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domingo, 8 de novembro de 2020

Análise de "Pobre velha música"

O poema “Pobre velha música” é uma composição poética de Fernando Pessoa, sem data, publicada na revista “Athena” em dezembro de 1924.
À semelhança do que sucede noutros poemas do ortónimo, o poeta contrapõe o período da infância ao presente, considerando aquela como um “período dourado da sua existência”, o qual, porém, não regressará. No caso da composição poética em análise, é a “Pobre velha música” que simboliza esse período. Note-se, a título de curiosidade, que a mãe do poeta tocava piano, daí não ser de estranhar que esta forma de arte seja presença na sua obra. Aliás, Pessoa escreveu mesmo um poema que se refere, de forma explícita, à sua progenitora tocando o instrumento musical.
 
 
Assunto: ao ouvir a músicas, o sujeito poético recorda a sua infância, e, mesmo não tendo a certeza se foi feliz, solta toda a sua nostalgia presente ao rememorar esse período da sua vida.
 
 
Tema: a nostalgia da infância.
 
 
Estrutura interna
 
1.ª parte (1.ª estrofe) – Nostalgia do sujeito poético suscitada pela música.
 
2.ª parte (2.ª estrofe) – Recordação vaga e indefinida da infância.
 
3.ª estrofe (3.ª estrofe) – Desejo do sujeito poético de regresso ao passado, motivado pelo estímulo musical.
 
 
Desenvolvimento do tema
 
O sujeito poético é motivado por um estímulo sensorial auditivo que o emociona e desperta a sua nostalgia, visto que a música suscita em si recordações da sua infância. Embora seja um período feliz, traz ao «eu» uma grande tristeza e nostalgia, visto que está associado a uma idade perdida que é irrecuperável.
 
Esta temática – a nostalgia da infância – surge na poesia de Pessoa como uma fase da vida feliz, pela inconsciência, pela inocência de nada saber ou pensar, pela despreocupação, pela imaginação. No entanto, trata-se de um tempo impossível de recuperar, daí ser considerado um paraíso perdido.
 
A infância surge sempre em oposição ao presente, constituindo este um tempo negativo, enquanto aquele é recuperado pela memória como uma época de felicidade perdida.
 
Assim, neste poema, os dois tempos – presente e passado da infância – estão em equação: o sujeito poético, de olhar «parado» (no presente), chora quando ouve a música que escutava outrora.
 
A dupla adjetivação em posição pré-nominal do primeiro verso (“Pobre velha”) enfatiza os sentimentos de angústia e a nostalgia do sujeito poético. Subjetivamente, estes adjetivos mostram que a infância é um tempo longínquo e o «eu» lírico apresenta-se nostálgico relativamente às vivências desse tempo. Note-se que, neste passo do poema, está presente igualmente a personificação, visto que quem é «pobre» e «velho» é o sujeito poético que habitualmente ouvia aquela música e que, agora, tem consciência de que esse tempo nunca mais regressará. Daí o choro.
 
De facto, a recordação dessa música, embora de um período feliz da sua vida, aporta-lhe, no presente, grande tristeza, angústia, dor e nostalgia, pois está associada a uma época perdida, a um paraíso perdido, que nunca mais regressará, que é irrecuperável. A música é o elo de ligação entre o passado e o presente.
 
A segunda estrofe abre, precisamente, com a recordação do passado. De facto, o «eu» lembra-se de si enquanto criança que, supostamente, terá ouvido essa música, deixando no ar a dúvida se realmente a ouviu ou simplesmente a música o faz, agora, recordar-se da sua infância.
 
O sujeito poético recorda, de facto, o passado, mas quem, na realidade, ouviu a música foi ele, porém noutra idade, noutra fase da sua vida e com outros sentimentos. O «outro» era o «eu» enquanto criança e ele recorda-se de si próprio nesse período a escutá-la. Isto só vem confirmar a antítese passado / presente que percorre o texto.
 
Na última estrofe, o sujeito poético revela um desejo desesperado (“ânsia tão raiva” – v. 9) de regressar ao passado (“Quero aquele outrora!”). Esses sentimentos de raiva e angústia é acentuado pela exclamação. O sujeito poético afirma desconhecer se foi feliz na infância, no entanto deseja veementemente viver de novo esse período da sua vida (“Com que ânsia…”); todavia, reconhece que tal é impossível, o que gera a sua ira (“tão raiva”).
 
Segue-se uma interrogação retórica (“E eu era feliz?” – v. 11), através da qual o «eu» se questiona e destaca a dúvida acerca da felicidade vivida no tempo da infância, para a qual não tem resposta: “Não sei”.
 
Daqui o sujeito poético projeta-se num plano temporal que é impossível concretizar: ser criança e ser adulto, numa simbiose entre o passado e o presente. O «eu» lírico exprime o desejo de regressar ao passado, conotado com a felicidade que enraíza no tempo mítico de uma infância imaginada, mas questiona-se também se terá, efetivamente, vivido esse tempo de alegria, ou se esta será apenas produto da sua imaginação.
 
O paradoxo do verso 12 procura responder à dúvida: “Fui-o [feliz] outrora agora”. Apesar da incerteza de ter vivido uma infância feliz (“E eu era feliz?”) (devido à memória vaga desse tempo e, possivelmente, por essa felicidade ser apenas imaginada), o som da música tem o condão de o fazer feliz, no presente: “Fui-o outrora agora”. Da associação entre o «outrora» e o «agora», vivenciados em simultâneo, resulta a expressão da felicidade possível: a que permanece na memória e é presentificada através da música. Essa felicidade, portanto, acontece apenas no pensamento, no instante em que uma música motiva a memória do tempo da imaginação, da inocência e da inconsciência.
 
 
Síntese do poema

A nostalgia da infância é desencadeada pela audição da música (v. 1).

A música no passado é diferente da que recorda no presente (vv. 5-8) – a perceção de dois modos de ouvir.

O passado é lembrado de forma vaga / difusa e duvidosa (vv. 6, 11-12).

A felicidade na infância é construída no presente, através da memória, da recordação (vv. 10-12).

O passado e o presente fundem-se, sendo vividos em simultâneo (v. 12).

 
 
Retrato do sujeito poético

Ao longo de todo o poema, o sujeito poético revela grande dúvida e incerteza acerca das razões da sua emoção (“Não sei por que agrado” – v. 2) e da realidade / veracidade dessa felicidade na infância (“E eu era feliz? Não sei…” – v. 11).

Situado no presente, o «eu» deseja retornar à infância, o tempo da inocência, da inconsciência e da ausência da dor de pensar (vv. 9-10).

O sujeito poético sente-se triste e irritado por a infância ser um tempo perdido e irrecuperável (“Com que ânsia tão raiva / Quero aquele outrora!” – vv. 9-10).

O sujeito poético, de «olhar parado», chora, cheio de dor, sendo as suas lágrimas causadas pelo sentimento de perda inexorável e de infelicidade que o dominam no presente.

O sujeito poético sente saudade, angústia e nostalgia da infância, época que deseja recuperar: quando ouve a música, lembra-se do passado em que também a ouvia, e chora com saudades desse tempo.

Presentemente, revela abulia, inércia, perda da vontade, que se traduzem na dor de pensar (“Enche-se de lágrimas / Meu olhar parado.” – vv. 3-4).

O «eu» lírico sente uma permanente incapacidade de ser feliz (“E eu era feliz? Não sei”).

 
 
Estrutura formal

• Estrofes: 3 quadras.

• Rima:

- esquema rimático: ABCB

- versos brancos alternados com versos rimados cruzados

• Métrica: redondilha menor.

 
 
A temática da infância
 
A nostalgia da infância é um dos temas fundamentais de Fernando Pessoa ortónimo, partilhado por Álvaro de Campos.
Para Pessoa, a infância é um tempo passado irrecuperável perdido, o tempo longínquo em que era feliz sem saber que o era, o tempo em que ainda não tinha iniciado a procura de si mesmo e, por isso, não se tinha fragmentado.
Em Pessoa, a passagem da infância à idade adulta não é um processo evolutivo e tranquilamente natural; pelo contrário, é um processo de rutura. Passado e presente não se completam, antes se opõem; não há uma continuidade entre eles. Aquele é um tempo de felicidade, alegria inconsciente, enquanto o presente é nostalgia, ânsia, desconhecimento de si mesmo e do futuro.
A infância funciona como uma espécie de refúgio, tendo como motivações a insatisfação com o presente e a incapacidade de o viver em plenitude.
Por outro lado, a infância é sentida como uma cadeia de instantes que se vão sucedendo, sem qualquer relação entre eles, provocando no «eu» poético a sensação de fragmentação e de ausência de identidade.
Estes dados geram em si uma visão bastante negativa e pessimista da existência, que o futuro tenderá a aprofundar, visto que é o resultado de sucessivos presentes carregados de negatividade.
 

sábado, 7 de novembro de 2020

Zôjô-ji Temple in Shiba

Kawase Hasui (1925)

Análise de "Ó sino da minha aldeia"

      Este poema foi publicado, inicialmente, em 1914, no número único da revista “A Renascença”, e, em 1925, no terceiro número de “Athena”, datado de 1924, com ligeiras diferenças de pontuação e ortografia entre ambas as publicações. O manuscrito mais antigo do texto integral do poema data de 8 de abril de 1911, mas, na realidade, nasceu um pouco antes.
O poema corresponde ao primeiro de uma série de dois poemas antecedidos pelo título “Impressões do Crepúsculo”, com os quais Pessoa estreou a sua publicação ortónima em poesia portuguesa após o seu retorno da África do Sul.
 
Em 11 de dezembro de 1931, Fernando Pessoa escreveu uma carta a João Gaspar Simões onde, em dado passo, afirma o seguinte: “Nunca senti saudades da infância; nunca senti, em verdade, saudades de nada. Sou, por índole, e no sentido direto da palavra, futurista. Não sei ter pessimismo, nem olhar para trás”. O poeta admite ter saudades apenas das pessoas a quem amou e que queria ainda vivas, mas no dia de hoje, com as idades que teriam agora. Mais à frente acrescenta que as saudades expressas nas suas obras eram “atitudes literárias”, sentidas intensamente por instinto dramático, tendo dado como exemplo deste fenómeno o poema “Ó sino da minha aldeia”.
Em rigor, este poema, longe de ser inspirado na infância de Pessoa, tem a sua raiz em composições dos poetas novecentistas Luís Palmeirim e João de Lemos. De facto, Pessoa inspirou-se nesses poetas menores portugueses. Uma versão inicial do poema, constituída então apenas pelo primeiro verso e pela última estrofe, tem uma dedicatória: “A João de Lemos, mas escrito por Fernando Pessoa”. Vários poemas de Lemos e Palmeirim denunciam essa influência exercida junto do autor de Mensagem na composição de “Ó sino da minha aldeia”.
 
 
Tema: a nostalgia da infância.
 
 
Assunto: o sujeito poético, ser errante, recorda o passado, tempo de felicidade, como um bem perdido e irreparável, encontrando apenas conforto e sentido para a vida no período da infância.
 
 
Estrutura interna
 
1.ª parte (1.ª quadra): Apresentação do tema do poema.
 
2.ª parte (2.ª e 3.ª quadras): Descrição dos efeitos do toque do sino no sujeito poético.
 
3.ª parte (4.ª quadra): Conclusão do poema – associação do som do sino à saudade e ao passado do sujeito poético.
 
 
Desenvolvimento do tema
 
▪ O sujeito dirige-se, no primeiro verso, ao sino, através de uma apóstrofe e da sua personificação (dado que lhe confidencia os seus sentimentos), interpelando-o. Ao longo do poema, diversos elementos deíticos sugerem a existência de um diálogo entre ambos: os pronomes pessoais de 1.ª pessoa (“me”, “mim”), os determinantes possessivos de 2.ª pessoa (“tua”, “teu”) e as formas verbais na 2.ª pessoa (“tanjas”, “soas”).
 
▪ A presença do nome «aldeia» logo no verso 1 é bastante significativa. De facto, ele poderá simbolizar o espaço da infância, um espaço de intimidade, metáfora da interioridade do sujeito poético.
 
▪ Note-se a presença da hipálage nos dois versos iniciais (“Ó sino da minha aldeia / Dolente […]”), visto que o adjetivo «dolente» se refere ao sujeito poético, que, de facto, sofre, e não ao sino. Este recurso expressivo sugere a intimidade de uma memória que se reativa e que está na origem da saudade.
 
▪ O toque do sino, como se verá na terceira e na quarta estrofes, tem efeitos no sujeito poético, não lhe sendo de forma alguma indiferente. Pelo contrário, atinge-o no âmago: “Cada tua badalada / Soa dentro da minha alma.”. O sino toca dentro da alma do sujeito poético, lembra-o de memórias de infância. Quer isto dizer que cada badalada desperta no «eu» reminiscências e nostalgia de um passado distante – real ou imaginário: “Sinto mais longe o passado, / Sinto a saudade mais perto”.
 
▪ À medida que o sino toca, acentua-se essa nostalgia do passado e a primeira pancada tem o som de repetida, visto que soa na alma do sujeito poético (vv. 3-4). A aldeia é uma metáfora da interioridade do «eu»: “Cada tua badalada [espaço exterior] / Soa dentro da minha alma” [espaço interior] – traduz uma interação entre a alma e o tempo, que metaforicamente sugere a união do espaço exterior com o interior.
 
▪ O toque do sino estimula a memória do sujeito poético (v. 4), pois fá-lo recordar a sua infância, o passado distante que se associa a um sonho (vv. 11-12). É um eco do passado que, longe de alegrar o «eu», suscita nele a saudade da infância, uma época dourada mas irrecuperável (vv. 15-16). Os adjetivos “dolente” e “calma” (v. 2), que caracterizam respetivamente o toque do sino e a tarde em que o sujeito o escuta, remetem para a durabilidade do som, que não se apaga da sua memória.
 
▪ Na segunda estrofe, o sujeito poético mostra o efeito que o sino, símbolo da dolorosa passagem do tempo, tem em si. Assim, começa por afirmar que as memórias de um passado saudoso assolam a sua alma tão lentamente como a tristeza da vida (versos 5 e 6), comparando, deste modo, a lentidão do soar do sino com o seu próprio estado de espírito caracterizado pela nostalgia. Além disso, à medida que o sino toca, acentua-se no sujeito poético a saudade de tempos passados e “[…] a primeira pancada / Tem o som de repetida”, pois soa tanto no espaço exterior como no interior, isto é, na alma do «eu». Esse seu ecoar instaura nele uma certa melancolia e tristeza.
 
▪ A comparação dos versos 5 e 6 [e a elipse (omissão do adjetivo «lento»)] entre o soar do sino e a caracterização da vida sugere que ambos se pautam pela lentidão, o que indiciará que o tempo pode custar a passar para o sujeito poético, associando-se, assim, à nostalgia, à tristeza e à melancolia.
 
▪ O poeta identifica o toque do sino com o sujeito poético. De facto, a caracterização que é feita daquele corresponde ao seu estado de espírito, daí a tal identificação entre ambos. Assim, tal como o toque do sino, o sujeito lírico sente-se dolente e triste. Por outro lado, o som do toque do sino é-lhe tão familiar que “a primeira pancada / Tem um som de repetida”, ou seja, a primeira pancada tem o som de repetida porque o «eu» já a tinha ouvido no passado. Ao escutá-la, lembra-se do som que ouvia na sua infância, por isso era como se fosse repetida.
 
▪ Na 3.ª estrofe, o sujeito poético compara o sino a um sonho: “És para mim como um sonho”. O toque do sino remete o sujeito poético para um passado distante, o qual não voltará, fazendo, assim, com que essas memórias pareçam um sonho, despertando nele a nostalgia de uma infância perdida; o toque é como um sonho, porque transporta o «eu» para o passado, fazendo parecer aquilo um sonho. O toque ele não ouve não é o físico, mas o do seu sonho.
 
▪ No verso 3 da terceira estrofe, o sujeito poético revela algum inconformismo, devido à constante procura do «eu». O adjetivo «errante» significa sem destino, sem esperança, remete para alguém que vagueia sem rumo ou sem sentido, reforçando a ideia de que só na infância encontra o conforto e o sentido para a vida. Neste caso, o sujeito poético considera-se errante, pois vive numa constante procura do «eu», sofrendo assim de solidão e ansiedade, que deixa transparecer o conformismo e a incapacidade de se encontrar e aceitar algo, sendo feliz.
 
▪ Na 4.ª e última estrofe, o sujeito poético recorre à anáfora e à antítese (bem como à aliteração em /s/) “Sinto mais longe o passado, / Sinto a saudade mais perto”, ganhando consciência de que a inconsciência e a felicidade que experimentou na infância não poderão ser revividas.
 
▪ Isto gera a saudade e a nostalgia de um tempo passado perdido, do único momento de felicidade plena: a infância. A anáfora da forma verbal «Sinto» (vv. 15-16) concorre para enfatizar a frustração e a nostalgia do sujeito poético.
 
 
Retrato do sujeito poético
 
O estado de espírito do sujeito poético é caracterizado pela solidão, pela ansiedade e pela nostalgia do passado da infância, traços sugeridos pelos adjetivos «dolente», «lento», «triste» e «distante», pelos advérbios «longe» e «perto», pelo nome «saudade», pelo campo lexical da tristeza («dolente», «triste», «errante») e da saudade («sonho», «distante», «passado»). Algumas destas características são comuns ao sino, que é dolente, lento, triste e vibrante.
 
 
Formalmente, o poema é constituído por quatro quadras em redondilha maior. O tempo verbal predominante é o presente do indicativo (o tempo encontra-se fragmentado e o presente remete para a vivência passiva do momento, pela recordação saudosista do passado), na 1.ª pessoa (3.ª estrofe, vv. 1-4), que traduz a identificação do poeta com o sujeito poético.
 

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Análise de "Quer'eu en maneira de proençal"

Género textual: cantiga de amor composição cujo sujeito poético é masculino (o trovador), que faz o panegírico (o elogio) da “senhor”, uma dama geralmente casada.
 
 
Resumo
 
O trovador declara que vai fazer «agora» uma cantiga de amor à maneira dos provençais, dando a entender que, até então, tinha composto muitas cantigas de amigo, sendo que decidiu produzir, no presente, um cantar à maneira dos poetas provençais.
Assim, elogia muito a sua «senhor», à qual não falta todo o «valor ou formosura ou bondade»; mais do que isso, Deus fê-la tão «completa de virtudes» que é mais valiosa do que «todas as do mundo».
Deste modo, segue os lugares-comuns da época e do género, pelo que, na segunda estrofe, prossegue o panegírico da dama: é muito sociável, quando é precisos sê-lo, e muita sensata/ajuizada; em suma, é a melhor de todas (“quando non quis que lh’outra foss’igual”).
Na terceira estrofe, a «senhor» é apresentada como uma projeção platónica do Bem, do Belo e da Virtude: até a afalar e a rir sobreleva as demais damas; além disso, é leal. O trovador conclui que desconhece quem possa ter eloquência bastante para falar suficientemente das suas qualidades, até porque, além daquilo que é só «ben», não há nada mais que dela possa ser dito.
 
 
Assunto: o trovador manifesta o seu desejo de fazer agora uma cantiga de amor à maneira provençal, onde possa louvar a sua senhora, a quem não falta virtude nenhuma, pois Deus a criou mais dotada de qualidades (físicas e sobretudo morais) que todas as mulheres do mundo.
 
 
Tema: o panegírico da mulher       ® ideal
(elogio)                         ® inacessível
® perfeita
® divinizada (deusa)
 
 
Estrutura interna
 
1.ª parte (1.ª cobla): o sujeito poético revela a sua intenção / o seu objetivo («fazer agora um cantar d’amor»).

 
NOTA:
 
1) O verso 1 denota a influência dos cantares da Provença na lírica galaico-portuguesa. A influência dessa estética encontra-se nos seguintes aspetos:
® o uso da mestria;
® a idealização da mulher como a melhor de todas;
® a enumeração das qualidades da dama;
® o amor cortês.
 
 
2.ª parte (2.ª-3.ª coblas) - Caracterização da Senhora (objeto):
 
física:
- formosa: «fremusura»
- bela: «beldade»
- sorriso bonito: «riir melhor / que outra mulher»
 
psicológica e moral:
- bondosa / generosa: «bondade»
- sábia: «sabedor de todo ben»
- perfeita: «comprida de ben»
- sensata / ajuizada: «bon sem»
- leal
 
social:
- honrada / possuidora de grande valor: «prez»
- «de mui gran valor»
- possuidora de boas maneiras / muito sociável: «mui comunal»
- «falar mui ben e riir melhor»
 
         Em síntese, estamos perante um retrato essencialmente psicológico: todas as características se orientam para a caracterização da alma, do espírito da senhora; que aponta para o retrato da mulher idealizada.
 
         Por outro lado, e atendendo à cantiga "Proençaes soen mui ben trobar", na qual D. Dinis denuncia o fingimento dos trovadores provençais, relacionando-a com esta cantiga, concluímos que ele também sabe trovar à maneira provençal e fá-lo de forma apreciável, demonstrando conhecer bem a técnica provençal e os seus artifícios poéticos, chegando mesmo a socorrer-se de termos provençais ("prez"). De facto, esta cantiga é quase um manifesto poético dos cantares de amor provençais. O próprio D. Dinis não deixa lugar a dúvidas ao afirmar logo nos versos iniciais:
"Quer' eu en maneira de proençal
fazer agora um cantar d' amor".
 
 
Conceção do amor e da mulher
 
         A mulher das cantigas de amor é uma mulher criada pela imaginação do poeta, distante da vida e da realidade, inacessível, a mulher-deusa. Ela é perfeita a todos os níveis, o que a coloca num plano superior, tornando-se inacessível ao sujeito poético, o que lhe causa sofrimento.
         Pelo contrário, a donzela das cantigas de amigo é uma rapariga real, simples, popular, do campo, movida por um amor real e sincero.
         Ao invés, na poesia de influência provençal, o que há é um amor-adoração, ao sabor do idealismo platónico. Podemos classificá-lo como artificial ou artificioso, pois ele é apenas a força ideal que alimenta a inspiração do poeta.
         A mulher retratada nesta cantiga é idealizada, dentro de uma visão platónica do amor. É uma mulher vista de longe, construída pela imaginação do poeta, é uma deusa intocável a quem o trovador rende a sua homenagem, a sua vassalagem. A sua beleza e o bem que possui são, de acordo com a teoria platónica, uma ideia pura. O amor cortês apresenta-se como ideal, como aspiração que não tende à relação sexual, mas surge como estado de espírito que deve ser alimentado.
 
 
Relação entre o sujeito poético e a mulher (amada)
 
Moldada pela relação feudal entre senhor/suserano e vassalo, na cantiga de amor há um grande distanciamento entre o sujeito poético / trovador e a mulher amada. Esta é a suserana e o trovador é o vassalo, o qual celebra as qualidades inexcedíveis da senhora, com toda a devoção e lealdade, segundo as regras do código do amor cortês.
 
 
Recursos poético-estilísticos
 
         1. Nível fónico
 
. Estrofes: três coplas uníssonas, isométricas, constituídas por 7 versos.
. Rima  - abbacca;
- emparelhada e interpolada;
- consoante;
- pobre ("amor"/"senhor") e rica ("mal"/"leal";
- aguda ou masculina.
. Metro: versos decassílabos agudos.
. Ritmo binário.
. Transporte: vv. 1-2, 6-7, 8-9, 18-19, 19-20.
. Refrão: esta cantiga não possui refrão, como sucedia com muitas de amigo, porém os dois versos finais de cada estrofe, nomeadamente das duas primeiras, funcionam como se o fossem pela posição e pela repetição de ideias. De facto, esses versos servem para realçar o quão perfeita e ímpar é esta mulher.
 
 
         2. Nível morfossintático
 
. Adjetivação (vv. 6, 9, 11, 18): estão na base do retrato da senhora e são essencialmente de ordem psicológica, pois o objetivo do trovador é fazer realçar as características morais e psicológicas da Senhora.
. Nomes:
- proençal: determina a origem e influência em Portugal das cantigas de amor;
- Deus: caracteriza a mulher como ideal e perfeita, pois todas as suas qualidades têm origem em Deus;
- ben: significa que a mulher é um ideal, que possui as qualidades supremas concedidas a um ser.
. Advérbio agora: pressupõe um passado poético de D. Dinis, que é cantiga de amigo, género que o rei-poeta também cultivou.
. Equilíbrio entre a coordenação e a subordinação: equilíbrio entre a expressão de sentimentos e o tom narrativo.
. Verbos:
® pretérito perfeito: a caracterização da Senhora, que recebeu de Deus só qualidades;
® presente: a intenção de fazer uma cantiga de amor;
® futuro: o tema da cantiga ® louvar a Senhora.
. Orações causais, temporais e consecutivas: indiciam um maior cuidado na elaboração do discurso; as orações subordinadas causais das segunda e terceira estrofes estabelecem um nexo de causalidade em relação à primeira estrofe, pois aquelas coblas funcionam como justificação do propósito da cantiga.
. Conjunção subordinativa «ca»: esta cantiga de amor, à semelhança de outras, apresenta inicialmente uma ideia que tem de ser justificada no resto da composição. Neste caso, o trovador afirma que a mulher que vai louvar é única e termina mesmo a primeira cobla constatando que Deus criou uma mulher perfeita que «mais que todas las do mundo val». A estrofe seguinte (bem como a terceira) inicia-se com a conjunção subordinativa causal «ca» (v. 8), que introduz a “listagem” das qualidades da «senhor» que comprovam a afirmação final da primeira cobla. A progressão do texto nas cantigas de amor segue frequentemente esta linha de desenvolvimento.
. Linguagem embutida de provençalismos: sen (senso), prez, comprida de ben, loor.
. Polissíndeto: explicita o entusiasmo e o deslumbramento do sujeito lírico, bem como destaca, por acumulação, o conjunto de qualidades da mulher amada.
. Poliptoto: o jogo com as formas do verbo "fazer".
. Sinonímia: «fremosura» / «beldade»; «comprida de ben» / «sabedor de todo ben e de mui gran valor», etc.
 
 
         3. Nível semântico
 
. Hipérboles: o sujeito exalta a sua "dona", faz o seu panegírico, da mulher que excede todas as outras: "mais que todas no mundo val"; "ca non há, trálo seu ben al", “quando non quis que lh’outra foss’igual” ninguém a excede nas suas qualidades; nenhuma se lhe compara; ou seja, a dama é colocada num plano de superioridade relativamente ao trovador.
. Comparações: encarecem e superlativam a mulher, louvando-a, colocando-a num pedestal onde se revela superior às outras "tanto a fez Deus comprida de bem / que mais que todas las do mundo val"; "e rir melhor / que outra mulher".
 
 
Classificação
 
1. Cantiga de amor: composição poética de carácter lírico, cujo emissor é um trovador que exprime os seus sentimentos amorosos em relação a uma dama frequentemente designada por "mha senhor".
         O poeta elogia e louva as qualidades invulgares e singulares da mulher amada a nível físico, moral, psicológico e social, de forma hiperbólica, seguindo o modelo provençal.
 
1.1. Formal:
- cantiga de mestria (= sem refrão);
- cantiga de atafinda.
 
         A Provença, pelo seu clima ameno, favorece a caça e as cruzadas, o que faz com que o nobre passe muito tempo fora do castelo. É uma sociedade matriarcal: a castelã é que tinha a seu cargo o controle político, social e económico; é a senhora no seu feudo. Daí ser natural que os trovadores procurem conquistar benefícios e benesses da "senhor".
         O trovador acaba por transpor para o plano amoroso uma situação do plano social:
 
 
         As cantigas de amor tratam sempre o tema do amor em duas vertentes:
- o trovador exprime o seu amor arrebatador, mas sempre de forma espiritualizada, ainda que sofra da coita de amor;
- o elogio da mulher amada.
         Nestas cantigas, o trovador dirige-se à "senhor" numa atitude de vassalagem e subserviência, rendendo-lhe o culto que o "serviço amoroso" lhe impunha. Este serviço amoroso orientava-se por um código rígido de comportamento ético: as regras do amor cortês, que vêm na linha da poética da "fin' amors", recebidas da Provença.
         Assim, e de acordo com este código:
* o trovador teria de mencionar comedidamente o seu sentimento (mesura), a fim de não incorrer no desagrado (sanha) da mulher amada;
* o trovador teria que ocultar o nome dela ou recorrer a um pseudónimo (senha);
* o trovador tinha que prestar à amada uma vassalagem que apresentava 4 fases:
® fenhedor: o trovador limitava-se a suspirar pelo amor da sua dama;
® precador: o trovador ousava declarar-se;
® entendedor: o trovador já era ouvido pela dona;
® drudo: o trovador era amante.
 

terça-feira, 3 de novembro de 2020

Análise de "Nom mi digades, madre, mal e irei"


Nom mi digades, madre, mal e irei
vee'lo sem verdad'e que namorei
na ermida do Soveral
u m'el fez muitas vezes coitada estar,
5                 na ermida do Soveral.
 
Nom mi digades, madre, mal, se eu for
vee'lo sem verdad'e o mentidor
na ermida do Soveral
u m'el fez muitas vezes coitada estar,
10               na ermida do Soveral.
 
Se el nom vem i, madre, sei que farei:
el será sem verdad'e eu morrerei
na ermida do Soveral
u m'el fez muitas vezes coitada estar,
15               na ermida do Soveral.
 
Rog'eu Santa Cecília e Nostro Senhor
que ach'hoj'eu i, madr', o meu traedor
na ermida do Soveral
u m'el fez muitas vezes coitada estar,
20               na ermida do Soveral.
 
            Frequentemente, nas cantigas de amigo, a donzela pede à mãe que a deixe ir ver o amigo, mas nesta ela diz algo diferente: “Mãe, por favor, deixe-me ir ver o traidor”. Noutros poemas, o amigo costumava deixá-la esperar tristemente por ele (presumivelmente, não aparecia). É raro que uma donzela tente renovar o relacionamento depois que o amigo não cumpriu a sua palavra ou foi infiel ou algo parecido.
            A jovem mostra deferência para com a mãe e faz o que noutras circunstâncias poderia ser um pedido simples e normal, mas neste caso acrescenta duras críticas ao amigo (“sen verdad ', mentidor, traedor”), associadas ao campo linguístico do insulto (ou culpa). Normalmente, quando se quer reconciliar com o amado após uma rutura, ela não o critica mesmo quando ele é o culpado. A rapariga, no entanto, não se lhe refere através de nenhuma das expressões usuais (“amigo”, “amado”, “namorado” e semelhantes), limitando-se à expressão “que namorei”.
            Verso 1 –  “Nom mi digades mal e irei”: o pedido da donzela é precedido de um pré-pedido educado e autodefensivo. A frase parece provir de uma tradição oral encontrada noutras cantigas. A jovem expressa a sua intenção de ir ver o amigo. Se a mãe se opuser (ou se puder opor) ao pedido, ela pedirá permissão para ir. Noutras cantigas, a rapariga exorta as amigas a irem com ela. Raramente pede diretamente ao amigo para a acompanhar.
            Verso 2 – “vee'lo sem verdad'e que namorei”: a donzela acusa o amigo de ser “infiel” (desleal, infiel, falso) antes mesmo de o identificar como seu namorado. Isto explica o motivo pelo qual a jovem pode ter medo que a sua mãe fale mal de si se ela for (I.1, II.1).
            Versos 3 a 5: nos estratos mais antigos desta tradição, os encontros amorosos teriam ocorrido além dos limites do povoamento e do alcance dos costumes: “longi de vila” (Bernal de Bonaval); “fonte” (Nuno Fernandez Torneol, Johan Soarez Coelho, Pero Meogo); “fontana” (Pero Meogo); “monte” (Roi Fernandiz); “rio” (Johan Zorro, Pero Meogo); “mar” (Meendinho, Nuno Porco, Johan de Cangas, Martin Codax); “lago” (Fernand ’Equio). Contudo, o local do encontro foi em grande parte apropriado por locais cristãos: a ermida, a igreja, o “sagrado”. Seja pagão ou cristão, este espaço remoto é onde a donzela e o amigo se podem encontrar, embora não saibamos exatamente o que acontece num encontro específico.
            O amigo muitas vezes deixava-a à espera ou, pura e simplesmente, não comparecia (“Se el nom vem i”). Atrasar-se para um encontro amoroso (ou atrasar-se para a voltar a ver em qualquer circunstância) é uma quebra de confiança que pode causar ansiedade e tristeza ou levantar suspeitas. De acordo com o texto, pode pressupor-se que os dois combinaram um encontro. Ora, não comparecer a um encontro amoroso é motivo suficiente para a donzela romper com ele. Tal como a jovem afirma, o atraso ou a falta de comparência deixam-ma extremamente triste e levam-ma a apelidá-lo de “mentidor” (verso 7) ou “traedor” (v. 17).
            De facto, o verso 11 permite pressupor que a donzela e o amigo concordaram em se encontrar. Provavelmente, é porque ele não cumpriu a sua palavra no passado que ela o chama de “mentidor” e traidor. Nada no texto, por outro lado, sugere que ela suspeite de infidelidade.
            A solução sai também da boca da rapariga: se o amigo não aparecer, tal significará que ele é falso, mentiroso, e ela morrerá na ermida do Soveral, onde o aguarda e onde ele já a fez sofrer muitas vezes, certamente por faltar aos compromissos assumidos pelos dois (“Se el nom vem i, madre, sei que farei: / el será sem verdad'e eu morrerei / na ermida do Soveral / u m'el fez muitas vezes coitada estar…”). Estes versos confirmam, portanto, que não é a primeira vez que a donzela passa por esta situação.
            A estrofe final abre com o rogo da jovem, dirigido a Santa Cecília e Nosso Senhor, um rogo, portanto, a um poder divino ou mágico que reflete a religiosidade da época, no sentido de fazerem com que o amigo compareça ao encontro, no local combinado – a ermida do Soveral. Note-se, contudo, que a derradeira palavra da composição poética (excluindo o refrão) é «traidor».
 

sábado, 24 de outubro de 2020

Análise de "Narciso"

          Este poema de José Régio alude ao conhecido mito de Narciso, filho de Cefísio, rei da Fócida, e da ninfa Liríope, que era filha de Oceano e de Tétis, sua esposa. Desde jovem, Narciso era tão formoso que todas as ninfas o amavam e desejavam, mas ele não se prendia a nenhuma. A ninfa Eco, filha do Ar e da Terra, que vivia nas margens do Rio Cefísio, foi uma das que o não conseguiu seduzir, por isso morreu de amor. Tirésias, o famoso adivinho, preveniu os familiares de Narciso de que este só viveria enquanto não contemplasse a sua própria imagem. De facto, um dia, quando regressava de uma caçada, sentou-se à beira de uma fonte para beber e se refrescar e viu a sua imagem refletida na água cristalina. A contemplação do próprio rosto fez com que se apaixonasse por si mesmo e acabou por morrer extasiado. Após a sua morte, foi metamorfoseado em flor, à qual foi dado o seu nome: narciso.
         Assim, José Régio utiliza o mito de Narciso para abordar a impossibilidade de possuir o seu alter ego, neste caso não uma imagem física, mas o outro «eu» que deseja ser. O espelho em que o sujeito poético se olha não é o espelho de água, mas o da sua interioridade, proveniente de um ato de introspeção: “Dentro de mim me quis eu ver.” (v. 1); “o meu próprio poço” (v. 2). A expressão “dobrado em dois” remete para o desdobramento do «eu», que ocorre quando o sujeito lírico contempla o reflexo da sua alma, que é descrita à semelhança do que sucede com um corpo (“terrível face e arcabouço”), que, no entanto, contrasta com o corpo do «eu», qualificado como «lânguido». Ou seja, um corpo aparentemente fraco e debilitado conserva em si uma interioridade que o faz tremer: “Tremer” (v. 1).
         Na segunda estrofe, o sujeito poético faz contrastar o seu aspeto físico, a sua beleza extraordinária (“Ó lindos olhos […] de moço” ‑ v. 7), com o seu retrato psicológico, associado ao sofrimento, ao silêncio, à solidão, à ansiedade, à angústia e à melancolia. Ou seja, estamos na presença da imagem do poeta maldito, caracterizado pelo génio desprezado (“silêncio esfíngico”), possuidor de uma extrema beleza, aliada a uma personalidade angustiada (“Numa fronte a suar melancolia”).
         Na terceira estrofe, esta imagem de poeta romântico é destacada pela força dos seus poemas, “requintados e selvagens”. Por outro lado, afinal constata-se que a imagem de poeta maldito não é real, antes produto da imaginação: “Assim me desejei nestas imagens” (v. 9). Isto significa que a descrição feita na segunda estrofe não corresponde ao real reflexo da interioridade do sujeito poético, mas o que ele desejava ser.
         No primeiro terceto, é enfatizada a ideia do desejo (“desejei”, “Desejo”), ênfase essa que culmina com a referência à cor vermelha, que representa a paixão e a carne. Contudo, o vermelho é, igualmente, a cor do desejo não satisfeito, do corpo que não é possuído, ideia que é associada à figura de Narciso e ao seu sofrimento por não se poder possuir a si mesmo. Quer isto dizer que o sujeito poético sofre também por não possuir a imagem a que aspirava, não uma imagem física, mas a de si interiormente, da sua alma. Se Narciso sofre por não se poder dividir em dois, o sujeito lírico sofre por não ser uno: “Que eu vivo à espera dessa noite estranha, / Noite de amor em que me goze e tenha, / … Lá no fundo do poço em que me espelho!”.
         No segundo terceto, o sujeito lírico afirma que espera a noite em que, finalmente, possa unir-se à imagem que espelha no fundo do poço, recorrendo a uma linguagem claramente erótica: “Noite de amor em que me goze e tenha”. O poema termina com uma exclamação prenhe de esperança, mas ao mesmo tempo irónica, pois está consciente de que a realização do seu desejo será impossível.
 

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Análise de "Cerra a serpente os ouvidos"

          Este poema de Sá de Miranda é construído em torno da simbologia de vários elementos: a serpente, o encantador e a sereia.
         No caso desta composição poética, somos confrontados com a imagem de uma serpente que, corajosamente e inteligentemente, resiste à sedução do encantador, mais concretamente à sua voz: “Cerra a serpente os ouvidos / à voz do narrador”. Pelo contrário, o sujeito poético não é capaz de resistir ao som sedutor e encantador dessa voz, por isso, inundado de dor, deseja agora perder os sentidos, nomeadamente a audição, visto que são os responsáveis pela sua desgraça, ao fazerem com que se enamorasse por uma “encantadora”.
         Nos versos 5 e 6, o sujeito poético evoca o mar e as figuras míticas da sereia e de Ulisses, o qual, aquando do regresso de Troia, para não ser tentado e seduzido por aquelas, se amarrou ao leme para resistir ao seu canto. Por sua vez, ao contrário da serpente e de Ulisses, que souberam resguardar-se, o sujeito poético não o fez e agora lamenta-se: “eu não me soube guardar / fui-vos ouvir nomear, / fiz minh’alma e vida alheas”.
         Observe-se o modo como o «eu» poético assume o seu amor como um erro que acarretou para si terríveis consequências. Por outro lado, no momento em que dele se apercebeu, já era demasiado tarde para escapar ou corrigir a situação. A consequência foi ter-se apaixonado pela “encantadora de serpentes”: “fiz minh’alma e vida alheas”. A sua alma e vida deixaram de lhe pertencer; são da mulher por quem se enamorou.
         Uma novidade que este poema nos traz reside no facto de o amor não ter tido como origem a visão e a beleza visão da mulher, mas a audição da sua voz, a sua «nomeação», o que significa que o enamoramento foi mais intelectivo do que é norma na poesia amorosa. Por outro lado, o contraste entre as atitudes da serpente e do «eu» colocam-no num plano inferior ao do animal, dado que este se revelou mais avisado.
 

quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Análise do poema "A lavadeira no tanque"

          Este poema é constituído por três quintilhas em versos de redondilha maior, com rima emparelhada, interpolada e cruzada (imperfeita), de acordo com o esquema rimático abaab.
         O tema da composição é a dor de pensar.
         Na 1.ª estrofe, são-nos apresentados a lavadeira e o seu canto. A mulher está a lavar roupa num tanque, batendo com ela na pedra para que fique bem lavada, bem limpa.
         Em simultâneo, canta, o que revela a sua alegria e felicidade. Contudo, na visão do sujeito poético, ela “Canta porque canta”, ou seja, canta mas não tem razões para o fazer. Por outro lado, “canta porque existe”, quer dizer, canta porque não pensa, não reflete sobre a sua vida nem sobre as razões por que canta, visto que é inconsciente.
         O facto de ser inconsciente faz com que, para o sujeito poético, a lavadeira seja triste. Dado que não tem consciência das coisas, da sua vida, ela é triste (“canta porque existe”). Isto significa que, na perspetiva do «eu», as pessoas que não pensam são seres inferiores aos racionais e, na realidade, não são felizes. Porquê? Para ele, como a lavadeira é inconsciente, é incapaz de ter consciência da sua pretensa felicidade, pelo que não é verdadeiramente feliz.
         Paradoxalmente, o sujeito afirma, porém, que a lavadeira é, ao mesmo tempo, triste e alegre, dado que a sua inconsciência lhe permite libertar-se da dor de pensar que o atormenta. Ou seja, a lavadeira é alegre e feliz, porque é inconsciente e, assim, não é atormentada pela dor de pensar; pelo contrário, deduz-se que o «eu» é infeliz, porque consciente. O paradoxo reside aqui: a felicidade supõe consciência (para ser feliz, o sujeito necessita de ter consciência de que o é), contudo a consciência anula a felicidade.
         Na segunda estrofe, a contemplação da lavadeira leva o sujeito poético a desejar lavar os seus versos (metáfora), à semelhança do que ela faz com a roupa. Neste contexto, “lavar os versos” significa libertá-los (= libertar-se a si próprio) da dor de pensar e da angústia que dela decorre.
         Deste modo, se o desejo do «eu» se concretizasse, tal faria com que o sujeito lírico perdesse os seus “destinos diversos”, ou seja, a fragmentação que o caracteriza. Dito de outra forma, o objetivo último desse desejo seria alcançar a unidade e deixar de ser/se sentir fragmentado.
         Na terceira e última quintilha, o sujeito poético clarifica a unidade a que se refere: a ausência de fragmentação da lavadeira, que advém da sua inconsciência. De facto, a mulher realiza uma atividade mecânica (bater / lavar a roupa no tanque), a qual não implica qualquer tipo de reflexão, o que lhe permite viver na realidade, isto é, ela não reflete sobre a existência em geral nem tem consciência de si própria. Se é verdade que a sua inconsciência, a ausência de racionalidade a torna, aos olhos do sujeito poético, um ser inferior, não o é menos que essa inconsciência lhe permite ser una (vv. 11 a 14).
         De facto, apesar de o sujeito poético se considerar superior à lavadeira ‑ porque é um ser racional e consciente, ao contrário dela, que é inconsciente ‑, a verdade é que a omnipresença da razão o impede de ser uno e, pelo contrário, o fragmenta.
         O verso 15, com que finaliza o poema, em forma de interrogação retórica, evidencia o desejo de o sujeito poético se libertar de um ato reflexivo que lhe causa grande dor e sofrimento. Pelo contrário, ele deixaria de intelectualizar as suas emoções e de se fragmentar permanentemente: “Quem me lava o coração?” (v. 15).
 
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