Germa nasce, na
cidade, e a notícia do seu nascimento chega ao conhecimento da tia e da avó
através de um postal. O desagrado de Quina perante tal notícia é tão grande que
embebeda o carteiro que trouxe o postal, por vingança ou castigo (para não ler
mais nenhum postal), mas sobretudo porque lhe desagradavam a entrada de mais
uma mulher na família e a sua proveniência burguesa citadina:
"- É uma
riqueza - disse Quina. Aquilo era todo um fino tratado de reprovação, com tudo
o que a reprovação pode ter de irónico, ferino, despeitado e, apesar disso, não
de todo sério ou combativo. Ela aborrecia que lhe escrevessem postais, fosse
até a mais banal das recomendações. Achava horrivelmente indelicado aquilo, e
era, sob esse aspeto, mais suscetível que uma inglesa com os seus schokings.
A comunicação sujeita à apreciação e à curiosidade ociosa do intermediário
parecia-lhe tão detestável como se esses pequenos segredos familiares que estão
apenas numa ternura, numa palavra de gíria íntima que ninguém mais entende,
fossem intercetados por um estranho. Pegou no postal, e guardou-o na algibeira
sem o olhar." (p. 96)
Esta não é,
todavia, a primeira vez que Quina manifesta contrariedade e se sente ameaçada
pela entrada de novas mulheres na família.
Esta não
aceitação de Germa deve-se a dois fatores. Em primeiro lugar, Quina e Maria
viam em Germa uma "fidalga", oriunda da cidade, e, por outro lado,
desprezam-na por ser mulher: "O nascimento de Germa não lhe causava
entusiasmo de maior, pois ela seria uma pequena fidalga educada e crescida em
ambiente diverso, e sem muitas probabilidades de que a identificassem com o
próprio sangue." (p. 98). Quina despreza as mulheres porque se submetem
aos maridos, o que a fazia sentir-se frustrada como mulher: "Amadas,
servindo os seus senhores, (...) tornadas abjetas à custa de lhes ser negada a
responsabilidade, usando o amor com instinto de ganância, parasitas do homem e
não companheiras. Quina sentia por elas um desdém um tanto despeitado e mesmo
tímido, pois havia nessa condição de escravas regaladas alguma coisa que a
fazia sentir-se frustrada como mulher." (p. 98).
Relativamente
aos homens, Quina "na generalidade, amava o homem como chefe de tribo e
pelo secular prestígio dos seus direitos" (p. 98). Sentia-se, contudo,
superior porque os conseguira "vencer (...) por impulso de carácter"
(p. 98).
2. A infância
de Germa
O primeiro
encontro de Germa com Quina e a avó só ocorreu aos dois anos de idade, o que
revela a indiferença e desinteresse para com Germana. Contudo, porque era
bonita, conseguiu deixar uma impressão positiva nas duas mulheres: "Só
viram Germa passados dois anos. Apesar de estarem dispostas a considerá-la como
uma visita à qual se deve menos afeto do que cortesia, acharam que se parecia
muito às mulheres da casa da Vessada, simplesmente porque era bonita." (p.
99)
Desde logo,
demonstra ser uma criança dotada de excecional perspicácia e capacidades
mentais; no seu comportamento notam-se a riqueza interior, a sua noção de justiça
(apresenta sentimentos de revolta e vingança pela utilização abusiva do poder
dos adultos sobre os inocentes como ela), curiosidade, capacidade de observação
e habilidade no contacto com os adultos, características que a aproximam de
Quina e Maria: "Esse mundo misterioso e deslumbrante da gente grande, era
já motivo único da sua observação. Não vivia nesse estado de aceitação total em
que se verifica que as borboletas voam, não porque tenham asas, mas porque,
simplesmente, são borboletas; (...) Aprendera depressa que a obediência era a
sua melhor defesa contra a esmagadora autoridade, força e categoria dos
maiores; (...) Mas, um dia em que a mãe a esbofeteara apenas por uma
necessidade de violência, desafogando uma arrelia doméstica, a criança
refugiou-se num recanto do jardim, (...)
- Que um raio
venha do céu para a ferir, porque ela pecou contra mim! - disse, alto e
fervorosamente, Germa, apelando para a justiça bíblica". (p. 99)
O primeiro
sinal de aproximação vai ser dado pelo facto de Quina, que nunca tinha tido
bonecas, fabricar "uma extensa série de monas de trapo" para a
sobrinha (p. 100).
Germa é uma
criança criativa, detentora de um espírito de frieza, de individualismo e de
virilidade ("paciente, pouco meiga e que gostava de brincar sozinha"),
características comuns às três mulheres da casa da Vessada. A sua perspicácia
precoce leva-a a conceber a tia como um ser traiçoeiro, trocista e
individualista: "Suspeitava ela o feitiço traiçoeiro de Quina, a sua
diplomacia admirável e um tanto pegajosa, o jeito de troçar ferozmente e de
culpar em abstrato toda a gente, ainda que uma espécie de nobreza de carácter a
fizesse tão fraterna e abnegada diante duma miséria ou duma pena, que a
sentença dos seus juízos teria de ficar sempre suspensa". (p. 101)
Mas o tempo, os
contactos e a semelhança dos caracteres aproximá-las-ão: "Mas, aos sete
anos, Quina era já tão popular no seu coração como a própria casa da
Vessada...". (p. 101)
3.1. Germa e as
duas margens da sua alma → Germa, o duplo de Quina
Uma das
afinidades de Germa com Quina era o facto de ser detentora de um dualismo entre
a ternura perante a proximidade humana e a vileza perante a distância, numa
procura de sobrevivência espiritual (p. 101). Daí que "Germa e Quina
compreendiam--se bem demais, cada uma delas via na outra a sua própria
personalidade (...). Cada uma via na outra defeitos e virtudes, (...) isso
fazia com que mutuamente se detestassem...". (p. 101)
4. A educação
de Germa
Apesar de
oriunda da burguesia citadina e intelectual, a educação de Germa, o seu
espírito equilibrado, a sua profundidade humana e tolerância, a sua abertura
muito devem ao contacto com o campo e a Natureza e ao convívio com as mulheres
da casa da Vessada (2.º parágrafo da p. 102).
"Educada
por freiras e aprendendo, a respeito da moral, a ser limitada por prudência
mais do que por virtude" (p. 106), é Quina quem lhe revela o contraponto
vivido dos preceitos que lhe impõem no colégio e lhe ensina a relatividade dos
conceitos de mal e de bem, a importância da intenção e do contexto no
julgamento dos outros (p. 106).
Esta educação
escolar e colegial (ela ostenta crueldade e cinismo) está desfasada da
realidade e a formação de Germa acabará por se regenerar na casa da Vessada em
contacto com a natureza, acabando por ser a aldeia a sua autêntica escola,
retomando-se, desta forma, um dos temas centrais da obra: a oposição
campo/cidade – "A verdade é que a educação de Germa recebeu um tributo
incalculável naquele convívio com os costumes do campo e da sua gente,
especialmente com as mulheres da Vessada. Todo o postiço que a sociedade lhe
incutia, o supérfluo de que a cultura lhe rodeava o espírito, sofriam ali um
contraste que lhe proporcionava um equilíbrio de valores." (p. 236).
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