”flores”), grave ou feminina (“cadentes”/”sentes”), pobre (“pastores”/”flores”) e rica (“cadentes”/”sentes”). Observem-se também os exemplos de transporte nos versos 3-4, 5-6, e as aliterações em pl (v. 7) a sugerir o voo das borboletas e em s e t no verso 11 a sugerir o ruído do voo da abelha.
 
            A nível morfossintáctico, os verbos encontram-se maioritariamente no presente a traduzir um quadro estático, observado simultaneamente pelo emissor e pelo receptor. Os verbos, no geral intransitivos, revestem-se do aspecto durativo, a traduzir a durabilidade das acções e contrastam com os transitivos dos últimos dois versos a marcar a súbita mudança de sensações. O imperativo (“Olha”, “Vê”) traduz o convite do sujeito poético à amada para contemplar a Natureza harmoniosa, alegre e suave. Neste contexto ainda, a presença do verbo “ver” é muito significativa. Além de conferir visualismo à mensagem do poema, remete para a noção de que o amor nasce da visão e de que a presença da amada é necessária para que a natureza tenha valor para os amantes.
            É notório também um tom coloquial no poema, traduzido pela função fática e apelativa da linguagem veiculadas pelo vocativo (“Marília”), pela frase interrogativa “não sentes?”, pelos imperativos “olha” (repetido três vezes), “vê” e pelo designativo “ei-las”. O tom coloquial é também acentuado pela função expressiva patente nas exclamações. Na realidade, o poema é um monólogo que parece um diálogo. As frases exclamativas/apelativas e interrogativas traduzem também um intimismo afectivo e sensorial entre o sujeito poético que fala e a sua muda interlocutora.
            Os substantivos (o Tejo a sorrir, os ventos brandos, as flores, as abelhas, as flautas e os pastores) e os adjectivos traduzem um quadro bucólico, uma natureza harmoniosa e idílica – “locus amoenus”; “aurea mediocritas”.
            O vocabulário é latinizante (cadentes, ósculos, vagas, Zéfiros), traduzindo a erudição do poeta e a sua formação clássica. A anáfora “Ora (...) / Ora...” evidencia os dois movimentos opostos da abelha; “Olha (...) / Olha” traduz o convite a Marília.
            A conjunção adversativaMas” e a interjeiçãoah” marcam a mudança da 1.ª para a 2.ª parte numa relação de oposição e prenunciam o sofrimento do sujeito lírico perante a ausência da mulher amada.

            A nível semântico, a apóstrofe inicial marca a importância do destinatário da mensagem.  Na descrição da Natureza harmoniosa,  suave,  alegre e idílica,  destacam-se as sensações visuais, tácteis e auditivas, as personificações (Tejo, Zéfiros, Amores), traduzindo a subjectividade do discurso e a sua formação clássica, e outras nos versos 9 e 11, as exclamações a traduzirem a exaltação da alegria festiva da Natureza – a exclamação do verso 13 traduz a situação dolorosa hipotética – e as interrogações, sugerindo o tom coloquial da linguagem.
            O diminutivo abelhinha sugere carinho.
            Realcem-se ainda as hipérboles “borboletas de mil cores”, “ósculos ardentes”, “Mais tristeza que a noite me causara” (comparação); o trocadilho “vês (...) não te vira...” (v. 13).

 
Intertextualidade: “Olha, Marília...” e “A fermosura desta fresca serra” (Camões)
 
Estrutura interna
  
1.ª parte (2 quadras) – Descrição da Natureza, concretizada (através da acumulação de frases nominais) de uma forma mais objectiva que no caso do soneto de Bocage. O quadro aponta também para a Natureza de tipo clássico (“locus amoenus”): beleza, formosura, frescura, verdura, calma.
 
2.ª parte (2 tercetos) – Relação do sujeito com a amada e consequente visão da Natureza: sem a presença dela, o sujeito poético fica insensível à beleza da Natureza.
 
Elementos que compõem a paisagem
 

Olha, Marília, as flautas dos pastores

A fermosura desta fresca serra

Flautas dos pastores
O Tejo
As flores
As plantas
As borboletas
O arbusto
O rouxino
A abelhinha
A serra
Os castanheiros
Os ribeiros
O mar
A terra
O esconder do so
Os gados
As nuvens

locus amoenus

locus amoenus

 

Diferenças entre os sonetos

 

         

                                   

sonetos

 
elementos
 
Bocage
 
Camões

Elementos se-lecionados
. espaço mais restrito
. presença de elementos humanos
. rouxinol  como  elemento  perturbador
 
. espaço mais alargado: presença dos quatro elementos primordiais ® terra, água, ar e fogo
 
Qualidades da natureza
 
. harmoniosa e luminosa: destaque para o convite ao amor
. formosura, calma, variedade e raridade: destaque para a beleza

 
 
Adjectivação
 
 
 
 
. cadentes, ardentes, vagas, alegre, clara
 
. menor quantidade  de adjectivos: destaque para o sentimento do amor
. fresca, verdes, manso, rouco, estranha, derradeiros, brandos, rara, mor
 
. maior quantidade de adjectivos; destaque para as características dos objectos, à maneira petrarquista
 
Pontuação

. exclamações, interrogação: destaque para a subjectividade

. vírgula, ponto e vírgula, ponto final: discurso mais objectivo


Funções da linguagem
. apelativa (predomínio), expressiva e poética: mensagem mais voltada para o destinatário; domínio do sentimento

. poética e emotiva: mensagem mais voltada para a realidade e para o sujeito poético; domínio da razão

 
Semelhanças entre os sonetos
 


sonetos

 
elementos
 
Bocage
 
Camões
 
Construção do quadro
 
. dinâmico, com evidência para as acções das pessoas, dos entes mitológicos e das aves

. estático: frases nominais, substantivação do infinitivo verbal; forte visualismo da serra ao mar

 
Cenário

. locus amoenus e leve presença do locus horrendus (o suspirar do rouxinol)

. locus amoenus e leve presença do locus horrendus (o rouco som do mar)

 


Aliterações

 

. 2.º verso: monossílabos, dissílabos e trissílabos; quase onomatopaico, a sugerir o som próprio das flautas; a repetição dos fonemas /pl/ (v. 7) a sugerir o voo das borboletas; a repetição do fonema /s/ (v. 11) a sugerir o ruído do esvoaçar da abelha

 . a repetição do fonema /f/ (v. 1) a sugerir frescura; repetição do fonema /t/ (v. 4) a sugerir uma afirmação segura

Personificações

. do Tejo, dos Zéfiros, dos Amores e do rouxinol

. animização dos ribeiros e das nuvens

Anáforas

. Olha, Olha; Ora, Ora

. Sem ti. Sem ti

 
Elementos ro-mânticos
. a natureza é um estado de alma
. a pontuação subjectiva e livre
. a  presença do  rouxinol  e da noite
. o amor sensual

. a natureza é um estado de alma

 
Sentimentos
. amor (mais sensual)
. alegria / tristeza
. amor
. tristeza
 
 
Síntese
SEMELHANÇAS
            1. Nível temático
 
. Descrição da Natureza: “locus amoenus”.
. A personificação dos elementos descritos.
. Relação sujeito poético / mulher / Natureza (de influência petrarquista).
 
            2. Nível formal
 
. Uso do soneto e do verso decassilábico.
. Equilíbrio na construção frásica de cariz latinizante.
. O processo antitético.
DIFERENÇAS
            1. Nível temático
 

Bocage

Camões

. Descrição da Natureza apoiada numa valorização da sensualidade e da subjetividade.
. Convite ao amor, evidenciando a sua componente sensual e reforçando o papel ativo do sujeito poético na relação amorosa.
. Descrição objetiva da Natureza.
 
. O sujeito poético é um ser passivo face ao amor, totalmente dependente da amada.
 
            2. Nível formal
 
. Tom oralizante criado através do emprego de:
            – imperativos;
            – exclamações;
            – diminutivos;
            – interrogações.
 
            As características diferenciadoras constituem as marcas românticas da poesia de Bocage.

Análise do poema "Magro, de olhos azuis, carão moreno", de Bocage

Tema: autorretrato do sujeito poético.
 
 
Assunto: descrição física e psicológica que o sujeito lírico faz de si próprio.
 
 
Estrutura interna
 
1.ª parte (2 quadras + 1.º terceto) – Autorretrato 

NOTAS:
 
        1.ª) O autorretrato está construído da seguinte forma:
– 1.ª estrofe ® retrato físico: cara, corpo;
– 2.ª/3.ª estrofes ® retrato psicológico.
 
        2.ª) Nos primeiros quatro versos, deparamos com uma deformação caricatural dos traços característicos do sujeito poético, que confere ao texto um efeito humorístico dado também pelo recurso a vocabulário corrente. É como se Bocage se estivesse a ver ao espelho e se risse de si próprio, do seu aspecto, do seu modo de ser e até dos seus dotes poéticos. Bocage demonstra, assim, a sua predileção por uma estética da espontaneidade, do improviso, da autoconfissão natural. Ao inspirar-se em si próprio, o poeta introduz uma nova temática e torna mais leve e fluente a linguagem, agora mais próxima da oralidade.

        3.ª)Recursos estilísticos:
enumerações;
– lítote: “e não pequeno” (v. 4);
– adjectivação;
– comparação (v. 6);
– metonímia: “furor”, ”ternura” (v. 6);
– hipérbole: ”Mil deidades” (v. 9);
– metáfora e anteposição do adjectivo: ”Devoto incensador” (v. 9);
– reiteração (vv. 9-10).
 
 
 2.ª parte (2.º terceto) – Síntese e designação do retratado:
 
. Identificação do sujeito poético com o próprio poeta: “Eis Bocage...” (v. 12).
 
. Síntese da caracterização do sujeito:

NOTA: Este soneto permite descobrir algumas das razões da infelicidade do poeta:
                – o temperamento irascível;
                – a entrega desmedidade a paixões amorosas, a prazeres mundanos (vida de boémia).


Recursos poético estilísticos
 
            1. Nível fónico
 
            Estamos na presença de um soneto em versos decassílabos constituído por duas quadras e dois tercetos, num total de catorze versos. A rima é emparelhada e interpolada nas quadras (ABBA) e cruzada nos tercetos (CDC / DCD), consoante (“moreno“/“pequeno”), grave ou feminina (“moreno”/“pequeno”), pobre (“moreno”/“pequeno”) e rica (“ternura”/“escura”). O ritmo é predominantemente binário (v. 2), alternando com o ritmo ternário (v. 1). O transporte está exemplificado nos versos 9-10 e 13-14.
 
 
            2. Nível morfossintáctico
 
            Os adjectivos enunciam características físicas e psicológicas referenciadas sempre em substantivos que designam um órgão ou uma parte do corpo. Bocage utiliza um vocabulário corrente que confere um efeito prosaico e humorístico à linguagem e nos transmite a deformação caricatural dos traços físicos e morais.
            Os verbos são escassos, com predomínio do pretérito perfeito, do gerúndio e do presente.
            Destaque também para os advérbios, nomeadamente o advérbio de modo bem a expressar, conjuntamente com o adjectivo servido, a grandeza dos pés; de exclusão somente a denunciar o anticlericalismo de Bocage e de designação eis a anunciar o retratado de forma algo majestosa.

 
            3. Nível semântico
 
            Existem várias perífrases:
– “Bem servido de pés” a significar que tem os pés grandes;
– “Triste de facha”, a expressar a sua fealdade.
– “Incapaz de assistir num só terreno”, denunciadora da sua inconstância amorosa, tal como outra no verso 9:
– “Devoto incensador de mil deidades”.
            Ainda na 1.ª estrofe é de realçar a antítese e a lítote “Nariz alto no meio, e não pequeno”, sugerindo as dimensões caricaturais do nariz.
            A comparação do verso 6 – “Mais propenso ao furor do que à ternura” – aponta para o seu carácter violento, irascível, enquanto as metáforas dos versos 7, 8 e 9 denotam a associação entre o amor e o ciúme, a obsessão da morte (sugerida pelo adjectivo letal) e a inconstância amorosa (v. 9). Destaque ainda para a hipérbole “Devoto incensador de mil deidades”, e para a enumeração das características físicas na 1.ª quadra.

 
Características
 

Neoclássicas

 

Pré-Românticas

 
. Uso do soneto.
. Verso decassilábico.
. Vocabulário alatinado: níveas, letal, deidades.
. Hipérbatos.
 
. Retrato (do herói) romântico:
– aspecto físico estranho;
– inconstância amorosa;
– anticlericalismo;
– egotismo (culto do individualismo).
. Carácter autobiográfico do texto.

 

sexta-feira, 9 de agosto de 2024

A escola do século XIX em imagens - XI


Jean Geoffroy – Aula da escola primária (1889)

    A escola que hoje consideramos tradicional, por vezes mesmo retrógrada e ultrapassada, acompanhou o processo de construção e afirmação da cultura e da civilização ocidentais. Períodos em que o acesso à escolarização aumentou, como a Baixa Idade Média, o Renascimento ou o Iluminismo, foram também épocas de crescimento económico e florescimento cultural. Uma das razões que explica, ainda hoje, o relativo atraso económico da Europa meridional é a persistência, nalguns casos até ao final do século XX, de elevadas taxas de analfabetismo. Sem o contributo da escola tradicional, que hoje se contesta a favor de ensinanças domésticas ou de míticas “comunidades de aprendizagem”, e independentemente das suas transformações presentes e futuras, nunca teríamos alcançado os padrões de vida da sociedade industrial e tecnológica em que hoje vivemos, duplicado ou triplicado a esperança média de vida, afirmado a democracia e as liberdades individuais, massificado o acesso à saúde, à cultura, à arte e ao conhecimento em geral.
    O quadro de Geoffroy reflete uma realidade recente que o pintor testemunhou: a implementação de leis (1882-83) que impuseram a escolaridade obrigatória em França. Foi uma aposta decidida do novo regime republicano – em Portugal também assumida a partir de 1910, embora com resultados bem mais limitados – que trouxe mais crianças às escolas, obrigando a investir na abertura de novas salas e na formação de mais professores. Igualmente importante foi o fomento da rede pública das chamadas escolas maternais, aptas a receber as crianças em idade pré-escolar: um apoio social fundamental que em Portugal, quase 150 anos depois, e com uma baixíssima natalidade, ainda não conseguimos assegurar plenamente a todas as famílias trabalhadoras!
    O objetivo da escolaridade obrigatória era, além do combate ao flagelo do trabalho infantil, criar novas gerações mais qualificadas e instruídas, mais aptas tanto para ingressar no mercado de trabalho cada vez mais exigente como para participar de forma consciente e ativa na vida política democrática. Num tom subtilmente propagandístico, o pintor mostra-nos a sala de aula como um espaço ordenado e organizado quase na perfeição. Distribuídos ao longo de quatro carteiras corridas, vemos alunos atentos e empenhados na realização das tarefas escolares, sob orientação e vigilância da professora. E não se diga que esta é uma escola retrógrada e ultrapassada: o que aqui vemos são pedagogias ativas em plena execução, com os alunos a construírem ativamente o seu próprio saber, aplicando conhecimentos e desenvolvendo competências!…

Análise da cena 2 do ato V de Hamlet

    A cena final de Hamlet é um festival de sangue e morte. São várias as personagens que perdem a vida e de diversas formas: veneno, espada, execução. As causas de tal mortandade radicam no desejo de vingança e de justiça. A obsessão pela vingança faz recair a morte sobre todos os diretamente envolvidos.
    Nos momentos que antecedem o duelo, Hamlet parece em paz. Embora sentindo uma certa tristeza no coração, aparenta estar reconciliado com a ideia da morte e ter afastado os receios relativos ao sobrenatural. Por outro lado, o desejo de ser perdoado por Laertes confirma essa mudança operada no príncipe. Até aqui, vivia centrado em si e na sua família – a morte do pai, a vingança da sua morte, a mãe –, porém agora parece sentir empatia pelos outros. No entanto, acaba por nunca assumir a responsabilidade pela morte de Polónio, mas a morte de Ofélia tê-lo-á levado a refletir e a agir de outra forma.
    Nesta cena derradeira, finalmente consuma a sua vingança e mata Cláudio, porém essa morte não deriva de qualquer plano traçado, mas enquanto reação às palavras acusatórias de Laertes, que o denuncia como o autor do envenenamento da espada e do vinho. Assim sendo, o único ato de vingança praticado por Hamlet resulta de novo momento impulsivo, tal como tinha sucedido com o assassinato de Polónio. Ambos os atos resultam de fúria momentânea, de impulso, o que significa que acaba por nunca superar a sua indecisão e as suas hesitações relativamente ao consumar da vingança. Ele não tem tempo para pensar, antes é empurrado para agir, forçado a responder aos acontecimentos. A decisão de aceitar o desafio de esgrima pode ter sido estratégica, mas também entendida como um ataque ao seu orgulho (afinal, Cláudio aposta na vitória de Laertes), todavia o que é certo é que Hamlet cai na armadilha montada pelo tio e por Laertes. Novamente, o príncipe não age, reage.
    De facto, Hamlet aceita o desafio, mas não sem expressar algumas reticências a Horácio, que o aconselha a desistir, porém o príncipe considera uma desistência um gesto irracional. Nesta sequência, interioriza a possibilidade de morrer, mostrando que está “pronto” para tal. Estes dados significam também que ele está bem ciente da ameaça que o confronto com Laertes representa. Além disso, as suas palavras carregadas de fatalismo e pressagiantes prenunciam a sua morte.
    O relato que faz a Horácio acerca da forma como subverteu os planos de Cláudio mostram que Hamlet é uma pessoa inteligente, astuta e manipuladora. Em simultâneo, no momento em que engana Rosencrantz e Guildenstern, está, na prática, a traí-los e a condená-los à morte, à semelhança do que estes estavam prontos para lhe fazer. Assim sendo, coloca-se ao nível dos antigos amigos, o que mostra que superou o tempo em que considerava que dois erros não faziam um acerto. Por outro lado, tudo isto vem confirmar a ideia de que abandonou grande parte das suas preocupações morais.
    O destino de Gertrudes, como não poderia deixar de ser, é igualmente a morte. Ela é vítima inconsciente dos atos do segundo marido, que não lhe eram dirigidos: sem saber, bebe o vinho envenenado que era destinado a Hamlet, seu filho. Deste modo, estamos perante novo caso de uma mulher que morre por causa da ação dos homens que fazem parte da sua vida e que a dominam. Por outro lado, os acontecimentos indiciam que a rainha não estava ciente do envolvimento de Cláudio no assassinato do rei Hamlet.
    Apesar de esse não envolvimento, morre em consequência da violência e do desejo de vingança dos homens, que parecem mover-se todos com base nesses estados de alma. Por tudo o que a peça foi narrando, parece lícito concluir que as mulheres da época eram seres infelizes que tinham as suas vidas condicionadas por homens imperfeitos e poderosos, em suma, por uma sociedade medieval patriarcal.
    Outra morte é a do próprio Hamlet, que não é heroica nem vergonhosa. Finalmente, obtém a vingança do seu pai, mas apenas conduzido a tal por circunstâncias extremas e macabras: a morte da mãe, causada, ainda que indiretamente, pelo próprio marido. A sociedade em que está inserido valoriza imenso os sentidos da honra e da vingança, porém o desenlace da peça permite questionar esses valores sociais. De facto, Hamlet consegue vingar pessoalmente a morte do pai, mas a que preço? As personagens centrais da obra morrem todas, à exceção de Horácio e mesmo este considera o suicídio, para acompanhar o destino do amigo príncipe, e apenas não o concretiza porque este último lhe pede que viva para contar a sua história ao mundo. Além disso, Hamlet não ascende ao trono e não governa a Dinamarca. Em vez disso, Fortinbras reaparece como um líder político e militar vencedor, racional e sensato, e reclama o trono dinamarquês. Assim sendo, de que valeram os atos e os esforços de Hamlet?
    Quando o duelo entre Hamlet e Laertes chega ao fim, este último revela o plano traiçoeiro de Cláudio, constituindo-se como um momento crucial da peça, pois o príncipe que está prestes a morrer. É também esta perceção que o leva a matar o rei, pois já não tem nada a perder. Além disso, dada a iminência da sua morte, não tem tempo para refletir sobre os seus atos, precisa de agir rapidamente. Por outro lado, as palavras finais de Laertes sugerem que a violência só leva à morte e à destruição e reconhece que ele próprio foi vítima disso e dos seus atos. De facto, ele feriu mortalmente Hamlet com a espada envenenada e acabou por lhe suceder o mesmo quando o príncipe se apossou do seu florete e o atingiu também. Deste modo, Laertes foi derrubado pela sua própria perversidade.
    Cláudio introduziu na Dinamarca a decadência e a corrupção morais, ao assassinar o próprio irmão para obter o poder. Como «prémio» adicional, desposa a antes cunhada. Porém, o modo adotado para combater essa corrupção moral – a violência extrema – acaba por resultar apenas em violência generalizada que acarreta uma sucessão de mortes: violência gera mais violência e morte gera mais morte. Será também por isso que Hamlet hesita tanto em matar Cláudio. No entanto, o desenlace consiste mesmo na morte do rei e o que resulta daí é o desmoronamento da monarquia dinamarquesa e a ascensão ao trono de um rei estrangeiro. Tal como se vê, por exemplo, no filme de animação Rei Leão, é necessário destruir totalmente o que existe, para que algo novo possa emergir. De facto, com a morte de todas as personagens ligadas ao poder, a Dinamarca está livre da corrupção, da ambição desmedida, da violência reinantes até então, pelo que está livre para um recomeço bem diferente. Horácio parece reconhecer a nova situação quando jura fidelidade a Fortinbras. A família real dinamarquesa estava marcada pela corrupção e, por isso, enfraquecida. Pelo contrário, Fortinbras representa um líder forte, carismático e capaz de restaurar a autoridade moral do Estado. Se o consegue ou não, não é assunto da peça. Note-se que o Fortinbras que surge em cena no final da peça não é o mesmo do início: antes limitava-se a agir; presentemente, pensa enquanto age. O tempo e a experiência tornaram-no uma pessoa mais sensata, ponderada e moderada. Ele mostra-se ousado, mas atencioso quando se depara com o salão cheio de corpos. Perante esse cenário, alguém tem de assumir o controlo dos acontecimentos: Fortinbras fá-lo.
    Horácio é o amigo leal de Hamlet, responsável por dar a conhecer a história do príncipe. Começa por narrar a Fortinbras o que aconteceu recentemente, começando por traçar uma visão geral dos eventos e avisa que os ouvintes irão escutar uma história prenhe de atos carnais, sangrentos e não naturais. Ora, estes termos apontam para toda a violência que teve lugar, bem como para o casamento de Gertrudes com o irmão do seu falecido marido, algo que soou aos ouvidos de Hamlet como antinatural e perturbador.
    Horácio alude também a “julgamentos acidentais” e as mortes «casuais», o que corresponde aos dados da peça, como é o caso do assassinato acidental de Polónio às mãos de Hamlet, que pensava estar a liquidar Cláudio. Por outro lado, estas palavras de Horácio têm a intenção de isentar o seu amigo de responsabilidades, o que é compatível com o desejo de o apresentar como um herói. Ou seja, ele tem consciência de que a história de Hamlet está repleta de imperfeições, porém é seu entendimento que, não obstante, merece ser celebrado.
    Curiosamente, Fortinbras, ao exigir que o corpo de Hamlet seja transportado até uma plataforma para que possa ser homenageado, está a trata-lo como um herói militar que merece ser celebrado, mas o contraste entre ambos é evidente: Fortinbras dedicou-se inteiramente à conquista da Polónia, ao passo que Hamlet se mostrou incapaz de vingar a morte do pai até ao momento derradeiro. Assim sendo, é algo irónico e incongruente que se celebre alguém tão inseguro e que duvida da sua própria pessoa como uma figura respeitável. Se Hamlet for efetivamente celebrado, é provável que o seu legado será bastante idealizado, o que quer dizer que o seu verdadeiro ser não será lembrado.
    Uma das temáticas que perpassa a peça é a oposição entre verdade e engano. Toda ela gira em torno do ato primitivo de Cláudio: o assassinato do irmão, a posse da coroa dinamarquesa e da rainha. Curiosamente, esse tema estende-se até à cena final: o rei engendrou novo esquema para garantir o seu poder. A sua morte em consequência de tal dá a sensação do fechamento de um círculo.

Resumo da cena 2 do ato V de Hamlet

    Esta é a cena final da peça e decorre no dia seguinte, no castelo de Elsinore, onde se reúnem todas as personagens centrais. Hamlet conta a Horácio como conseguir fugir do navio que o levava para Inglaterra. Embora não se sentisse um prisioneiro, acha-se confinado e decidiu libertar-se. Assim, certa noite, enquanto Rosencrantz e Guildenstern dormiam, entrou furtivamente na sua cabine e surripiou a documentação que Cláudio lhes entregara. Ao ler as cartas, descobriu que o rei pretendia a sua morte, por isso substituiu a missiva que lhe dizia respeito por outra, redigida por si imitando a caligrafia do tio, ordenando a execução imediata de Rosencrantz e Guildenstern. Depois de a selar com o sinete, colocou-a no local de onde retirara as originais. Durante o diálogo com o amigo, Hamlet lamenta ter hostilizado Laertes, pois reconhece no desejo de vingança da morte do pai do irmão de Ofélia o seu próprio. Horácio aconselha-o a agir rapidamente, pois a notícia da sua atitude relativamente a Guildenstern e a Rosencrantz não tardarão a chegar à corte.
    A conversa é interrompida pela chegada de Orsic, um cortesão tolo, que traz uma mensagem de Cláudio para Hamlet: o príncipe foi convidado para testar as suas habilidades num duelo amigável com Laertes. Orsic elogia profundamente o filho de Polónio e acrescenta que o rei apostou nele para vencer a disputa e pergunta-lhe se aceita o desafio. Apesar dos conselhos de Horácio, Hamlet concorda em lutar, confiando o seu destino a Deus.
    A corte reúne-se no salão. Os dois antagonistas cumprimentam-se, apertando as mãos, e Hamlet pede perdão a Laertes por ter assassinado o seu pai e pela dor que lhe causou e à família, porém acrescenta que as suas ações foram praticadas sob o efeito da loucura, pelo que não lhe poderão ser assacadas. Laertes aprecia o gesto, mas afirma que não o perdoará.
    Orsic entrega os floretes e ambos e Cláudio declara que recompensará o vencedor com vinho fino. O desafio tem início, Hamlet atinge o adversário e o monarca oferece-lhe vinha envenenado, porém o príncipe declina, afirmando que beberá mais tarde. O confronto prossegue e Laertes volta a ser atingido. Gertrudes, exuberante, pega na bebida para celebrar. Cláudio tenta impedi-la de beber, mas não consegue e, assim, sem saber a rainha ingere o veneno. Deste modo, mesmo que acidentalmente, o monarca é o responsável pela morte da esposa.
    Laertes sussurra que ferir o oponente com a espada envenenada é algo que perturba a sua consciência. O terceiro «round» tem início e Laertes acerta no opositor, fazendo sangue. Durante a refrega, ambos deixam cair as espadas e acidentalmente pegam na arma do outro. De seguida, Hamlet fere o adversário com a espada deste.
    A rainha cai no chão. Laertes, percebendo que foi atingido com a sua própria espada, lamenta ter sido vítima da sua própria armadilha. Gertrudes geme que a taça da qual bebeu deveria estar envenenada, chama o filho, diz-lhe que não beba o vinho e morre. Hamlet ordena de imediato que as portas do salão sejam trancadas até que o culpado seja descoberto. Laertes, às portas da morte, diz a Hamlet que a ponta da sua espada estava envenenada e que ambos vão morrer, acrescentando que o rei é o responsável pelo veneno na espada e na taça de vinho. O príncipe, furioso, atinge Cláudio com o florete envenenado e obriga-o a beber o que resta do vinho. O soberano morre. Laertes e Hamlet perdoam-se e o primeiro sucumbe. Horácio conforta o amigo e pega no vinho sobrante para o beber, mas Hamlet impede-o, rogando-lhe que viva e conte a sua história.
    Soam trombetas. Orsic entra na sala e informa o moribundo que Fortinbras regressou vitorioso da Polónia. Antes do último suspiro, Hamlet expressa o desejo de que Fortinbras seja o futuro rei da Dinamarca e morre. O líder vitorioso, acompanhado de embaixadores ingleses, entra no salão, horrorizado com a carnificina em seu redor. Um embaixador anuncia as mortes de Guildenstern e Rosencrantz. Horácio narra aos recém-chegados o que aconteceu. Fortinbras lamenta o estado a que a Dinamarca chegou e revindica para si o trono. Horácio promete-lhe o seu apoio.
    Fortinbras ordena que Hamlet seja tratado com as honras de um soldado: quatro capitães transportam o seu corpo até uma plataforma, dizendo que, se vivesse, teria sido um rei excecional. A finalizar, ordena que os soldados limpem o salão retirando os mortos, observando que a visão dos seus corpos pode ser adequada a um campo de batalha, mas não ao interior de um castelo.

Análise da cena 1 do ato V de Hamlet

    Antes de mais, convém esclarecer o seguinte: os coveiros são designados por um termo que podemos traduzir por «palhaços», contudo, na época de Shakespeare, o vocábulo não tinha o mesmo significado que no século XXI (um artista de circo ou uma pessoa brincalhona e engraçada), antes se referia a uma pessoa rústica ou a um camponês. Deste modo, os coveiros representam um tipo humorístico comumente presente nas peças de Shakespeare, ou seja, o plebeu astuto e matreiro que «vence» personagens de um estrato social superior através da sua astúcia e inteligência, o que fazia com que as peças / representações atraíssem pessoas de classes sociais inferiores, nomeadamente os chamados «groundlings», isto é, aqueles que não tinham possibilidades de pagar assentos e, por isso, se sentavam no chão. Dito isto, nesta cena em particular, os coveiros são figuras macabras, pois os seus ditos jocosos e provocações são produzidos no cemitério enquanto abrem a sepultura que constituirá a derradeira morada de Ofélia, rodeados de ossos de mortos. Não obstante, o diálogo que travam a propósito da jovem, cuja identidade desconhecem, foca um tema importante: a questão do suicídio e a forma como a religião e a sociedade o encaram e tratam.
    De facto, o suicídio é fortemente condenado na época, o que decorre das raízes, da influência, cristãs da sociedade. O cristianismo encarava-o como uma renúncia, uma rejeição da vida, considerada uma dádiva divina, constituindo, portanto, um desrespeito a Deus. Assim, na sequência desta visão da questão, a maioria das pessoas que se suicidava era privada de um sepultamento cristão. É isto que explica a pressão de Laertes sobre o padre para proporcionar um enterro digno e adequado à irmã, bem como a relutância do religioso em o fazer, pois seria contrário à prática cristã. Por outro lado, o facto de o padre fazer alguma concessão evidencia a importância do status social na época, ou seja, como Ofélia era nobre e pertencia a uma família respeitada e com ligações ao poder, o religioso fez o possível para lhe proporcionar um enterro condigno, mesmo que essa atitude contrarie os princípios cristãos.
    Esta cena levanta outra questão presente ao longo da obra: a figura da mulher numa sociedade patriarcal. No início da peça, tanto Polónio como Laertes aconselham Ofélia no sentido de proteger a sua honra e a sua inocência, tidas como fundamentais para as mulheres nobres da época. É esse mesmo sentimento que anima Laertes a tentar convencer o padre a enterrar Ofélia como uma jovem inocente, sem pecado. Sucede, porém, que ela se suicidou, pelo que o irmão não pode mais proteger a sua irmã nem exercer a sua vontade sobre a rapariga. Deste modo, podemos concluir que é na morte que Ofélia se liberta finalmente da influência e do domínio dos homens na sua vida.
    Após a descoberta do crânio de Yorick, Hamlet faz uma reflexão filosófica e mórbida sobre a morte. Ao recordar o quão cheio de vida e alegre era o bobo da corte, essa recordação desperta nele o reconhecimento de que não importa o estrato social, o poder ou a forma de ser da pessoa, pois todos acabarão por morrer e transformar-se num amontoado de ossos. Quando se apercebe de que o crânio fede, conclui que mesmo os grandes vultos e heróis da humanidade, como, por exemplo, Alexandre, o Grande, morrem e apodrecem. Deste modo, Hamlet conclui que ninguém é imune à passagem e devastação do tempo e à morte. Nesta cena, o príncipe imagina o pó do cadáver decomposto de Júlio César a ser usado para remendar uma parede, o que se relaciona com uma fala sua proferida no ato IV, quando declara que um homem pode pescar com o verme que comeu de um rei e comer do peixe que se alimentou daquele verme, uma imagem que, no fundo, ilustra a ideia de que um rei pode passar pelas entranhas de um mendigo. Estamos na presença de temas abordados já na literatura da Antiguidade e retomados pelos autores do Renascimento. Em última análise, o príncipe conclui que nada importa – o que é ou o que fizer –, pois inevitavelmente morrerá. Essa noção liberta-o de alguma forma, daí que finalmente dê um passo em direção à vingança na cena seguinte. Ele sempre se preocupou em fazer o que é correto e honrado, o que leva a hesitar constantemente sobre como agir, contudo, ao interiorizar a inevitabilidade da morte, as suas preocupações sobre o modo certo de agir parecem-lhe insignificantes. O que importa se ajo corretamente ou não, se vou morrer de qualquer forma?
    Outro ponto interessante é o facto de, em nenhum momento, Hamlet expressar qualquer sentimento de culpa relativamente à morte de Ofélia, de que é indiretamente culpado, não só por causa da forma fria e desconcertante como a tratou, mas também por ter assassinado o seu pai. O único momento em que se nota algum traço de arrependimento está presente na cena seguinte, concretamente no momento em que se desculpa perante Laertes antes do duelo, culpando a sua «loucura» pela morte do pai. No entanto, este passo parece incoerente, visto que Hamlet já declarara anteriormente estar apenas a fingir que estava louco. Tudo isto questiona a sua moralidade, porém, tendo em conta as suas constantes hesitações e indefinições, bem como a dor e o conflito interior que sempre o dilaceraram, é possível que, se assumisse a totalidade da sua responsabilidade e culpa nos acontecimentos, nomeadamente na morte de Polónio, fosse incapaz de suportar o tormento psicológico daí resultante. Seria, provavelmente, um peso demasiado grande para ele suportar. Neste caso, nem a descoberta recente do efeito equalizador da morte e da decomposição física (tanto os grandes homens como os mendigos se transformam em pó) o levam a desprender-se da sua «persona» e a agir corretamente.
    Por último, o confronto de Hamlet e Laertes no túmulo de Ofélia antecipa o confronto final que está iminente. O facto de ter lugar num cemitério, mais concretamente numa sepultura, constitui um presságio de morte de ou de ambos. Eles vão enfrentar-se num combate de esgrima, portanto a morte pode atingir qualquer um dos dois.
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