1. Introdução
A caricatura política tem uma longa tradição como forma de
crítica social e política, servindo de espelho — por vezes distorcido, por
vezes intensamente preciso — da realidade contemporânea. Num único quadro, é
possível condensar ideias, emoções, ideologias e posicionamentos com uma força
simbólica raramente encontrada em discursos extensos ou análises formais. Este
cartune, do artista Kamensky, retrata o mundo dividido entre “Trumpistão” e
“Putinistão” e constitui um exemplo notável dessa capacidade de síntese e
provocação, oferecendo-nos uma leitura alegórica e crítica do panorama
internacional atual, nomeadamente da forma como Rússia e Estados Unidos
«negociam» o conflito que resultou da Invasão da Ucrânia por parte dos russos.
2. Os Arquétipos Autoritários: Trump e Putin como
Representações de Regimes
2.1. Donald Trump
Trump surge de pé, com uma postura hirta, uma expressão
facial de resolução fria, com traços rígidos e fechados – sem empatia, sem
sorriso. Os olhos parecem cerrados. Por cima do lábio superior, é visível um
bigode que recorda o característico de Hitler. No que diz respeito ao
vestuário, usa o seu icónico traje de campanha: um fato escuro (azul-marinho ou
preto), gravata vermelha comprida (uma das suas peças de vestuário mais
típicas) e camisa branca. No braço esquerdo, exibe uma braçadeira vermelha com
um círculo branco, que contém ao centro a letra T (de Trump, traduzindo um
exercício do poder político autocrático e de culto da personalidade), que evoca
a estética autoritária ou paramilitar (semelhante às usadas em regimes
totalitários por figuras como Adolf Hitler ou Mussolini). O cabelo apresenta
tonalidades amarelas-claras / douradas, penteado numa espécie de topete
volumoso inclinado para trás, como é característico da figura real. O rosto é
redondo, apresenta bochechas volumosas e lábios comprimidos, traços enfatizados
pela caricatura para transmitir a sensação de rigidez e arrogância. Por outro
lado, o tom de pele alaranjado, outro traço característico das caricaturas de
Donald Trump, remete para a maquilhagem que, normalmente, usa em público. Na
mão direita, segura uma motosserra que pinga sangue e emite fumo negro,
pormenores que simbolizam a convivência com os atos violentos de Putin por
motivos taticistas e economicistas
A representação de Donald Trump no cartune vai muito além da
caricatura física. Ele surge como símbolo de um estilo político marcado pelo
populismo, pela confrontação com instituições democráticas e pelo culto à
personalidade. A gravata vermelha, o fato escuro e a expressão determinada são
reforçados por uma motosserra ensanguentada, um objeto que dispensa
explicações sobre a natureza destrutiva da liderança que representa.
A presença de uma braçadeira com a letra “T” no braço
de Trump (a inicial do seu próprio nome) é uma clara alusão aos símbolos
totalitários do século XX. Embora não haja referência direta ao nazismo, o uso
da braçadeira evoca associações com regimes que apostaram na identificação
simbólica total com o líder. Tal iconografia insinua que o “Trumpistão” é mais
do que uma extensão dos EUA — é uma entidade ideológica alternativa,
autoritária e violenta.
2.2. Vladimir Putin
Do lado oposto da imagem, Putin surge como guerreiro
arquetípico. De tronco nu e com o símbolo “Z” — associado às tropas
russas na guerra contra a Ucrânia — o presidente russo carrega um machado
ensanguentado. A escolha da arma é significativa: o machado evoca
brutalidade, execução sumária, punição corporal. Por outro lado, convém ter
presente que a letra “Z” começou a aparecer pintada em veículos
militares russos nos primeiros dias da invasão da Ucrânia em fevereiro de
2022. Originalmente, servia como uma marcação tática, usada pelas
forças russas para distinguir os seus veículos dos ucranianos no campo de
batalha — especialmente porque ambos os lados utilizavam modelos semelhantes de
armamento soviético. Porém, acabou por ser interpretada como uma alusão ao
presidente ucraniano, Zelensky, e ao objetivo russo de o eliminar.
Ele encontra-se também de pé, de frente para Trump, numa
posição espelhada que sugere igualdade (ideológica? de ação? de propósito?). A
sua expressão é impassível e fria, típica das caricaturas que o representam
como um homem calculista, frio e insensível. Por seu turno, os olhos estão
cerrados, enquanto, por cima do lábio superior, ostenta um bigode similar ao de
Estaline, um antigo dirigente soviético sanguinário. No que diz respeito ao
vestuário, encontra-se, de facto, de tronco nu, realçando a musculatura magra e
o peito, uma imagem que procura reproduzir fotografias em que Putin se deixou
fotografar desse modo, procurando transmitir uma representação sua como homem
viril, guerreiro. Usa umas calças militares verde-escuras com um cinto largo,
no qual está preso um machado grande, de lâmina larga, completamente coberto de
sangue, simbolizando as vítimas que faz com a invasão da Ucrânia, no que
constitui uma alusão ao célebre machado de guerra, cuja origem remonta às
culturas indígenas da América do Norte e que, hoje em dia, é usada como
metáfora para conflito, hostilidade ou confrontação aberta. O machado de guerra
era uma arma real utilizada por várias tribos indígenas, como os Apaches, por
exemplo, a qual possuía igualmente um valor cerimonial e simbólico. Quando duas
tribos em guerra faziam a paz, era tradição enterrar o machado de guerra, um
gesto que simbolizava o fim das hostilidades. Daí surgiu a expressão «enterrar
o machado de guerra», que conserva o significado de pôr fim a um conflito. Prosseguindo
a descrição de Putin, calça umas botas militares de cano alto, reforçando o
papel de comandante em tempo de guerra. No braço esquerdo, que está caído ao
longo do corpo, enverga uma braçadeira similar à de Trump, sendo a única
diferença o facto de conter a letra Z, uma alusão, como já foi referido, ao
líder ucraniano, Zelensky, o alvo prioritário das forças russas. O cabelo, de
tons acinzentados, é muito curto, acentuando o seu aspeto militarista e
austero. O rosto é anguloso, salientando-se o queixo pontiagudo, as bochechas
rosadas e a pele entre o pálido e o rosado mais suave. As rugas na testa e entre
os olhos sugerem tensão, experiência e um certo desgaste físico.
Regressando aos bigodes das duas figuras – Trump possui um
semelhante ao de Hitler e Putin ao de Estaline, podemos estar perante uma
alusão ao acordo assinado, por altura da II Guerra Mundial, entre o então líder
alemão e o soviético – o célebre Pacto Molotov-Ribbentrop (datado de 23 de
agosto de 1939) –, que dividia a Europa Oriental em duas esferas de influência
e que tinha como objetivo evitar uma guerra entre a Alemanha e a União
Soviética.
Em suma, a representação de Putin assenta num imaginário de
força bruta e sobrevivência, características muitas vezes exaltadas na
propaganda oficial russa. O “Putinistão” torna-se assim a imagem de um regime
baseado na violência estatal, no expansionismo territorial e na supressão da
dissidência interna.
3. A Estética da Violência: Motosserra, Machado e Sangue
3.1. Os Objetos como Metáforas do Poder
O uso de armas primitivas e ensanguentadas — a motosserra de
Trump e o machado de Putin — reforça a ideia de que o poder que exercem não é
racional, civilizacional ou democrático. São instrumentos que destroem, mutilam
e intimidam. O sangue que pinga dos mesmos, e que se acumula no chão, simboliza
os custos humanos e éticos das suas políticas.
No caso de Trump, a motosserra pode também ser lida como
referência à devastação ambiental, especialmente face ao seu negacionismo
climático e desregulação das proteções ecológicas nos EUA.
3.2. A Poética do Sangue
O sangue é o símbolo mais explícito do cartune. Não há
tentativa de disfarçar ou suavizar a violência — pelo contrário, ela é frontal,
visível e omnipresente. O aperto de mão entre os dois líderes acontece com as
mãos manchadas de sangue, uma poderosa metáfora da cumplicidade na
destruição de direitos, vidas e democracias. Na prática, Trump, que prometeu
acabar com a guerra rapidamente durante a campanha para a sua eleição, tem-se
comportado quase como um aliado de Putin, mostrando-se disponível para sacrificar
a independência da Ucrânia, desde que os seus interesses em solo ucraniano
sejam atendidos. É também uma denúncia clara de que a aliança ideológica entre
os dois não é apenas teórica ou retórica: ela tem consequências materiais e
trágicas.
4. A Geografia da Ideologia: Trumpistão, Putinistão e
Bastardistão
4.1. A Divisão do Mundo em Blocos Ideológicos
Ao fundo, vemos o globo terrestre dividido. De um lado, o
“Trumpistão”; do outro, o “Putinistão”. Esta bipartição não representa nações
reais, mas sim zonas de influência ideológica, como se o mundo estivesse a ser
repartido por duas potências autoritárias concorrentes, mas paradoxalmente
aliadas. Trata-se de uma distorção do mapa-múndi que substitui fronteiras
políticas por fronteiras simbólicas, representando a guerra ideológica em
curso.
Esta representação evoca, de forma distorcida, a lógica da
Guerra Fria, mas sem o contraponto da democracia liberal. Aqui, não há um
“mundo livre” (o bloco ocidental) — apenas dois modelos de autoritarismo que se
fortalecem mutuamente.
4.2. Bastardistão: O Mundo Bastardo
A inscrição “DIE WELT BASTARDISTAN” em letras
vermelhas chama imediatamente a atenção. “Die Welt” significa “o mundo” em
alemão; o termo inventado “Bastardistão” insinua que o mundo está a ser
dominado por regimes violentos e sanguinários. Este conceito remete à ideia de
que a política internacional foi sequestrada por figuras que destroem valores
universais, deslegitimando qualquer noção de ordem global assente no direito,
na ética ou nos direitos humanos.
5. Elementos Visuais Secundários e Simbologia Oculta
5.1. A Lata de Tinta
Ao centro, no chão, encontra-se uma lata de tinta vermelha
(sangue), em cima da qual está um pincel molhado. No solo, existem diversas
manchas de tinta vermelha (novamente sangue), algumas das quais caem da
motosserra de Trump e do machado de Putin. O pincel e a tinta foram usados para
dividir o mapa-múndi ao meio, representando as duas metades do mundo, cada uma
dominada pelas duas figuras do cartune.
5.2. A Linha Vermelha
A linha vermelha que divide o mundo ao meio (O Ocidente
dominado por Trump e o Oriente por Putin), divisão essa marcada a sangue, evoca
a Guerra Fria, durante a qual o mundo foi dividido em dois blocos – o ocidental
(capitalista e democrático), liderado pela NATO e pelos Estados Unidos, e o
Bloco de Leste (comunista), dominado pela União Soviética e pelo Pacto de
Varsóvia. Essa linha imaginária evocava uma fronteira ideológica e não apenas
territorial, enquanto a do cartune se refere a dois modelos de autoritarismo
populista.
6. Significado Político e Cultural da Caricatura
6.1. O Papel da Sátira Política
A caricatura de Kamensky insere-se na tradição da sátira
como resistência. Ao exagerar, deformar e provocar, a sátira obriga-nos a
confrontar realidades que muitas vezes preferimos ignorar. Como afirmou George
Orwell, "toda a arte é política", e neste caso, a arte é também
um grito de alerta. Não se trata de humor leve — trata-se de um comentário
feroz sobre a realidade global, que apela à ação, à consciência crítica e à
resistência cultural.