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sábado, 31 de maio de 2025

Trump e Putin a brincar com o fogo da guerra


    Este cartune, de forte teor crítico e simbólico, retrata os líderes Donald Trump e Vladimir Putin, respetivamente dos Estados Unidos e da Rússia, em trajes primitivos, agachados ao redor de uma fogueira onde arde uma espécie de rolo de madeira das cores da Ucrânia com a palavra “Ukraine”, numa cena que evoca o homem pré-histórico, fazendo uso do fogo no interior de uma caverna (sugerida pelo fundo da imagem escuro) para cozer alimentos. A cena é carregada de ironia e simbolismo político, aludindo diretamente ao conflito entre a Rússia e a Ucrânia, mas também à postura ambígua dos Estados Unidos em relação ao mesmo.

    Donald Trump aparece a segurar um pau com um pombo branco (símbolo da paz) preso na ponta, que está a assar diretamente sobre o fogo. O pombo transporta no bico um ramo de oliveira verde (símbolo da esperança e da vida), reforçando a imagem da paz ameaçada. Ao mesmo tempo, Trump dirige-se a Putin com a frase: “Vlad, don’t play with fire!” (“Vlad, não brinques com o fogo!”). Esta fala metafórica comporta uma pesada carga de ironia, pois ele próprio está a contribuir ativamente para o agravamento do conflito, demonstrando uma hipocrisia implícita — alerta o outro para o perigo enquanto pratica uma ação igualmente incendiária.

    Putin, por sua vez, é representado com uma expressão feroz e uma postura agressiva, lançando mísseis em direção ao lume. A sua atitude deixa claro o papel ativo da Rússia no conflito (o iniciador e instigador), reforçando a ideia de que está a alimentar intencionalmente as chamas da guerra.

    A imagem do fogo, símbolo universal de destruição, violência e descontrolo, representa aqui a guerra na Ucrânia. Recordemos que o seu domínio foi uma das maiores conquistas da humanidade, símbolo de poder e sobrevivência. Neste cartune, o fogo é usado para “cozinhar” a paz, representada pelo pombo, o que sugere que esses líderes ainda lidam com os conflitos de forma bárbara, destrutiva e impulsiva, como se estivessem presos a uma mentalidade arcaica. Por sua vez, o toro com a inscrição “UKRAINE” funciona como base da fogueira, indicando que é este território o foco da destruição e da disputa de poder entre as grandes potências.

    Ambos os líderes estão infantilizados e caricaturados, com corpos desproporcionais e em trajes ridículos, o que pode ser interpretado como uma crítica à sua falta de maturidade e responsabilidade, bem como à ausência de racionalidade que os caracteriza. Esta escolha estética sugere que, apesar do poder que detêm, comportam-se como crianças inconscientes das consequências das suas ações.

    Em suma, o cartune utiliza o humor negro e a caricatura para expor a incoerência e a irresponsabilidade dos líderes mundiais perante um conflito de grande escala. Ao apresentar Trump como alguém que parece apelar à paz enquanto participa na sua destruição e Putin como o instigador ativo da violência, a imagem comporta uma crítica contundente: a paz está a ser sacrificada por egos políticos, jogos de poder e atitudes que, embora envoltas em discursos oficiais, são profundamente destrutivas. É uma representação visual poderosa da complexidade e da tragédia geopolítica contemporânea.

quinta-feira, 8 de maio de 2025

Benfica é campeão de voleibol feminino

Voleibol feminino Benfica

    Cinquenta anos depois, o Benfica volta a ser campeão nacional de voleibol feminino, conquistando o seu 10.º título. A última vez que tinha acontecido fora na longínqua época de 1974-1975, a qual coincidiu com o nono título obtido pelas chamadas Marias.

    «As Marias do Benfica» é a designação com que ficou conhecida a equipa do Benfica dos anos 60 e 70 do século XX, a qual conquistou nove títulos nacionais consecutivos entre 1966/67 e 1974 e 1975. O nome não surgiu por acaso. De facto, todas as jogadoras dessa equipa de ouro se chamavam Maria.

    Cinquenta anos depois, o campeonato regressa a casa.

Campeãs nacionais

sexta-feira, 2 de maio de 2025

"Amor, co'a esperança já perdida", análise do poema de Camões

Este soneto, com rima interpolada e emparelhada nas quadras e interpolada nos tercetos, segundo o esquema rimático ABBA / ABBA / CDE / CDE, e versos decassilábicos sáficos (vv. 8 e 10) e heroicos (os restantes), aborda o tópico navigium amoris, herdado dos poetas gregos e latinos, ou seja, o amor – personificado enquanto divindade – é como um mar tempestuoso, o mar das paixões amorosas, em que se debate o barco que simboliza o amante.

    O «eu» poético dirige uma apóstrofe ao Amor personificado, comunicando-lhe ter visitado o seu templo depois de ter perdido a esperança por ter ficado sem o seu amor. Segundo Faria e Sousa, Camões cantou as esperanças de duas formas: “la primera por las finezas de sus amores que dulcemente cantava; la segunda la de sus cantos celebrando la Patria y los Heroes della”. Neste soneto, o poeta recorre à renuntiatio amoris como motivo principal, construída sobre a metáfora do naufrágio amoroso. A primeira quadra versa precisamente sobre a representação do motivo do ex-voto,isto é, o sofrimento amoroso é comparado a uma tempestade da qual o marinheiro foi salvo e, por isso, leva as suas oferendas ao templo como agradecimento à divindade que o salvou. A fonte de inspiração de Camões foi a ode 5 do livro I de Horácio. Por outro lado, além deste soneto, ele aborda o mesmo tópico noutros poemas, como, por exemplo, “Como quando do mar tempestuoso”. Camões, neste soneto, apresenta a oferta do ex-voto não no formato de roupas, mas sim a própria vida. Por outro lado, se Horácio e Garcilaso, nos seus poemas, agradecem por ainda estarem vivos e livres desse amor, o poeta português doa a sua “alma, vida e esperança”, lamentando o facto de ainda estar vivo, e queixando-se da privação desse amor.

    Apesar do texto fixado por Costa Pimpão apresentar o termo «soberano» no segundo verso, as fontes manuscritas trazem «sagrado», divergência que é entendida por alguns estudiosos como uma correção imposta pela censura, desde logo porque não é o único caso em que aquela modificou o texto de um poema camoniano. De facto, a censura foi uma prática tradicional da Igreja, que, na luta contra a heresia, proibia a publicação de termos pouco ortodoxos, como, por exemplo, tratar como «sagrado» o templo do Amor. Sendo exclusivamente reservado ao uso religioso, esta palavra pertence à lista de vocábulos que foram objeto de censura.

    O «eu» poético – aquele que ama – deposita a alma, a vida e a esperança mo templo do Amor, em vez das oferendas comumente dadas aos deuses pelos náufragos como forma de agradecimento. Regra geral, os náufragos seguiam até ao templo dos deuses para agradecer o facto de ainda estarem vivos, porém Camões atua de forma inversa, isto é, coloca o sujeito poético a deslocar-se ao templo para protestar o facto de ainda estar vivo e questiona o desejo de vingança do próprio Amor, que é percebido como entidade hostil, chegando mesmo a afirmar que a maior vingança seria deixá-lo vivo a chorar do que tirar-lhe a vida: “nelas podes tomar de mim vingança; / e se inda não estás de mim vingado, / contenta-te com as lágrimas que choro.” (vv. 12-14).

    O sujeito lírico põe a sua vida em vez das oferendas habitualmente feitas, porque já se considerava morto para as pretensões do mundo, em particular as amorosas, ou porque desejava morrer. O nome «vestidos» (v. 4) alude ao facto de o náufrago, depois de escapar ao perigo, pendurar as vestes e outros despojos do naufrágio, como ex-voto, na parede do tempo do deus invocado durante a tempestade em alto mar. Os «vestidos» eram os principais testemunhos de um naufrágio, que eram colocados no templo. Esta passagem do soneto forma uma imagética associada ao tópico do naufrágio amoroso.

    A imagem do templo do Amor, presente na primeira quadra, pode assumir três formas diferentes. A mais simples é o templo como igreja, que encontramos, por exemplo, em Malatesta Malatesi. Noutra, templo é usado como metáfora do corpo, nomeadamente da pessoa amada, como sucede com Pietro Bembo ou Bernardo Capello, que assinala as semelhanças entre o templo do Amor e o rosto da mulher amada: as portas são os lábios; o teto é o cabelo louro, que cobre paredes de mármore brancas e vermelhas, isto é, a face; o grande tesouro são as próprias tranças de ouro. Por vezes, o templo refere-se ao coração do amante, dado que guarda o culto e a memória da imagem amada.

    Nos dois versos iniciais da segunda quadra, o «eu» poético questiona Amor, perguntando-lhe que mais poderá querer dele, depois de ter destruído toda a glória que alcançara, isto é, o privilégio de ter vivido um amor sublime. O facto de poder desfrutar, ou não, deste amor está no poder da divindade. No momento em que decide retirá-lo, é considerado pelo que ama como um tirano. Os dois versos seguintes, por meio da metáfora e do oximoro, apresentam a recusa do sujeito lírico em “tornar a entrar onde não há saída”, ou seja, num caminho sem saída.

    O verso 9 apresenta uma enumeração de três nomes: «alma», «vida» e «esperança», dois dos quais se encontram no primeiro («esperança») e no quarto («vida») da primeira quadra. Esses três nomes designam os «despojos», os restos ou fragmentos do passado. Na prática, os versos 9 e 10 patenteiam o jogo dialético, bem característico de Camões, entre o bem passado (“de meu bem passado”) e o mal presente. Esse bem durou “enquanto quis aquela que eu adoro.” (v. 11), ou seja, enquanto lhe correspondeu amorosamente?

    O segundo terceto constitui o clímax do soneto. O sujeito poético, depois de ter oferecido a sua alma, vida e esperança, acaba oferecendo as suas próprias lágrimas – o seu sofrimento, a sua mágoa, a sua dor –, que são para ele mais dolorosas do que a própria morte. Atente-se no recurso ao poliptoto (figura de estilo que faz a alteração flexional de uma parte do corpo da palavra) de “mim vingança” / “de mim vingado”. Note-se que o Amor é representado, nesta composição poética, como uma entidade mítica caracterizada como omnipresente e possuidora de uma natureza vingativa (“destruída / me tens a glória toda que alcancei.” – vv. 5-6; “podes tomar de mim vingança” – v. 12; “não estás de mim vingado” – v. 13). Por outro lado, o texto desenvolve-se num crescendo: nas duas quadras, os verbos encontram-se maioritariamente no passado (pretérito perfeito: «visitei», «passei», «pus»), enquanto os tercetos começam e terminam com os verbos no presente («Vês» e «choro»), o que significa que o futuro está excluído, pois o sujeito poético não consegue libertar-se dessa prisão do Amor, prefere a morte e, portanto, não é capaz de se projetar num futuro.

    Ainda relativamente ao segundo terceto, nomeadamente o verso 12, focado no tema da vingança não é caso único na obra camoniana, onde aquele que ama, tendo perdido a esperança, afirma preferir morrer a viver no seu tormento de amor. É o que sucede, por exemplo, no soneto “Se algu’hora em vós a piedade”, no qual Camões declara o seguinte: “tomarão tristes lágrimas vingança / nos olhos de quem fostes mantimento. // E assim darei vida a meu tormento; / que, enfim, cá me achará minha lembrança / sepultado no vosso esquecimento.” Note-se que Camões, além de usar nomes como «vingança», culmina o soneto com o termo «sepultado», indiciando novamente que a morte é a única fonte de liberdade.

 
Bibliografia:
. VITALI, Marimilda, “As cadeias da esperança”

terça-feira, 29 de abril de 2025

"O vencedor vencido": análise do poema, de Isabel Gouveia

 
Não é fácil amar o que venceu,
o que leva alguns passos de avançada,
que o amor só se oferece ao que perdeu,
muito embora com culpa declarada.
Todavia, o que vence multiplica
sobre si as angústias de perder:
interroga, analisa e só complica
aquilo que não pode perceber;
e quando, em esgotamento prematuro,
ele aceita uma calma provisória,
vêm os homens que o lançam contra o muro
e lhe atiram ao rosto essa vitória.
 
    O sujeito poético inicia o poema com uma constatação amarga: o vencedor não é facilmente amado (“Não é fácil amar o que venceu”). De certa forma, esta ideia de que o amor não se dirige ao vencedor contraria o senso comum. Pelo contrário, o amor é destinado ao derrotado (“ao que perdeu”), à figura fragilizada, mesmo que seja culpado de algo (da própria derrota?). Ou seja, ao invés do que é comum, afirma-se a preferência por amar o que falha e é derrotado, em vez daquele que triunfa. Deste modo, o vencedor, em lugar de ser celebrado, é marginalizado no que toca ao amor, pelo que a vitória, o triunfo, em vez de atrair o sentimento amoroso, repele-o.

    O quinto verso introduz uma ideia contrária, traduzida pelo recurso à conjunção coordenativa adversativa «todavia»: aquele que vence, mesmo tendo triunfado, não encontra paz, pelo contrário, “multiplica / sobre si as angústias de perder. Ele carrega uma angústia: sente o peso da derrota, não por ter perdido, mas por recear perder o que ganhou. A sequência de formas verbais presentes no verso 7 – “interroga, analisa e só complica” – denuncia o seu estado de inquietação natural. Assim sendo, pode concluir-se que a vitória não traz segurança e tranquilidade, mas fragilidade, dúvida, e ele carrega um conflito interno, dado que procura encontrar um sentido, mas não o consegue: “aquilo que não perceber”.
    Toda esta situação conduz o vencedor a um “esgotamento prematuro”, proveniente da dúvida, da incerteza e da solidão que acompanha o triunfo, cuja consequência é a aceitação não de uma paz real, mas meramente provisória. No entanto, esse momento não dura, não é respeitado, em virtude “os homens” agirem violentamente contra ele, lançando-o contra o muro “e lhe atiram ao rosto essa vitória”, isto é, aquilo que foi uma conquista sua é usada como arma contra ele. A vitória é-lhe atirada ao rosto como uma acusação, não como glória. Aquilo que permitiria que se destacasse acaba por se tornar motivo de punição. Os homens, que representarão a sociedade, não toleram ou não perdoam o êxito.

    O poema desconstrói a ideia da vitória como glória e clarifica os seus efeitos colaterais ou consequências: solidão, incerteza, dúvida, desgaste, angústia e até rejeição social. Deste modo, o vencedor constitui uma figura que, ao invés de herói, se revela mártir da própria vitória. O título do texto ilustra esta noção: a vitória externa esconde uma derrota interior (e social).
    
    O triunfador alcançou o triunfo, porém, em simultâneo, passou a carregar o fardo das expectativas: dos outros, de si mesmo, dos “homens”. A vitória, assim, não é um momento de glória e de libertação, mas de angústia e aprisionamento. Ao longo do poema, ele revela angústia existencial (“multiplica sobre si as angústias de perder”), autoquestionamento constante (“interroga, analisa e só complica”) e culpa por ter superado os outros. Tudo isto leva-o a viver num estado de vigilância e de desgaste mental e, quando procura a paz, mesmo que provisória, é castigado.

    Do ponto de vista simbólico, o vencedor é visto como alguém que faz uma afronta ao coletivo – os “homens” –, uma figura mítica que quebra a harmonia do grupo por se destacar, o que o transforma num alvo. Deste modo, podemos concluir que a sociedade não tolera o que escapa à norma, a uma certa mediania, nem mesmo o sucesso individual.

quinta-feira, 24 de abril de 2025

"Paz": análise do poema de Tomaz Kim

 
PAZ
 

Aqui foi a casa:

Alva a toalha e o pão,

O berço além.

 

Breve a canção:

Bater de asa

O sorriso de mãe.

 

Veloz a hora:

Agora,

Só o coaxar noturno e certo

Das rãs,

Enche o campo deserto.

 
    Tomaz Kim foi um poeta, tradutor e ensaísta literário angolano, de nome completo Joaquim Fernandes Tomaz Monteiro-Grillo. Nasceu no Lobito, Angola, em 2 de fevereiro de 1915, e faleceu em Lisboa, a 24 de janeiro de 1967.

    Neste poema, constituído por dois tercetos e uma quintilha, de versos livres, curtos e sem pontuação, aborda a temática da passagem do tempo e da efemeridade da vida. O verso inicial remete para o passado, como se pode comprovar pela presença da forma verbal «foi», no pretérito perfeito do indicativo, situado num espaço, indiciado pelo advérbio de lugar «aqui» e pelo grupo nominal «a casa». Ou seja, o «eu» poético exprime a lembrança de um lar que existiu, mas já não existe, ou, pelo menos, já não existe como antes. Agora, resta apenas uma lembrança. A toalha, o pão e o berço remetem para o universo doméstico: é uma imagem de simplicidade, segurança e acolhimento – trata-se de elementos do quotidiano que representam a vida familiar, acentuado pela referência ao “berço além”, sinónimo da existência de crianças, de filhos, naquela casa, o que constitui uma referência à infância, um tempo de inocência e ternura.

    A segunda estrofe é constituída por imagens que sugerem o domínio do passageiro, como o exemplifica a alusão à canção breve, símbolo da transitoriedade. Essa ideia é reforçada pela imagem do “Bater de asa”, que indicia o efémero, o fugaz, como o tempo e a infância que passam. Também o sorriso da mãe constitui uma imagem forte que transmite s noções de calor humano, carinho, afeto, proteção, bem como um sentimento quase sagrado, ligado ao cuidado e à memória afetiva. Esse sorriso e tudo o que ele simbolizava foi um bater de asa, não foi duradouro; pelo contrário, foi passageiro – pelo menos, é essa a sensação do sujeito lírico – e já não existe mais, pois pertence a um passado que já passou e não voltará. Tudo passou muito rápido, como o bater de asas de uma ave.

    A terceira e última estrofe abre com um verso que retoma o tema central do texto: a passagem do tempo e a brevidade da vida – “Veloz a hora”. O passado a que se referiu anteriormente passou depressa. De seguida, através do advérbio de tempo «agora», salta para o presente, que é um tempo que contrasta com o passado. De facto, atualmente, não há mais risos, alegria, carinho, proteção, nem vida doméstica e familiar, que foram substituídos pelo “coaxar noturno e certo das rãs”. A noite é uma parte do dia propícia à solidão e à reflexão. Essa solidão, agora, é preenchida apenas pelo som do coaxar das rãs. O ambiente, que outrora era pautado pela presença humana, hoje é ocupado unicamente pelo elemento animal. Por outro lado, a alusão ao coaxar dos batráquios remete para um som constante, repetitivo, monótono, que preenche o silêncio, mas não traz alegria ou felicidade ao sujeito poético. Em suma, do passado restam apenas as lembranças, pois agora tudo é solidão, tristeza, monotonia e melancolia.

    O poema fecha com a imagem do “campo deserto”, o que remete para uma imagem de solidão. Agora, o tempo passou e só resta o som das rãs, num lugar vazio, apenas preenchido pelas lembranças. Deste modo, o “campo deserto” constituirá uma metáfora da ausência, do presente esvaziado da presença humana e do afeto, carinho e amor que antes caracterizava aquele espaço, o que contrasta intensamente com a imagem da casa evocada nos versos anteriores. Note-se que um campo pode ser associado a um lugar fértil, aberto à vida, à natureza, porém, quando é adjetivado como «deserto», passa a significar abandono, silêncio e solidão. O campo, que antes era habitado, sinónimo de família, amor e intimidade, preenchido por sons humanos, agora é dominado pelo silêncio humano. O tempo passou, a vida desapareceu daquela casa, e, presentemente, sobra unicamente o eco da memória. O adjetivo «noturno», além do já referido, remete para a noite, para o fim do dia, o que, simbolicamente, simboliza o fim de um ciclo, a morte e o esquecimento. O adjetivo «certo» significa que o som das rãs é constante, inaceitável, repetido – ele substitui os sons humanos do passado, como a voz da música, o som da canção, o riso.

    Nesse contexto, as imagens da “toalha alva”, do “pão”, do “berço” e do “sorriso de mãe” contrastam com o “coaxar noturno e certo / Das rãs” e o “campo deserto”, desde logo porque as imagens dos dois tercetos carregam valores simbólicos de acolhimento, alegria, calor humano, afeto, memória afetiva e pureza. A “toalha alva” simboliza as ideias de limpeza, ordem, cuidado, enquanto o “pão” remete para a nutrição, a vida e a comunhão familiares. O “berço” associa-se claramente ao tempo da infância, da origem da vida e do amor protetor. Por seu turno, o “sorriso de mãe” representa ternura, proteção, ideias sugeridas pela figura materna. Tudo isto trabalha para construir uma imagem de aconchego, proteção e vida familiar e íntima, onde há afeto e relações humanas. Pelo contrário, o “coaxar noturno e certo das rãs” e o “campo deserto” associam-se a outro universo simbólico. De facto, esses elementos representam a natureza impessoal, que continua o seu percurso após a partida dos seres humanos, levados pela morte. O som das rãs é repetitivo, monótono, quase mecânico, opondo-se ao da canção, alegre, e à espontaneidade do sorriso materno. Por sua vez, o campo deserto é um espaço aberto, sem limites e sem proteção, silencioso e solitário, contrastando com o lar fechado, íntimo, familiar e seguro que constituía a casa da infância. Este contraste traduz a passagem do tempo – desde logo sugerida pela estrutura fragmentada do poema (os versos curtos e a ausência de pontuação) – que tem como consequência a perda de uma presença afetiva e a transformação do espaço vivido em espaço de memória.

    O título do poema, tendo em conta que o texto evoca tanto a memória de um passado alegre e afetuoso quanto o vazio e a desolação do presente, pode parecer curioso. Por um lado, pode representar a paz que surge como a solidão e o silêncio após as mudanças ocorridas por efeito da passagem do tempo, ou seja, o presente é desolador, mas, ao mesmo tempo, é silencioso, calmo. Tratar-se-á da paz de um espaço desabitado, hoje de contemplação após a passagem do tempo, ou a paz num sentido fúnebre ou espiritual, quer dizer, a que surge com a morte, com o fim de um tempo, de um ciclo. Por outro lado, o título pode ser entendido com a memória de um passado bom. Neste sentido, a casa do passado simboliza uma forma de paz vivida: havia comida, amor, segurança e proteção. Esta paz vem associada à simplicidade da vida familiar e quotidiana, ao pequeno e singelo gesto que perdura na memória. Em suma, o título constitui uma espécie de síntese do poema: um trajeto do afeto ao silêncio, da vida à lembrança, da presença à ausência.

Análise do poema "De Amor", de Francisco José Viegas

 
DE AMOR

 

despede-te de mim, bate devagar à porta:

tenho vontade de recomeçar, reerguer escombros,

ruínas, tarefas de pão e linho, não dar

nome às coisas senão o de um vago esquecimento

 

abandono. despede-te de mim como se a vida

recomeçasse agora, não me procures onde

a memória arde e o destino se ausenta.

 

tudo são banalidades, afinal, quando assim

se recomeça e a vida falha como um material

solar e ilhéu. levamos poucas coisas, basta

um pouco de ar, os objetos fixos, em repouso,

 

os muros brancos de uma casa, o espaço

de uma mão. arrumo as malas e os sinais,

aquilo que nos adormece em plena tempestade.

 
    O poema abre com um tom de despedida íntima (atente-se no uso da segunda pessoa do singular quer de formas verbais, quer do pronome pessoal). Por outro lado, o recurso ao advérbio de modo «devagar», a caracterizar a forma como o «tu» bate à porta sugere delicadeza, quase como se a separação fosse feita com cautela e cuidado. A suavidade contrasta com a dor implícita no adeus.

    Os versos seguintes sugerem a ideia de recomeço e de reconstrução de algo que foi destruído, num desejo de recomeço a partir de escombros e ruínas. O nome «escombros» remete para um passado destruído – talvez uma relação amorosa, como indicia o título – que agora necessita de uma reconstrução.
    As “tarefas de pão e linho” parecem apontar para o quotidiano, gestos da vida doméstica, simples. Estamos perante atos que remetem para a nutrição e o vestuário, os quais fazem parte da vida, sendo que, no primeiro caso, sustenta até a existência.
    A primeira estrofe termina com a intenção de não nomear as coisas, antes as esquecer. Parece haver um desejo de apagar, de esquecer, de deixar para trás o peso / as coisas do passado, porém não se trata de um esquecimento violento, traumatizante, mas suave, como o dá a entender o adjetivo «vago», a qualificar o esquecimento.

    A segunda estrofe retoma a ideia do abandono e da partida, introduzindo a noção da despedida entre o sujeito poético e o «tu», através de uma comparação que a associa a um recomeço: “despede-te de mim como se a vida / recomeçasse agora”. Segue-se novamente a recusa do passado, traduzida pelo pedido do «eu» ao interlocutor no sentido de não o procurar onde a memória ainda vive, onde arde (metáfora hiperbólica). A memória arde, queima, causa, portanto, dor. Por sua vez, o destino ausenta-se, ou seja, não se faz sentir, perdeu a direção.

    A terceira estrofe – novamente uma quadra, à semelhança da primeira – retoma a dor, o sofrimento e os acontecimentos das anteriores: “tudo são banalidades”. Diante do recomeço, tudo se torna banal. Por outro lado, a vida é falha, frágil, visto que “falha como um material / solar e ilhéu”. A comparação quase torna a vida algo físico, tangível, e os adjetivos «solar» e «ilhéu» traduzem as ideias de luz e isolamento, solidão, sugerindo que a vida, embora sendo bela, comporta esses sentimentos. Afinal, quando uma relação termina, se desfaz, e os intervenientes se afastam, entram num mundo de solidão, de isolamento, mesmo que temporário. Perante este cenário, o importante é levar poucas coisas desse passado, dessa relação que terminou: “levamos poucas coisas”. São suficientes “um pouco de ar, os objetos fixos, em repouso”, metáforas que indiciam que, no processo de recomeço, o essencial é o respirar, encontrar a estabilidade e o equilíbrio.

    A última estrofe – um terceto, tal como a segunda – abre com uma série de metáforas que prosseguem a enumeração daquilo que o sujeito poético leva do passado: a do muro branco evoca paz, pureza, ao passo que os muros e a casa traduzem uma imagem de produção e refúgio; a da mão pode simbolizar o afeto; o ato de arrumar as malas associa-se à partida, mas também à preparação para algo novo, enquanto os sinais remetem para memórias, vestígios de algo que existiu, todavia entretanto terminou, no fundo, “aquilo que nos adormece em plena tempestade”, isto é, que nos acalma durante momentos conturbados. Pode tratar-se do amor na sua forma mais serena ou da aceitação da perda.

    Em síntese, estamos na presença de um poema que reflete sobre o fim de uma relação amorosa e a resiliência necessária para enfrentar, bem como o processo de recomeço.

segunda-feira, 14 de abril de 2025

Análise da obra O Cortiço, de Aluísio de Azevedo

 I. Biografia de Aluísio de Azevedo


II. Obras de Aluísio de Azevedo


III. Período literário


IV. Ação

        . Resumo

        . Capítulos

            . Capítulo I

            . Capítulo II

            . Capítulo III

            . Capítulo IV

            . Capítulo V

            . Capítulo VI

            . Capítulo VII

            . Capítulo VIII

            . Capítulo IX

            . Capítulo X

            . Capítulo XI

            . Capítulo XII

            . Capítulo XIII

            . Capítulo XIV

            . Capítulo XV

            . Capítulo XVI

            . Capítulo XVII

            . Capítulo XVIII

            . Capítulo XIX

            . Capítulo XX

            . Capítulo XXI

            . Capítulo XXII

            . Capítulo XXIII


V. Personagens

    V.1. Caracterização

        1. João Romão

        2. Bertoleza

        3. Miranda

        4. Rita Baiana

        5. Estela

        6. Léonie

        7. Pombinha

        8. Jerónimo

        9. Piedade

        10. Leandra

        11. Ana das Dores

        12. Dona Isabel

        13. Leocádia

        14. Zulmirinha

        15. Augusta Carne-Mole

        16. Neném

        17. Velho Botelho

        18. Henrique

        19. Agostinho

        20. Alexandre

        21. Paula

        22. Albino

        23. Firmo

        24. Senhorinha

    V.2. O percurso existencial das personagens femininas

    V.3. Os tipos sociais e as forças naturais instintivas.


VI. Conclusões

        a) Forma

        b) Conteúdo


Os tipos sociais e as forças naturais instintivas em O Cortiço

    Um dos valores maiores de Aluísio Azevedo retratados em O cortiço é a sua facilidade em fixar conjuntos humanos, em fazer uma análise de tipos sociais. As personagens são moldadas de acordo com a realidade observada de fora pelo narrador sem idealizações, pois são pessoas comuns com todos os seus contrastes (beleza/feiura, rudeza/requinte, etc.). Por isso, o comportamento das personagens decorre de causas biológicas e sociais que determinam suas ações. Para os naturalistas, a personagem e condicionada pelo meio físico e social em que vive, nada podendo fazer contra o peso das influências externas, tornando-se vítima das leis naturais. O homem passa a não ter privilégio diante do animal, visto que todos estão sujeitos às mesmas leis, enfatizando-se a dimensão animal e a satisfação de necessidades materiais instintivas, assim como os condicionamentos hereditários, que induzem a personagem a ser desta ou daquela maneira. No trecho já citado do capítulo III, p. 37, o narrador relata o despertar do cortiço, no qual acentua um processo em que não se diferenciam "objetos, homens, animais e vegetais". Há uma identificação dos seres humanos com os animais, conferindo-lhes apelidos. Leandra, com "ancas de animal do campo"; Bertoleza "trabalha como um burro de carga". Seguindo o modelo naturalista, o narrador vê todos, homens, mulheres, brancos e negros como animais, valorizando os instintos naturais, para relacionar o trabalho, o esforço do homem com a condi9ao animal. Um dos sentidos da palavra cortiço é "casa onde as abelhas se criam e fabricam o mel e a cera" (FERREIRA, 2000, p. 190). Assim, dando sentido metafórico, tais quais as abelhas, que zumbindo se agrupam em torno do mel, homens e mulheres aglomeram-se em torno das bicas de água. Veja um trecho do capítulo III: Daí a pouco, em volta das bicas era um zunzum crescente; uma aglomeração tumultuosa de machos e fêmeas. Uns, apos outros, lavavam a cara, incomodamente, debaixo do fio de água que escorria da altura de uns cinco palmos [...]. O rumor crescia, condensando-se; o zunzum de todos os dias acentuava-se; já se não destacavam vozes dispersas, mas um só ruído compacto que enchia todo o cortiço. (AZEVEDO, 2004, p.37-8). As pessoas vivem coletivamente, sem privacidade, como bichos, realizando suas necessidades físicas sem se ocultar, configurando-se situações de degradação humana, em que as personagens levam uma vida difícil, miserável. A "Estalagem de São Romão", isto é, o cortiço onde se desenvolve a narrativa, formado pelos grupos desprivilegiados, e transformado num lugar, onde vida e morte nao valem muito, pois as personagens se deixam guiar pelos instintos, e sao relacionadas como animais irracionais. Assim, o meio se revela como fator de conformação social. O que predomina e a intenção de mostrar, como o homem age sobre o meio e vice-versa. Deste modo, no ambiente do cortiço o indivíduo vive em função do meio e pode ser modificado pelo mesmo. O jogo de interesses e o conflito social marcam a trajetória dessa trama e define como são estabelecidas as redes entre os grupos. A personagem João Romão é o mais autêntico representante da exploração alheia. Protótipo do português ganancioso, sua preocupação em fazer fortuna é tão grande que leva ao relaxamento da própria aparência, a sujeição ao desconforto e a autoimposição de um regime de trabalho que ultrapassam muitas vezes o limite físico. Associa-se a escrava Bertoleza, "crioula trintona", quando esta fica visiva. Ela também deseja "subir na vida" e, desta forma, chega a fazer economias para a sua liberdade, contando ao vendeiro sobre o dinheiro que juntou: [...] E segredou-lhe então o que já tinha juntado para a sua liberdade e acabou pedindo ao vendeiro que lhe guardasse as economias, porque já de certa vez fora roubada por gatunos que lhe entraram na quitanda pelos fundos. Daí em diante, João Romão tornou-se o caixa, o procurador e o conselheiro  (op. cit., 2004, p. 16) da crioula. [...]. O vendeiro transforma Bertoleza em "animal de carga", explora seu corpo e seu trabalho. Ela passa agora a ser sua amante, uma "mulher-objeto" que desperta no dono do cortiço o interesse sexual e também material. Ele lhe prepara uma carta falsa de alforria: [...] a tal carta de liberdade era obra do próprio João Romão, e nem mesmo o selo, que ele entendeu de pespegar-lhe em cima, para dar a burla maior formalidade, representava despesa, porque o esperto aproveitara uma estampilha já servida. O senhor de Bertoleza não teve sequer conhecimento do fato; [...]. (op. cit., 2004, p. 17). A ajuda à negra só tem fins egoístas. Além de ser enganada, continuava escrava. Enriquecer era o principal objetivo do vendeiro e para isso não media esforços, explorando a todos, sem nenhum escrúpulo. Juntamente com Bertoleza, João Romão dá início à construção do cortiço. Não foi fácil essa trajetória que se fez por meio de furtos, de muitas privações e da exploração tanto da crioula quanto dos inquilinos do cortiço, dos fregueses da venda e dos empregados da pedreira, através da má remuneração de salários, da obrigação de fazer com que eles morassem na sua estalagem e até comprassem na sua venda. Durante toda a narrativa, Bertoleza permanece fiel a Joao Romao, o qual pouco a pouco galga posicao social. Sua ambicao desperta o desejo de crescer tambem culturalmente, influenciado pelo sucesso do vizinho nobre, o Miranda (negociante portugues, que mora no sobrado ao lado do cortico). Começa a partir daí a operar-se uma transformação no vendeiro devido ao convívio que ele havia estabelecido com a família do outro. Foi graças a essa proximidade que João Romão pode vencer as barreiras culturais e ambientais, visto que ele pertencia a uma classe considerada superior – o branco. A posterior "aristocratização" de João Romão, atingida após uma profunda modificação em seu comportamento e em sua aparência física, embora revele a Acão do meio sobre o comportamento humano e se apresente como consequência do evolucionismo, não deixa de se apoiar no pragmatismo da personagem que, após enriquecer, passa a alimentar o sonho de ganhar títulos nobiliárquicos. À medida que Romão vai evoluindo tanto na vida económica quanto social, seu cortiço sofre modificações qualitativas. A ascensão do cortiço também é a mesma do seu dono. Mas precisava livrar-se de Bertoleza que para ele representava a miseria. Resolve o problema entregando-a ao filho do seu antigo dono. Ela o reconhece e percebe toda a trama, entende que o seu amante, nao tendo coragem para matá-la, restitui-a ao cativeiro e que a sua carta de alforria era mentira. Ela, que estava certa de que tinha conseguido sua liberdade, percebe que fora enganada. O racismo na obra é bastante pronunciado. Bertoleza chega a se desprezar por ser negra e se envergonha, sentindo-se como uma "mancha negra, a indecorosa nódoa daquela prosperidade brilhante e clara" (op. cit., 2004, p. 188) na vida de João Romão. Suicida-se ao perceber que não há, para sua vida, uma outra saída: [...] Bertoleza então, erguendo-se com ímpeto de anta bravia, recua de um salto, e antes que alguém conseguisse alcançá-la, já de um golpe certeiro e fundo rasgara o ventre de lado a lado. E depois emborcou para a frente, rugindo e esfocinhando moribunda numa lameira de sangue.(op. cit., 2004, p. 225). Por meio de intrigas, explorações e mentiras, o vendeiro ascende socialmente e casa-se com Zulmira, a "doce existência dos ricos", filha do Miranda. João Romão vence o meio e torna-se "quase um nobre carioca", consegue o título de "sócio benemérito" abrindo, assim, as portas para a sociedade, um objetivo que queria alcançar. Constata-se o evolucionismo nessa narrativa, segundo o qual o forte vence o mais fraco. Tomando como base os modelos científicos, característica do Naturalismo, no sentido de que o homem era marcado pelo determinismo biológico e social, procurando comprovar essas teses, os naturalistas preferiam personagens mórbidas, adúlteras, psiquicamente desequilibradas, assassinas, bêbadas, miseráveis, doentes, prostitutas, homossexuais, etc. Os tópicos proibidos são descritos com detalhes: - Sim! Sim! insistiu Leonie, fechando-a entre os braços, como entre duas colunas; e pondo em contato com o dela todo o seu corpo nu. Pombinha arfava, relutando; mas o atrito daquelas duas grossas pomas irrequietas sobre o seu mesquinho peito de donzela impúbere [...]. (op. cit, 2004, p. 130) É apresentada aqui uma descrição minuciosa do homossexualismo feminino, no caso, entre Leonie, uma prostituta, e Pombinha, "a flor do cortiço". Leonie a seduz com presentes e iniciativa homossexuais. O homossexualismo masculino também é retratado na narrativa: Fechava a fila das primeiras lavadeiras, o Albino, um sujeito afeminado, fraco, cor de espargo cozido e com um cabelinho castanho, deslavado e pobre, que lhe caía, numa só linha, até ao pescocinho mole e fino. Era lavadeiro e vivia sempre entre as mulheres, com quem já estava tao familiarizado que elas o tratavam como a uma pessoa do mesmo sexo;  [...].(op. cit., 2004, p.42) Tentando "focalizar de perto as distorções morais que se geram no âmbito das comunicações promíscuas" (MOISES, 2002, p. 254), no caso de O cortiço é que o narrador descreve personagens que para "crescer na vida" se prostituem. Gera-se, portanto, uma dúvida: personagens como Leonie e Pombinha tinham certas "tendências", que se inclinavam para uma herança biológica, levando-as à prostituição, ou foram influenciadas pelo meio em que vivem? Para ascender socialmente, Leonie deixou o cortiço e teve que prostituir-se, alcançando um certo "status", o que lhe permitia "desfilar com os amantes pelas ruas e teatros com a mesma leveza como regressa ao cortiço para ver sua afilhada" (AZEVEDO, 2004, p.. 102). Ela saíra do cortiço e enriquecera "vendendo seu corpo", mas nem por isso deixa de visitar seus antigos amigos, pois conservou o "trânsito livre" e, nas suas visitas ao cortiço, ela era recebida com cochichos e admiração diante de tanto luxo que a envolvia. Logo ficava cercada de gente e na presença de todos chegava a louvar os preceitos morais. O narrador cria uma situação irónica, uma vez que Leonie era "prostituta de casa cheia", mas pregava os "bons costumes": E, enquanto Juju percorria a estalagem, conduzida em triunfo, Leonie na casa da comadre, cercada por uma roda de lavadeiras e crianças, discreteava sobre assuntos sérios, falando compassadamente, cheia de inflexões de pessoa prática e ajuizada, condenando maus atos e desvarios, aplaudindo a moral e a virtude. O interesse de Leonie em visitar o cortiço era ver sua afilhada Pombinha, tida como "a flor do cortiço", que, apesar do meio em que vive, teve uma educação que a colocava em destaque, visto que tinha estudado. Mesmo depois que seu pai morreu, sua mãe, Dona Isabel, crucificou-se para educar a filha: "não permitia lavar, nem engomar mesmo porque o médico o proibira expressamente" ( op. cit., p. 41). Muito querida pelo povo do cortiço, era ela quem escrevia as cartas e lia jornais para quem quisesse ouvir. Se a encontrassem na missa não perceberiam que ela morava no cortiço, pela maneira de se vestir e se comportar. Era protegida por uma redoma. Entretanto, a proteção da mãe, a consideração da comunidade onde mora, ou a sua formação religiosa - apesar da sua fé sincera, como se fosse uma guardiã contra o mal; não conseguiram fazê-la enxergar a manifestação de sedução do comportamento de Leonie, "com extremas solicitudes de namorado" (op. cit, 2004, p. 129). Pombinha foi pelo próprio pé, meter-se na casa da cocote, um local ideal que ajudaria a desencadear os elementos da natureza da personagem: a força do meio desperta-lhe os recursos genéticos que Hipolite Taine apregoa como determinantes do comportamento humano, junto com o mesmo meio e o momento (circunstância). No início da narrativa, Pombinha era impedida de se casar porque "não tinha pago a natureza o cruento tributo da puberdade". Mas, Leonie seduz a moça e, após a iniciação sexual, sai de suas entranhas "o primeiro grito de sangue". Depois que se tornou mulher, ela compartilha do desejo sensual de Jerónimo em relação a Rita Baiana, do momento de intimidade entre Leocádia e o rapaz do sobrado ao lado do cortiço, o Henriquinho, da concupiscência animalesca do Miranda, etc.: Uma aluvião de cenas, que ela jamais tentara explicar e que até aí jaziam esquecidas nos meandros do seu passado, apresentavam-se agora nítidas e transparentes. [...] Num só lance de vista, [...] sentiu diante dos olhos aquela massa informe de machos e fêmeas, a comichar, a fremir concupiscente, sufocando-se uns aos outros. E viu o Firmo e o Jerónimo atassalharem-se como dois cães que disputam uma cadela da rua; e viu Miranda, lá defronte, subalterno ao lado da esposa infiel, que se divertia a fazê-lo dançar a seus pés seguro pelos chifres. (op. cit., p.140-141). A moça vivenciou factos que condicionaram a sua transformação. Nela despertou um outro valor: a mulher pode mais do que o homem, como se lê nas passagens: [...] Pombinha pousou os cotovelos na mesa e tolinou as mãos contra o rosto, a cismar nos homens. Que estranho poder era esse, que a mulher exercia sobre eles, a tal ponto, que os infelizes, carregados de desonra e de ludíbrio, ainda vinham covardes e suplicantes mendigar-lhe o perdão pelo mal que ela Ihes fizera?... [...] E continuou a sorrir, desvanecida na sua superioridade sobre esse outro sexo, vaidoso e fanfarrão, que se julgava senhor e que no entanto fora posto no mundo simplesmente para servir ao feminino; [...] ao passo que a mulher, a senhora, a dona dele, ia tranquilamente desfrutando o seu império, endeusada e querida, prodigalizando martírios, que os miseráveis contritos, a beijar os pés que os deprimiam e as implacáveis mãos que os estranguláveis. – Ah, homens! homens!... sussurrou ela de envolta com um suspiro. (op. cit., 2004, p. 140- 141) Pombinha casa-se e sente-se incapaz de submeter-se a uma vida familiar; torna-se adúltera, sendo entregue pelo marido à mãe. Desde já, prostitui-se, passando a sustentar sua mãe "com os ganhos da prostituição": [...] Pombinha, só com três meses de cama franca, fizera-se tao perita no ofício como a outra: a sua infeliz inteligência nascida e criada no modesto lodo da estalagem, medrou logo admiravelmente na lama forte dos vícios de largo fôlego; fez maravilhas na arte; parecia adivinhar todos os segredos daquela vida; seus lábios não tocavam em ninguém sem tirar sangue; sabia beber, gota a gota, pela boca do homem mais avarento, todo o dinheiro que a vítima pudesse dar de si. (op. cit., 2004, p. 218). Aqui, o narrador trabalha a ideologia naturalista, segundo a qual o homem é produto do meio e Pombinha foi influenciada pelo ambiente, pois o cortiço e logo depois a casa de Leonie tiveram "inspiração" para a sua vida de prostituição. A moça deixa seu lado angelical para assumir a imagem da serpente, a serviço do determinismo social que conduz o destino de Pombinha. O Naturalismo "acentua a supremacia do feminino sobre o masculino, da fêmea sobre o macho" (SANTANNA, 1984, p. 113). Para Leonie, os homens existem para "servir ao feminino" e Pombinha, de agora em diante, passa a acreditar nisto: "Agora, as duas cocotes, amigas inseparáveis [...] tornaram-se uma só cobra de duas cabeças" ...] (AZEVEDO, 2004, p. 218). Para infundir mais a ideia de que o homem é produto do meio, o caso se repetirá com Senhorinha, filha de Jerónimo e Piedade. Haverá então um círculo vicioso no qual a cadeia continuava interminavelmente: "o cortiço estava preparando uma nova prostituta naquela pobre menina desamparada, que se fazia mulher ao lado de uma infeliz mãe ébria" (op. cit., 2004, p. 219), pois sua mãe, ao ser abandonada e trocada por Rita Baiana, havia se relaxado. Pombinha tomou Senhorinha como "sua protegida predileta, votava agora, por sua vez, uma simpatia toda especial, idêntica a que em outro tempo inspirara ela própria a Leonie". Ao escrever sobre a prostituição, Aluísio Azevedo acaba endossando valores ideológicos, segundo os quais o homem é produto do meio, sem dar importância as desigualdades socioeconómicas porque passa uma sociedade mesmo porque a obra cumpre as posturas naturalistas seguindo o modelo europeu.

(c) Iracema Duarte Filha, in A Relação Personagem, Ambiente e Raça em O Cortiço de Aluísio de Azevedo

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