quarta-feira, 17 de outubro de 2018
Do indo-europeu ao latim
Nos
finais do século XVIII, os europeus que começaram a contactar com a literatura
tradicional da Índia deram conta que o sânscrito,
língua clássica daquele país longínquo, era semelhante ao latim e ao grego a tal
ponto que deveria ter uma origem comum. Nas décadas seguintes, compreendeu-se
que também as línguas germânicas, celtas e eslavas, bem como o persa, língua
falada no Irão, pertenciam à mesma família, a que se passou a chamar indo-europeu por a ela pertencerem
quase todas as línguas da Europa, da Índia e de grande parte das regiões entre
uma e outra.
Foi Sir
William Jones, jurista, filólogo e humanista inglês, quem demonstrou, em 1786,
que o sânscrito, uma língua antiga da Índia, era inequivocamente próxima do
grego, do latim e das demais línguas já referidas. No discurso dirigido à
Sociedade Asiática, publicado em 1788, considerado o início da Linguística
Histórico-Comparativa, afirmou o seguinte:
O sânscrito, sem levar
em conta a sua antiguidade, possui uma estrutura maravilhosa: é mais perfeito
que o grego, mais rico que o latim e mais extraordinariamente refinado do que
ambos. Mantém, todavia, com estas duas línguas tão grande afinidade, tanto nas
raízes verbais quanto nas formas gramaticais, que não é possível tratar-se do
produto do acaso. É tão forte essa afinidade que qualquer filólogo que examine
o sânscrito, o grego e o latim não pode deixar de acreditar que os três
provieram de uma fonte comum, a qual talvez já não exista. Razão idêntica,
embora menos evidente, há para supor que o gótico e o celta tiveram a mesma origem
que o sânscrito. (ROBINS, 1983, p.107)
O termo
indo-europeu acabou por ser cunhado,
em 1813, pelo polímata inglês Thomas Young.
Em
suma, dos diversos estudos dos filólogos, cientistas, gramáticos comparativos e
humanistas, foi possível descobrir que o latim e o sânscrito eram aparentados o
suficiente para terem uma origem comum, nos moldes em que dizemos que o francês
e o português têm origem no latim. A suposta língua que deu origem ao latim, ao
grego, ao sânscrito, ao protogermânico, etc., foi chamada protoindo-europeu (PIE). No entanto, não há praticamente nenhum
resquício escrito da passagem do PIE para as línguas da família indo-europeia e
a sua reconstituição é feita com base na comparação entre as diversas línguas
indo-europeias e nas mudanças linguísticas atestadas historicamente.
As
línguas dos povos indo-europeus (que terão vivido cerca de 5000 a.C.) foram-se
diferenciando e dando origem a diversos grupos de línguas:
. o anatólio (que se desenvolveu
provavelmente por volta de 2000 a.C.);
. o indo-iraniano (cerca de 1400 a.C.);
. o balto-eslavo;
. o tocariano;
. o arménio;
. o albanês;
. o helénico (cerca de 1300 a.C.);
. o germânico;
. o céltico;
. o itálico (o latim era uma das
línguas do grupo itálico).
Assim,
pode supor-se que o PIE terá sido falado provavelmente antes de 2500 a.C., mas as
datações são todas muito difíceis de estabelecer e muito hipotéticas. Para
termos ideia da extensão cronológica envolvida nas transformações entre as
línguas indo-europeias, é lícito dizer-se que o latim teve origem em
torno do século XI a.C. (as inscrições
mais antigas encontradas datam do século VII, embora Roma tenha sido fundada
por Rómulo, segundo a lenda, em 753 a.C.) e o sânscrito entre 1500 e 1000 a.C.
O
quadro seguinte ilustra as principais famílias linguísticas que tiveram origem
no protoindo-europeu:
O símbolo (†) indica que se trata de uma língua que não tem mais falantes nativos, ou
seja, trata-se de uma língua morta.
No quadro, estão representadas famílias de línguas que não
pertencem ao indo-europeu.
O
indo-europeu não é, obviamente, a única família de línguas do planeta. Idiomas como
o árabe, o chinês e o turco não são indo-europeus e cada um pertence a uma
família linguística, respetivamente, o semítico, o sino-tibetano e o altaico (a
inclusão deste último é incerta, mas esta família inclui também o coreano e o
japonês, entre outras).
Fontes:
. Gramática de Português, Maria Regina
Rocha (pág. 14);
terça-feira, 16 de outubro de 2018
Análise da cantiga "Levad', amigo que dormides as manhanas frias"
● Assunto:
a donzela chama o amigo e lembra-lhe que agora, nas manhãs frias, já não a
procura de madrugada. Quando ele vinha, as aves cantavam as alegrias daquele
amor.
O amor arrefeceu da parte do amigo e tudo
se transformou: as aves deixaram os ramos e as fontes.
● Tema:
o amor desfeito:
- a ferida do
abandono, da falta de atenção por parte do amigo;
- a
acusação / apelo, não em nome próprio, mas em nome das aves, dos ramos, das
manhãs, das fontes;
- a
ausência do amor e o seu reflexo destrutivo na natureza.
● Estrutura
interna
Tudo se modifica
pela ausência do amigo e o espaço fica vazio, sem a presença das aves, tal como
o espaço do seu coração está vazio sem a presença do amigo = amor.
O refrão, na
segunda parte, adquire um sentido humorístico-trágico, uma vez que a alegria da
donzela já não existe.
Esta
cantiga é uma alba, ou seja, a acção ocorre nas primeiras horas da manhã e
põe fim a uma noite de amor entre a donzela e o amigo.
Quando
fala no presente, estamos perante uma relação que acabou, que, de ardente, se
tornou fria. Ocorre-lhe então a lembrança do amor feliz da Primavera. O
pretérito perfeito marca a ideia de que ele é que cortou os ramos e secou as
fontes do amor de ambos. Em suma, o pretérito perfeito marca a
irreversibilidade da situação.
De
acordo com os autores do manual Entre nós
e as palavras 10, o apelo da donzela, expresso logo no verso 1 da cantiga,
traduzirá o seu apelo dirigido ao amigo, para que este se levante depois de
terem passado a noite juntos. Assim sendo, não obstante o facto de o amigo se
ter vindo a distanciar gradualmente da donzela e da relação entre ambos, é
possível considerar que ela ainda se mantém no presente.
Por
outro lado, o pormenor de as manhãs serem caracterizadas como «frias» significará o arrefecimento da
relação amorosa, pelo que o apelo da donzela poderá representar,
simbolicamente, o seu desejo de que o amigo deixe de dormir (isto é, de assumir
um papel passivo) e faça algo no sentido de reverter o processo de destruição
da relação amorosa. (Alexandre Pinto e Patrícia Nunes, in Entre nós e as palavras 10, Santillana, pág. 34).
●
Dupla leitura do texto
O
gesto do amigo, ao tirar os ramos onde estavam as fontes e ao secar as fontes
onde bebiam e tomavam banho, poderá significar que pretendia afastá-las, de
modo que o amor existente entre si e a donzela se mantivesse secreto.
Por
outro lado, esses atos podem significar o fim do seu amor pela donzela e,
consequentemente, da relação entre ambos.
● Cenário: natural ® aves, ramos,
fontes.
● Relação amor/natureza
Esta
cantiga evidencia um tópico/tema que posteriormente será desenvolvido por
autores como Petrarca ou Camões: a natureza reflete a relação
amorosa entre o par amoroso – canta e espalha a alegria amorosa; reflete o
esfriar amoroso, através das "manhãs frias", da queda dos ramos e da
secagem das fontes.
Por
outro lado, está também presente a oposição clássica entre a mudança cíclica da
natureza e a irreversibilidade da mudança do sentimento amoroso. De facto,
essas ações e o desaparecimento das aves remete para a destruição de um cenário
primaveril, conotado com a juventude, o amor, a esperança e a harmonia, e a sua
redução a um espaço de tom invernal, associado à tristeza, à solidão, ao
abandono, à esterilidade e à morte. Assim se sugere a destruição do amor por
parte do amigo.
●
Simbologia das aves
As
aves, através do seu canto, simbolizam o amor e a felicidade dele resultante.
Por outro lado, também através do canto, poderiam divulgar o amor vivido entre
a donzela e o amigo, daí surgirem personificadas.
● Recursos poético-estilísticos
1.
Nível fónico
.
Estrofes:
oito estrofes heterométricas de 3 versos.
.
Metro:
versos de 12 sílabas e 8 no refrão.
. Rima -
AAR / BBR;
- emparelhada;
- toante
("frias" / "diziam") e consoante ("dizian" /
"havian");
- rica
("frias" / "dizian") e pobre ("dizian" /
"havian");
- grave.
.
Ritmo
binário, lento, de acordo com a tristeza da donzela pela indiferença do amigo.
. Refrão: na 1.ª parte, traduz a alegria da
donzela por amar e ser amada e feliz; na 2.ª parte, adquire um sentido
humorístico-trágico, uma vez que a alegria da donzela já não existe.
.
Aliteração:
repetição das consoantes v e s.
.
Assonância
em i e á.
2.
Nível morfossintáctico
.
Paralelismo perfeito.
.
Leixa-prem.
. Substantivos: aves ® refletem a felicidade amorosa,
cantando o amor, e a ausência do amor;
aves, manhãs, ramos, fontes ® substantivos que
refletem, num primeiro momento, a felicidade amorosa, e, num segundo momento, a
ausência e o seu reflexo destrutivo na natureza.
. Adjetivos: frias ® caracteriza a
frieza amorosa presente, isto é, a ausência do amor;
leda ® refere-se, na 1.ª parte, à
felicidade da donzela e, na 2.ª, adquire um tom irónico.
.
Funções da linguagem:
. apelativa:
- verbos no
imperativo;
- vocativos;
. expressiva:
- adjetivos;
- refrão.
.
Verbos:
. modos:
® indicativo: o modo
da realidade;
® imperativo: o
apelo da donzela ao amigo para que se levante, ou seja, que retome o amor por
ela;
. tempos:
® pretérito
imperfeito - "as aves
cantavan" \ nosso amor -
Primavera
- "en ment'
avian" /
® pretérito perfeito - "vós lhi tolhestes os
ramos" \ destruição do amor
- "vós lhi
secastes as fontes" /
® presente - "levade" \ manhãs frias - Inverno
-
"dormides" /
.
Anáfora.
.
Hipérbato.
.
Frases:
declarativas.
.
Construção oracional:
predomínio da coordenação.
3.
Nível semântico
.
Apóstrofe
dirigida ao amigo, apelando-lhe ao retorno e ao amor.
. Personificação das aves, que
reflectem a relação amorosa, nos bons e maus momentos.
.
Metáforas:
- "vós lhi
tolhestes os ramos em que siian" \ significam que o amigo destruiu o amor
-
"e lhis secastes as fontes u se banhavam" / de ambos, destruiu o sustento e a habitação
do amor.
. Hipérbole: “todalas aves do
mundo” – o canto melodioso das aves sugere a intensa alegria causada pela
paixão.
● Classificação
1.
Cantiga de amigo.
1.1. Temática: alba / alvorada / serena.
1.1.1. Relação com
as albas provençais: a alba tem como cenário o amanhecer, que desperta os
amantes, acordados pelo corneteiro da corte ou por um amigo do amante. Por isso
se diz que a lírica provençal fala de um amor adúltero.
Na
lírica galego-portuguesa, não há albas como na lírica provençal e, como tal, a
sua designação é difícil. Na lírica galego-portuguesa, fala-se do amanhecer,
mas nunca da relação adúltera e da separação dos amantes.
1.2. Formal:
- cantiga
paralelística perfeita;
- cantiga de
refrão.
O
refrão mantém-se inalterado ao longo da cantiga, não obstante o seu valor ser
diferente em casa uma das partes.
Com
efeito, na primeira, ele traduz a alegria e a felicidade vividas pela donzela,
a evocação dos momentos idílicos da relação amorosa, enquanto na segunda
traduzem o lamento amargurado da jovem face à destruição progressiva do
relacionamento.
Por
outro lado, a ênfase posta na alegria por parte da donzela poderá sugerir que
esta ainda não perdeu totalmente a esperança de reverter a situação e de
regressar à alegria e felicidade experimentadas no passado.
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Poesia Trovadoresca
segunda-feira, 15 de outubro de 2018
domingo, 14 de outubro de 2018
sábado, 13 de outubro de 2018
Coerência textual
A coerência textual
é a propriedade que confere sentido global a um texto / enunciado, dizendo
respeito às relações de sentido que se estabelecem no texto e ao modo como ele
se apresenta lógico. As situações e as ideias veiculadas têm de ser lógicas e
adequadas ao conhecimento que os falantes têm da realidade, como, por exemplo,
as situações de ordenação temporal ou as relações de causalidade (Não saí porque
chovia.).
A coerência textual resulta de vários fatores:
(a) o género e a tipologia do texto[1];
(b) as relações intertextuais (as
relações com outros textos);
(c) os temas;
(d) a intencionalidade comunicativa
do autor do texto;
(e) a capacidade interpretativa do
leitor / recetor;
(f) o princípio da cooperação entre
emissor e recetor;
(g) do conhecimento do mundo e do
grau em que este conhecimento deve ser ou é compartilhado pelos interlocutores;
Por outro lado, como a coerência está dependente da
organização das ideias de um texto e à forma como elas se interligam a nível da
lógica e do sentido, esse texto deve obedecer a um conjunto de requisitos para estar bem estruturado e
produzir sentido:
(a) a unidade de conteúdo: o texto
deve tratar um tema central, que depois é desenvolvido e analisado;
(b) a continuidade[2]:
o texto contém unidade de tema garante que existe um fio condutor;
(c) a progressão: diz respeito ao
desenvolvimento das ideias e dos acontecimentos e ao aparecimento de nova
informação;
(d) a estrutura (normalmente, um
texto apresenta uma estrutura tripartida: Introdução, Desenvolvimento,
Conclusão);
(e) do domínio das regras que
regulam a língua, o que permite as várias combinações dos elementos linguísticos;
Para
que um texto tenha coerência, é necessário também ter em conta alguns
mecanismos:
Mecanismos
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Exemplos
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Na
coordenação, os factos descritos são apresentados segundo a ordem por que
acontecem.
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A calçada portuguesa nasceu
em Lisboa, espalhou-se pelo país, alastrou pelo mundo.
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Seria
incoerente dizer: A calçada portuguesa
nasceu em Lisboa, alastrou pelo mundo, espalhou-se pelo país.
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Na
subordinação, é possível reconhecer uma relação de causa-efeito, de condição
ou consequência entre os acontecimentos descritos.
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Faltam calceteiros
profissionais, porque a Escola de Calceteiros formou poucos.
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Relação
de causa-efeito (causa: a Escola de Calceteiros formou poucos
calceteiros; efeito: faltam calceteiros profissionais.
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Os calceteiros são tão
poucos que não chegam para fazer a manutenção da calçada.
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Relação
de consequência.
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Se houvesse mais calceteiros, as
calçadas estariam em melhor estado.
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Relação
de condição.
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A
ordenação é feita de acordo com relações lógicas (ex.: classe-elemento,
todo-parte) ou segundo a forma como percecionamos a realidade.
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Faltam calceteiros profissionais
que façam a calçada como manda a tradição: pedras bem cortadas,
com o máximo de dois milímetros de separação, coladas com areia lavada
pelo rio.
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Primeiro
apresenta-se o todo (“calçada”), depois as partes – “pedras” (parte que percecionamos em
primeiro lugar) e “areia” (parte
que percecionamos em segundo lugar).
|
Atentemos
nas palavras de Vilas-Boas e Vieira (Entre
Palavras 11, pág. 21):
“Ao leres o capítulo I do Sermão pudeste observar que:
● nada nele vai contra o que conheces do mundo, em geral, e do mundo
do século XVII, em particular; por outras palavras, o ouvinte do sermão ou o
leitor do mesmo reconheceria, ao ouvi-lo ou ao lê-lo nesse século, as
coordenadas religiosas, culturais ou sociais do seu mundo como corretas;
● ele se apresenta ordenado logicamente, seguindo uma progressão
evidente, que começa na constatação de que a terra está corrupta e na indagação
das causas deste estado; o texto progride, criticando os maus pregadores e os
maus ouvintes; apresenta depois o exemplo de Santo António e da sua pregação
aos peixes, dado não ter audiência humana, e termina com a resolução do
pregador em pregar também aos peixes, uma vez que nada espera dos homens.
Por estes motivos, o
texto apresenta coerência textual, a
propriedade dos textos que:
● representam a normalidade do
mundo;
● se apresentam logicamente
ordenados;
● progridem através de relações
lógicas internas ou intratextuais – de causa, de consequência, etc.;
● não apresentam informação
contraditória entre si.
A coerência textual ocorre quando as ideias e os conceitos
transmitidos pelo texto estão de acordo com o conhecimento que o leitor tem
do mundo e quando o texto possui uma lógica interna e respeita os princípios
da relevância, da não contradição e da não tautologia.
|
Existem diferentes tipos
de coerência.
A. Coerência lógico-conceptual: uma frase ou um texto é
coerente se as situações nele criadas estiverem de acordo com aquilo que
sabemos acerca do mundo e se forem respeitados alguns princípios que orientam a expressão do pensamento bem
estruturado.
· «O carro está amolgado porque
não bateu.»
¯
Esta
frase é incoerente porque estabelece uma relação de causalidade que se opõe ao
conhecimento que temos do mundo.
Os
princípios a que um texto tem de
obedecer para ser coerente são os seguintes:
1.º)
Princípio da não contradição:
um texto coerente não deve representar situações incompatíveis ou
contraditórias entre si; devem ser compatíveis entre si e com o mundo (quer no
que está explícito quer no que se pode inferir) – por exemplo, a pessoa ou os
tempos verbais não se devem contradizer:
· O
número três é ímpar e é par. [texto incoerente]
· Estar vivo é estar morto.
[texto incoerente]
·
Estão 40 graus lá fora. Vou vestir um sobretudo. [texto incoerente]
· Entrei
no consultório. Havia revistas de capas coloridas. Uma pequena mesa estava
debaixo delas.
¯
A
frase é incoerente, pois a ordenação lógica
dos elementos descritos não corresponde ao modo como geralmente os percecionamos
na realidade.
· Entrei
no escritório. Havia revistas de capas coloridas em cima de uma pequena mesa.
¯
A
frase é coerente.
· Entrei
no consultório. Primeiro vi revistas de capas coloridas. Só depois reparei na
pequena mesa que estava debaixo delas.
¯
A
frase é coerente, pois as formas linguísticas «primeiro» e «só depois»
determinam a ordem pela qual a realidade foi percecionada.
2.º)
Princípio da relevância:
–
um texto coerente deve apresentar informações (situações e acontecimentos) que
estejam relacionadas entre si, por meio de relações intratextuais (organização
temporal, relações de semelhança, de oposição, de causa-efeito, de parte-todo
ou todo-parte, de geral-particular ou particular-geral, de classe-elemento ou
elemento-classe, de compatibilidade / incompatibilidade entre um tema e as
informações remáticas a ele ligadas);
–
o que é transmitido deve ser compatível com o conhecimento que os leitores têm
do mundo;
–
um texto seleciona apenas aquilo que é importante para a sua progressão
temática, para a consecução do objetivo da comunicação, devendo, pois,
suprimir-se o que não é relevante ou o que é facilmente dedutível.
· Estou
a estudar gramática. O meu irmão gosta de
rebuçados. A coerência é uma matéria interessante. [texto incoerente]
· Gostei
muito deste livro porque amanhã vou sair. ® A frase não é coerente porque
não há uma relação de causa / consequência entre os eventos descritos.
· «A mesa dançou toda a noite.»
¯
A
frase é incoerente, pois as propriedades atribuídas ao objeto «mesa» não são
conformes à nossa visão do mundo. Poderá, no entanto, assumir coerência se,
enquadrada num determinado contexto, funcionar com valor estilístico – por
exemplo, de personificação.
· «A Ernestina dançou toda a
noite com o namorado.»
¯
A
frase é coerente.
3.º)
Princípio da não redundância ou tautologia:
para que seja coerente, um texto deve conter informação nova (progressão
temática), ou seja, novos tópicos de conteúdo, evitando as repetições ou redundâncias
desnecessárias/inúteis. A repetição das mesmas ideias por palavras diferentes
torna o texto excessivo e rebuscado.
· Estar vivo é o contrário de
estar morto.
· O
Afonso chegou atrasado por causa do pai. O seu pai foi o responsável pelo seu
atraso. Por isso ele não chegou cedo. ®
O texto é
incoerente, pois transmite uma informação quase nula, uma vez que esta é
repetida constantemente.
B. Coerência
pragmático-funcional:
o texto é construído e articulado com coerência quando se adequa à situação de
comunicação, de acordo com
Ä a articulação entre atos
ilocutórios;
Ä
a adequação à situação de comunicação (ao contexto e aos interlocutores);
Ä a intenção comunicativa.
· «Declaro-vos marido e mulher.»
¯
O
enunciado só será coerente se for proferido pela pessoa institucionalmente
adequada (ex.: um padre), no contexto apropriado.
· A ‑ «Vamos à praia amanhã?»
B ‑ «Tenho de
estudar.»
¯
A
resposta dada à pergunta formulada em A só será coerente se o locutor proceder
a uma inferência pragmática, ou seja, se do enunciado de B inferir uma resposta
negativa ao convite.
C.
Isotopia
A
isotopia (do grego isó = mesmo, igual
+ tópos = tópico, lugar) é outra
forma de conferir coerência a um texto e remete para a presença de uma temática
que se manifesta em diferentes expressões da mesma área de sentido, isto é, a
repetição de palavras e expressões semanticamente equivalentes ao longo da
sequência textual.
Por
exemplo, no soneto “A formosura desta fresca serra”, Camões aborda a isotopia
da dor / saudade causada pela ausência da mulher amada através de um conjunto
de palavras ou expressões semanticamente equivalentes: tristeza, magoando, enoja, aborrece, tristeza.
D.
Pontuação
A
pontuação é um elemento decisivo na construção da coerência de um texto. De
facto, um texto mal pontuado é difícil de perceber ou torna-se mesmo
incompreensível.
Ex.:
Um homem tinha um cão e a mãe do homem era também o pai do cão.
¯
A ausência de
pontuação torna a frase ininteligível. Porém, se a pontuação for acrescentada,
ela adquire sentido: Um homem tinha um
cão e a mãe; do homem era também o pai do cão. (= o homem tinha três cães:
pai, mãe e filho).
[1] A coerência textual
depende também dos géneros de textos:
- há
géneros textuais em que a liberdade interpretativa do leitor é limitada:
Ex.:
artigo de divulgação científica, exposição sobre um tema.
- há
géneros textuais em que a liberdade interpretativa do leitor é alargada:
Ex.:
discurso político, apreciação crítica, anúncio publicitário.
[2] A coerência textual tem
como característica a continuidade de sentido,
-
resultando das estruturas existentes no texto (graças à criatividade, à técnica
e à intencionalidade do autor);
-
relacionando-se com as relações de intertextualidade, as relações
intratextuais, os campos lexicais e semânticos e os mecanismos sintáticos.
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