Português: Coerência textual

sábado, 13 de outubro de 2018

Coerência textual


         A coerência textual é a propriedade que confere sentido global a um texto / enunciado, dizendo respeito às relações de sentido que se estabelecem no texto e ao modo como ele se apresenta lógico. As situações e as ideias veiculadas têm de ser lógicas e adequadas ao conhecimento que os falantes têm da realidade, como, por exemplo, as situações de ordenação temporal ou as relações de causalidade (Não saí porque chovia.).

         A coerência textual resulta de vários fatores:
(a) o género e a tipologia do texto[1];
(b) as relações intertextuais (as relações com outros textos);
(c) os temas;
(d) a intencionalidade comunicativa do autor do texto;
(e) a capacidade interpretativa do leitor / recetor;
(f) o princípio da cooperação entre emissor e recetor;
(g) do conhecimento do mundo e do grau em que este conhecimento deve ser ou é compartilhado pelos interlocutores;

         Por outro lado, como a coerência está dependente da organização das ideias de um texto e à forma como elas se interligam a nível da lógica e do sentido, esse texto deve obedecer a um conjunto de requisitos para estar bem estruturado e produzir sentido:
(a) a unidade de conteúdo: o texto deve tratar um tema central, que depois é desenvolvido e analisado;
(b) a continuidade[2]: o texto contém unidade de tema garante que existe um fio condutor;
(c) a progressão: diz respeito ao desenvolvimento das ideias e dos acontecimentos e ao aparecimento de nova informação;
(d) a estrutura (normalmente, um texto apresenta uma estrutura tripartida: Introdução, Desenvolvimento, Conclusão);
(e) do domínio das regras que regulam a língua, o que permite as várias combinações dos elementos linguísticos;

         Para que um texto tenha coerência, é necessário também ter em conta alguns mecanismos:

Mecanismos
Exemplos
Na coordenação, os factos descritos são apresentados segundo a ordem por que acontecem.
A calçada portuguesa nasceu em Lisboa, espalhou-se pelo país, alastrou pelo mundo.
Seria incoerente dizer: A calçada portuguesa nasceu em Lisboa, alastrou pelo mundo, espalhou-se pelo país.
Na subordinação, é possível reconhecer uma relação de causa-efeito, de condição ou consequência entre os acontecimentos descritos.
Faltam calceteiros profissionais, porque a Escola de Calceteiros formou poucos.
Relação de causa-efeito (causa: a Escola de Calceteiros formou poucos calceteiros; efeito: faltam calceteiros profissionais.
Os calceteiros são tão poucos que não chegam para fazer a manutenção da calçada.
Relação de consequência.
Se houvesse mais calceteiros, as calçadas estariam em melhor estado.
Relação de condição.
A ordenação é feita de acordo com relações lógicas (ex.: classe-elemento, todo-parte) ou segundo a forma como percecionamos a realidade.
Faltam calceteiros profissionais que façam a calçada como manda a tradição: pedras bem cortadas, com o máximo de dois milímetros de separação, coladas com areia lavada pelo rio.
Primeiro apresenta-se o todo (“calçada”), depois as partes – “pedras” (parte que percecionamos em primeiro lugar) e “areia” (parte que percecionamos em segundo lugar).

         Atentemos nas palavras de Vilas-Boas e Vieira (Entre Palavras 11, pág. 21):

  “Ao leres o capítulo I do Sermão pudeste observar que:
nada nele vai contra o que conheces do mundo, em geral, e do mundo do século XVII, em particular; por outras palavras, o ouvinte do sermão ou o leitor do mesmo reconheceria, ao ouvi-lo ou ao lê-lo nesse século, as coordenadas religiosas, culturais ou sociais do seu mundo como corretas;
ele se apresenta ordenado logicamente, seguindo uma progressão evidente, que começa na constatação de que a terra está corrupta e na indagação das causas deste estado; o texto progride, criticando os maus pregadores e os maus ouvintes; apresenta depois o exemplo de Santo António e da sua pregação aos peixes, dado não ter audiência humana, e termina com a resolução do pregador em pregar também aos peixes, uma vez que nada espera dos homens.
Por estes motivos, o texto apresenta coerência textual, a propriedade dos textos que:
representam a normalidade do mundo;
se apresentam logicamente ordenados;
progridem através de relações lógicas internas ou intratextuais – de causa, de consequência, etc.;
não apresentam informação contraditória entre si.

         A coerência textual ocorre quando as ideias e os conceitos transmitidos pelo texto estão de acordo com o conhecimento que o leitor tem do mundo e quando o texto possui uma lógica interna e respeita os princípios da relevância, da não contradição e da não tautologia.


         Existem diferentes tipos de coerência.

A. Coerência lógico-conceptual: uma frase ou um texto é coerente se as situações nele criadas estiverem de acordo com aquilo que sabemos acerca do mundo e se forem respeitados alguns princípios que orientam a expressão do pensamento bem estruturado.

· «O carro está amolgado porque não bateu.»
¯
Esta frase é incoerente porque estabelece uma relação de causalidade que se opõe ao conhecimento que temos do mundo.


         Os princípios a que um texto tem de obedecer para ser coerente são os seguintes:

1.º) Princípio da não contradição: um texto coerente não deve representar situações incompatíveis ou contraditórias entre si; devem ser compatíveis entre si e com o mundo (quer no que está explícito quer no que se pode inferir) – por exemplo, a pessoa ou os tempos verbais não se devem contradizer:

· O número três é ímpar e é par. [texto incoerente]

· Estar vivo é estar morto. [texto incoerente]

· Estão 40 graus lá fora. Vou vestir um sobretudo. [texto incoerente]

· Entrei no consultório. Havia revistas de capas coloridas. Uma pequena mesa estava debaixo delas.
¯
A frase é incoerente, pois a ordenação lógica dos elementos descritos não corresponde ao modo como geralmente os percecionamos na realidade.

· Entrei no escritório. Havia revistas de capas coloridas em cima de uma pequena mesa.
¯
A frase é coerente.

· Entrei no consultório. Primeiro vi revistas de capas coloridas. Só depois reparei na pequena mesa que estava debaixo delas.
¯
A frase é coerente, pois as formas linguísticas «primeiro» e «só depois» determinam a ordem pela qual a realidade foi percecionada.


2.º) Princípio da relevância:
– um texto coerente deve apresentar informações (situações e acontecimentos) que estejam relacionadas entre si, por meio de relações intratextuais (organização temporal, relações de semelhança, de oposição, de causa-efeito, de parte-todo ou todo-parte, de geral-particular ou particular-geral, de classe-elemento ou elemento-classe, de compatibilidade / incompatibilidade entre um tema e as informações remáticas a ele ligadas);
– o que é transmitido deve ser compatível com o conhecimento que os leitores têm do mundo;
– um texto seleciona apenas aquilo que é importante para a sua progressão temática, para a consecução do objetivo da comunicação, devendo, pois, suprimir-se o que não é relevante ou o que é facilmente dedutível.

· Estou a estudar gramática. O meu irmão gosta de rebuçados. A coerência é uma matéria interessante. [texto incoerente]

· Gostei muito deste livro porque amanhã vou sair. ® A frase não é coerente porque não há uma relação de causa / consequência entre os eventos descritos.

· «A mesa dançou toda a noite.»
¯
A frase é incoerente, pois as propriedades atribuídas ao objeto «mesa» não são conformes à nossa visão do mundo. Poderá, no entanto, assumir coerência se, enquadrada num determinado contexto, funcionar com valor estilístico – por exemplo, de personificação.

· «A Ernestina dançou toda a noite com o namorado.»
¯
A frase é coerente.


3.º) Princípio da não redundância ou tautologia: para que seja coerente, um texto deve conter informação nova (progressão temática), ou seja, novos tópicos de conteúdo, evitando as repetições ou redundâncias desnecessárias/inúteis. A repetição das mesmas ideias por palavras diferentes torna o texto excessivo e rebuscado.

· Estar vivo é o contrário de estar morto.

· O Afonso chegou atrasado por causa do pai. O seu pai foi o responsável pelo seu atraso. Por isso ele não chegou cedo. ® O texto é incoerente, pois transmite uma informação quase nula, uma vez que esta é repetida constantemente.



B. Coerência pragmático-funcional: o texto é construído e articulado com coerência quando se adequa à situação de comunicação, de acordo com

Ä a articulação entre atos ilocutórios;

Ä a adequação à situação de comunicação (ao contexto e aos interlocutores);

Ä a intenção comunicativa.

· «Declaro-vos marido e mulher.»
¯
O enunciado só será coerente se for proferido pela pessoa institucionalmente adequada (ex.: um padre), no contexto apropriado.

· A ‑ «Vamos à praia amanhã?»
B ‑ «Tenho de estudar.»
¯
A resposta dada à pergunta formulada em A só será coerente se o locutor proceder a uma inferência pragmática, ou seja, se do enunciado de B inferir uma resposta negativa ao convite.



C. Isotopia

         A isotopia (do grego isó = mesmo, igual + tópos = tópico, lugar) é outra forma de conferir coerência a um texto e remete para a presença de uma temática que se manifesta em diferentes expressões da mesma área de sentido, isto é, a repetição de palavras e expressões semanticamente equivalentes ao longo da sequência textual.
         Por exemplo, no soneto “A formosura desta fresca serra”, Camões aborda a isotopia da dor / saudade causada pela ausência da mulher amada através de um conjunto de palavras ou expressões semanticamente equivalentes: tristeza, magoando, enoja, aborrece, tristeza.



D. Pontuação

         A pontuação é um elemento decisivo na construção da coerência de um texto. De facto, um texto mal pontuado é difícil de perceber ou torna-se mesmo incompreensível.
Ex.: Um homem tinha um cão e a mãe do homem era também o pai do cão.
¯
A ausência de pontuação torna a frase ininteligível. Porém, se a pontuação for acrescentada, ela adquire sentido: Um homem tinha um cão e a mãe; do homem era também o pai do cão. (= o homem tinha três cães: pai, mãe e filho).




[1] A coerência textual depende também dos géneros de textos:
- há géneros textuais em que a liberdade interpretativa do leitor é limitada:
Ex.: artigo de divulgação científica, exposição sobre um tema.
- há géneros textuais em que a liberdade interpretativa do leitor é alargada:
Ex.: discurso político, apreciação crítica, anúncio publicitário.
[2] A coerência textual tem como característica a continuidade de sentido,
- resultando das estruturas existentes no texto (graças à criatividade, à técnica e à intencionalidade do autor);
- relacionando-se com as relações de intertextualidade, as relações intratextuais, os campos lexicais e semânticos e os mecanismos sintáticos.

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