Como
D. Sebastião morre sem deixar herdeiro, sobe ao trono o cardeal D. Henrique,
seu tio, «caquético de 66 anos, alimentado aos peitos de uma ama; sete
pretendentes à sucessão, entre os quais Filipe II de Castela, que tinha a vantagem
decisiva da força: a força do ferro e a força do ouro, gasto habilidosamente
pelo seu enviado Cristóvão de Moura. Opôs-se-lhe, antes, a eloquência
patriótica de Febo Moniz; depois, a audácia de D. António, prior do Crato,
proclamado rei em Santarém. O duque de Alba invadiu Portugal pelo Alentejo, ao
passo que a esquadra castelhana se dirigia para Lisboa; e perto da cidade, em
Alcântara, varreu facilimamente a tropa de D. António. Este fugiu para a
França, e Filipe II foi proclamado rei (Agosto de 1580).» (Ibidem)
2. A hegemonia espanhola
.
1580 é
muito mais um ponto de chegada do que um ponto de partida: não será excessivo
dizer-se que consagra dinasticamente a viragem de estrutura de meados do
século. Então, com efeito, os Portugueses abandonaram vários dos
presídios-portos marroquinos, o ouro da Mina deixou de dar os lucros que até aí
dava, e acentuou-se a recuperação dos tratos levantinos, concorrentes da rota
do Cabo; em contrapartida, lançara-se a ascensão do açúcar de S. Tomé e do
Brasil, indo este dominar o mercado mundial durante um século. Deste modo, o
império, conquanto permaneça oriental, por um lado, torna-se sul-atlântico, por
outro, Angola serve, a partir do último quartel de Quinhentos, de reservatório
de escravos para as fazendas e engenhos de além-Atlântico. Enquanto o afluxo em
massa de prata mexicano-peruana a Sevilha favorece o renovo mediterrâneo e
firma a hegemonia espanhola - a prata da Europa Central e Oriental entra em
declínio -, a rota do Cabo absorve
quantidades crescentes desse metal precioso, quer para a compra da pimenta quer
para o comércio da China: o mundo vai ser inundado pelos reales. Assim, a
ligação de Lisboa com Antuérpia enfraquece, do mesmo passo que se estreitam os
laços com os empórios andaluzes e outros mercados na própria Península.
3. O domínio filipino e as desilusões da nobreza
.
Nos primeiros quarenta anos do domínio filipino, a
união das coroas permitiu vencer a crise financeira em que Alcácer Quibir e a
conjuntura de então lançara a nobreza portuguesa, pois os Estados reforçaram-se mutuamente quanto a segurança e finanças públicas. Além disso, essa união abria
aos fidalgos e a cavaleiros portugueses perspectivas de ascensão e melhoria de
estado graças aos campos de serviço em grande parte da Europa - e muitos
não deixaram de as aproveitar, mesmo se para final de certo modo
compulsoriamente (pretendia Olivares afastá-los da mãe-pátria). Continuarão
vários deles, consumado 1640, a servir o monarca espanhol, e mesmo para Espanha
fugirão ainda outros nessa altura. Por outro lado, todavia, o prosseguimento do
regime filipino não pôde deixar de trazer amargas desilusões a vários nobres: a
corte nunca chegou a estanciar duradouramente em Lisboa, e portanto havia que
ir a Madrid requerer mercês, buscar desagravos; apoiar pretensões; a ausência
da corte régia escamoteava uma boa parte da existência fidalga e cavalheiresca,
não permitia participar de perto na condução dos negócios públicos, anulava
ensejos de convívio e ostentação, inibia actividades de criação literária,
teatral e artística. Como mostrou Oliveira França, a nobreza ruraliza-se,
torna-se provincial - e provinciana -, é a época das «cortes na aldeia» (Rodrigues Lobo), e a própria moda
da poesia bucólica reflecte e exprime tal configuração geográfico-social. A
corte dos Braganças é em Vila Viçosa, nem sequer numa cidade de província.
Acanhados em horizontes campestres, fidalgos e cavaleiros sentem-se frustrados,
quando muito, rememoram através da poesia épica também em voga as passadas
glórias. Para muitos não se rasgam perspectivas, é a frustração e o viver
moroso, ou a inquietação insatisfeita mas sem pontos de mira; quantos não se
sentem falhados.
Mentalidade
barroca, que anseia pelo fausto e pela exibição, nos círculos nobres como nos
religiosos - uma religião de exuberância decorativa,
aquietando-se nos ritos de subterrâneas inquietações, satisfazendo-se na
exterioridade de uma insatisfeita interioridade. Religião em que a milícia de
cruzada - sentido primitivo da companhia - cedeu o passo à sociedade organizada política e economicamente,
transformada em potência que trafica na prata do Japão e seda da China e domina
vastas áreas da América do Sul, Estado dentro do estado. Ao mesmo tempo, todas
as ordens religiosas multiplicam os seus institutos e enriquecem os seus bens,
o peso da organização eclesiástica sobre a sociedade civil é cada vez maior.
Vitorino Magalhães Godinho, Ensaios
4. A repressão do Estado e da Inquisição
.
Dominante,
dentro da Península, o grupo senhorial monopoliza inteiramente o Estado, de que
faz parte, coisa sua. O rei abandona o seu papel tradicional de árbitro entre
as diversas forças nacionais. O Estado torna-se absorvente, destrói as
minorias, sejam elas os lavradores vilãos e livres, os hebreus ou os
«mouriscos», impõe uma vigorosa disciplina ideológica, esmagando todas as
dissidências e oposições e regressando à ideologia tradicional da grande época
do feudalismo. Quando estala a grande revolução da Reforma, os dois impérios da
Espanha alinham decididamente, passadas as primeiras hesitações, ao lado dos
que preconizam a restauração da Igreja medieval, sem compromisso com os
reformados. Com o agravamento das suas dificuldades aumenta inevitavelmente a
repressão dos grupos dissidentes cujas raízes, todavia, mergulhando nas novas
condições económicas, não podiam ser destruídas. (...)
Tudo
quanto constituía apanágio do Humanismo, a humanização da religião, a divulgação
directa da palavra evangélica, a reabilitação da natureza, a crítica
anticlerical, foi reprimido pela censura inquisitorial portuguesa.
António José Saraiva, A
Inquisição Portuguesa
5. A decadência
.
O
século XVII foi uma etapa decisiva no caminho do pensamento e da ciência moderna.
É o século de Galileu, de Descartes, de Pascal, de Espinosa, de Bacon, de Newton.
Foi também um tempo de esplendor para as letras e para as artes; grandes
obras-primas foram pintadas ou escritas entre 1600 e 1700: quadros de
Rembrandt, Van Dyck, Velázquez, teatro de Shakespeare, Cervantes, Corneille,
Molière, Racine. A esse período excepcionalmente criador e brilhante
corresponde em Portugal uma época apagada.
Dentre
os maiores nomes europeus, alguns têm relação com Portugal. Espinosa era filho
de um judeu português que a Inquisição obrigou a fugir para a Holanda; Velázquez
era filho de um homem do Porto que teve de ir procurar trabalho em Sevilha. São
meras casualidades, mas que apontam duas das causas fundamentais da decadência:
a repressão inquisitorial, com o isolamento e paralisação das iniciativas
culturais que provocou, e a crise económica e política que culminou com a perda
da independência em 1580 e que conduziu a uma situação de depressão e de
desânimo incompatível com o brilho das letras e das artes.
6. O ensino dos Jesuítas
.
A
acção dos Jesuítas foi fundamental durante todo o século XVI português. Foram
eles que promoveram o ensino e que fomentaram quase toda a actividade cultural
quem, apesar de tudo, se verificou. É um dos muitos aspectos que estabelecem contraste
entre a obra da Companhia de Jesus e a da Inquisição: esta quis impedir a cultura,
aquela tentou fomentá-la. Isso resultava do próprio fim para que tinha sido
criada: para combater as ideias da Reforma. Em todos os países em que se
instalaram, os Jesuítas chamaram a si o ensino e exerceram-no com grande
eficiência. Em Portugal funcionaram colégios em Lisboa (o actual Hospital de S.
José funciona no edifício do Colégio de Santo Antão; para esquecer isso, o
Marquês de Pombal mudou o nome e escolheu o do rei), Évora, Braga, Bragança,
Angra, Funchal, Faro, Portalegre, Ponta Delgada, Santarém, Porto, Elvas, Horta,
Setúbal, Portimão, Beja, Pernes, Vila Viçosa, e houve vários outros no Brasil,
África e Índia. Foi essa a primeira cobertura geral do território por uma
organização de ensino de nível secundário. Os livros de estudo foram
cuidadosamente preparados; os mais bem organizados compêndios didáticos até
hoje produzidos em Portugal são os grossos in-fólios do Curso Conimbricense. Reunia-se
aí todo o saber ortodoxo, isto é, o saber que no ambiente da Contra-Reforma se
considerava harmónico com as verdades da fé. Esses livros, redigidos em latim,
foram a base do ensino até ao tempo de Pombal, que lhes proibiu o uso.
7. O patriotismo e a História
Não
existia apenas a censura religiosa da Inquisição, mas também a censura política
do governo espanhol, que reprimia tudo o que pudesse representar expressão do
sentimento patriótico. O patriotismo refugiou-se, então, entre a gente culta, nas
letras e, em especial, na história. Uma das formas menos arriscadas de ser
patriota era ler Os Lusíadas; o grande poema foi a obra mais lida em
todo o século XVII; entre 1580 e 1640 editaram-se vinte e quatro vezes as obras
de Camões. O passado servia de compensação ao presente, e verificou-se uma
espécie de êxodo para a história. Sem excepção, todos os escritores procuraram
temas para a prosa nos tempos passados. O mais importante monumento que ficou
desse gosto pela história foi a Monarquia Lusitana, constituída por oito
partes, que foram publicadas ao longo de todo o século, entre 1597 e 1729. É a
primeira grande História de Portugal, depois da Crónica Geral do Reino
que Fernão Lopes compôs na primeira metade do século XV; as partes mais
notáveis foram as escritas por Frei António Brandão, que tinha verdadeiro
estofo de historiador e a quem se deve boa parte do que hoje se sabe dos
primeiros reinados.
8. Templos, talha, azulejo
As
belas-artes foram pobres. A maior parte dos edifícios da época foi construída pelos Jesuítas, o que já
levou a falar-se num estilo jesuítico. O que não há dúvida é que o espírito da
Companhia de Jesus marcou grandemente a arquitectura religiosa do século XVII
em Portugal.
A
igreja é concebida como um grande auditório, uma enorme sala de aula. A lição é
o sermão, e tudo se dispõe de forma que a figura do pregador seja vista e a sua
voz ouvida de toda a parte. Desaparecem as colunas interiores, as grandes
reentrâncias, e saliências, que, com o seu movimento e força, tinham marcado a
arte do período anterior. As fachadas são lisas, altas, lógicas, e fazem pensar
no rigor geométrico da dogmática, na proibição da fantasia, na disciplina
vertical. O templo resulta assim de uma severidade fria e desinteressante. Mas
essa austeridade não tarda a desaparecer sob a decoração impetuosa do azulejo e
da talha, que desempenham nas artes uma função que faz lembrar a que o
adagiário popular teve nas letras.
A
azulejeria e a talha são as grandes criações da arte portuguesa no século XVII.
Aí não tivemos mestres estrangeiros; os ceramistas e entalhadores eram artistas
do povo (de pouquíssimos se conservam os nomes) e a evolução desses géneros
reflecte a cultura e o gosto populares com a sua devoção festiva e as
reminiscências de arte oriental. Foi no génio popular que se encontrou a
resposta para as novas condições da vida nacional; o azulejo substituiu nas
paredes das igrejas e dos palácios as caras tapeçarias que dantes vinham da
Flandres e da Holanda (as panos de rás) e cuja importação se tornara impossível
por causa das guerras que os espanhóis ali travaram durante quase todo o
século. Os especialistas falam em azulejos de «tipo tapete» e em «tapeçarias
cerâmicas», designações bem significativas. A talha substituiu em grande parte
a escultura em pedra (a imaginárias seiscentista é quase toda de madeira e a
dos períodos anteriores quase toda de pedra) e substituiu também outros
materiais muito caros: o ouro e a prata dourada. Muitos objectos de culto
(relicários, sacrários, candelabros, castiçais, estantes de altar),
anteriormente feitos de metal, passaram a ser feitos de madeira dourada e
trabalhada por modo a parecer de metal. O material é barato e a produção destes
ourives marceneiros atinge proporções enormes. O interior dos templos torna-se
então magnífico e o ouro da talha, combinado com o azul do azulejo, consegue admiráveis
efeitos decorativos. Por ser tão popular e tão português, o êxito desta
decoração é imenso e duradouro. Prolonga-se por quase todo o século seguinte e,
levado pelos emigrantes, enraíza no Brasil. A Baía é, hoje, a capital da talha
portuguesa; em muitos casos, a madeira adoptada foi o castanho. No país do
jacarandá, os entalhadores portugueses continuaram a recordar os soutos das
suas aldeias.
José Hermano Saraiva, História
Concisa de Portugal
9. O abismo entre a Nobreza e o Povo
.
O
espetro da fome encontrava-se no horizonte visual da grande maioria dos homens
de então e condicionava os aspectos fundamentais da vida seiscentista, nas suas
faces social, política e cultural: o abismo entre as classes privilegiadas e o
povo, a latente revolta popular que se exacerbava em momentos de aperto (fomes
e preços elevados), não tanto porventura contra a nobreza (à qual cabia, por
imposição de um destino inexorável, não só a posse dos bens terrenos, como as
esperanças transcendentes), mas contra a avidez do fisco real e dos seus
executores.
Ao
invés do que viria a ocorrer na Holanda, na Inglaterra e na França, a expansão
marítima e colonial peninsular reforçou o poderio da classe dos grandes
detentores da terra. Quaisquer que venham a ser, em última instância, as causas
do facto, é incontrovertível que a nobreza hispânica beneficiou com a empresa
marítimo-comercial ultramarina, o que lhe permitiu, mesmo iniciada a decadência
da hegemonia peninsular, encasular-se nos seus domínios e preparar-se para
durar. No século XVII ela alcança o zénite da sua trajectória histórica
moderna, o que se poderá comprovar pela pujança da mundividência barroca - na literatura, na arte, no pensamento, assim
como na arte de viver e de morrer, que, ao nível do devir das civilizações e da
conjuntura, individualiza e define tal centúria. Ora, de um ponto de vista de
história social, o barroquismo é sinónimo de mundividência aristocrática ou aristocratizante,
aliás contaminada e impregnada, na Península, de influência ideológica clerical.
Joel Serrão, As
Alterações de Évora
10. A burguesia dos cristãos-novo
.
Dominando
a economia comercial, isto é, a economia mercantil do século XVII a burguesia
de cristãos-novos exerce um grande peso na política e na administração. É ela
que se ocupa das magistraturas municipais. É ela que elabora com os reis os
contratos de arrendamento, contratos de cobrança de impostos, que desempenham
um papel essencial na organização de certos tráficos, como, por exemplo, o dos
escravos.
É
ela que empresta dinheiro ao rei, quer pela criação de companhias de navegação
e de comércio, encarregadas da protecção das colónias contra os ataques
holandeses ou ingleses, quer simplesmente pela organização de frotas de guerra
destinadas a qualquer expedição contra uma fortaleza ou uma companhia ocupada
pelo inimigo.
É
ela que, em grande parte, provém para o dote da rainha de Inglaterra e para a
paz com a Holanda. É ela que pelas suas relações com todas as colónias judaicas
da diáspora europeia pode encontrar os fundos estrangeiros de que Portugal
precisa.
Mas
a burguesia dos cristãos-novos não se interessa somente pela ciência económica.
Os Judeus eram depositários da ciência muçulmana, isto é, da ciência grega e
oriental transmitida pelos Árabes.
Portugal
não é no século XVII o único país a possuir uma burguesia e um grupo de
cristãos-novos. Mas o que faz a sua originalidade é a confusão existente, de
facto, entre burguês e cristão-novo. Burguesia judaica logo dominada por
algumas famílias de grandes negociantes. Mas precisamente por causa deste
carácter religioso, a burguesia não pode, como em França ou na Itália, tomar de
assalto os títulos, as terras, os ofícios. Tentou fazê-lo antes da Inquisição.
Mas, durante a Inquisição, somente uns três grandes burgueses o conseguiram por
meio de falsas genealogias compradas a troco de grandes somas e de pretensiosas
demonstrações da sua «limpeza de sangue»
- e sem dúvida depois de várias gerações de
«aristocratização» progressiva. A burguesia portuguesa permaneceu, sem dúvida,
durante o século XVII, uma burguesia activa de negócios, muito mais do que as
outras burguesias mediterrânicas ou europeias. Ela não caiu naquela «traição»
de que fala Fernand Braudel, pelo menos porque Portugal é desde início um país
marítimo e o desenvolvimento económico do Brasil foi um estímulo para os
negócios. A evolução que sofreu no decurso do século não modificou
fundamentalmente esta situação.
Frédéric Mauro, Études économiques sur l’Expansion portugaise
11. A Restauração
portuguesa
Em
Portugal, como em Espanha, passa-se quase insensivelmente de um ambiente de
incipiente Renascença para um ambiente de Contra-Reforma e para o estilo maneirista.
No entanto, certas condições peculiares, nomeadamente um sensível
desenvolvimento da burguesia durante o século XVII sob o estímulo da
colonização brasileira e um tardio reforço do absolutismo e do feudalismo
decadente, graças às minas do Brasil sob D. João V, justificariam que
reservássemos a designação de Época Barroca
para o período de intensa crise política, social e cultural que se processa
entre a Restauração e as reformas de Pombal.
Embora
incluída no sistema do império da Casa da Áustria, a realidade portuguesa
apresenta alguns caracteres específicos já antes da Restauração.
Com
efeito, a colonização brasileira, o comércio transatlântico do açúcar, do
tabaco, do pau-brasil, além do contrabando da prata peruviana, o asiento (ou tráfico de negros africanos
para a América do Sul) e a incrementada exportação do sal, sustentaram e
desenvolveram a burguesia comercial, ligada a uma rede mundial de comércio
constituída por «cristãos-novos» emigrados. Muitas linhagens fidalgas encontram
uma solução para as suas dificuldades no cruzamento matrimonial com famílias de
cristãos novos, outras no comércio açucareiro. Nos colégios jesuítas, sobretudo
no de Santo Antão em Lisboa e no Colégio das Artes de Coimbra, e depois nas
universidades, sobretudo na de Coimbra (que desde D. João III perdeu muitos
privilégios a favor da de Évora, inteiramente jesuíta, e do Colégio das Artes),
muitos filhos da burguesia, em grande parte cristãos-novos, alcançam o acesso à
alta convivência, apesar das terríveis revoadas de repressão inquisitorial.
Com
estas circunstâncias, e também com a resistência popular espontânea à castelhanização
forçada, se relaciona a produção, em todo o período filipino, de uma intensa
literatura oral ou manuscrita, e por vezes impressa, de oposição antifilipina,
desde as sátiras clandestinas atribuíveis aos dois Rodrigues Lobo, até aos
pasquins eborenses da sublevação rural e urbana do Sul do País em 1637,
assinados com o nome de Manuelinho: são coplas, romances, cartas, diálogos,
entremezes, actas supostas de câmaras municipais sertanejas, etc. Este género
de literatura prolonga-se para além da Restauração, em denúncias constantes das
conspirações de certos altos aristocratas e clérigos contra D. João IV, e
intervém mais tarde nas intrigas em torno dos comandos militares, da corrupção
burocrática, da questão judaica, do golpe de estado de Castelo Melhor, etc. A
obra-prima desta literatura panfletária anónima é a Arte de Furtar. Já
muito anteriormente corriam as cópias das Trovas de Bandarra, sapateiro
de Trancoso condenado pela Inquisição em 1541, que foram interpretadas em
sentido messiânico e especialmente sebastianista e anticastelhano, e pela
primeira vez impressas em 1644 em Nantes.
Há
outras manifestações de uma certa ascensão da classe média desde fins do século
XVI. A exaltação do idioma e a intensificação do seu estudo gramatical, a multiplicação
de compêndios de história nacional, de elogio aos antigos reis portugueses, as
reedições sucessivas d’Os Lusíadas e das Rimas de Camões, uma
série de comentaristas camonianos e de poemas épicos que sucedem desde D.
Sebastião, se por vezes reflectem mais particularmente um patético preconceito
da linhagem (caso das epopeias), correspondem em geral a um sentimento nacional
de resistência, assente principalmente na burguesia comercial e togada, nos
grupos urbanos; a isto acrescem o descontentamento geral (à medida que a crise
final do regime filipino intensifica a exploração tributária e a mobilização
militar), que atinge artífices e camponeses, as esperanças de tolerância futura
para a minoria designada com o nome de «Cristãos-Novos», as preocupações da
Companhia de Jesus, atingida na sua expansão ultramarina pela Guerra dos Trinta
Anos e consequente expansão à custa das possessões portuguesas, e finalmente a
desilusão de uma parte da nobreza, preterida na corte madrilena por estrangeiros
ou por funcionários de origem menos ilustre e, por isso, mais submissos aos
ministros filipinos.
O historiador Oliveira
Marques conta-nos, no entanto, que em Novembro de 1640 «a conspiração dos
aristocratas conseguira finalmente o apoio formal do duque de Bragança. Na
manhã do Primeiro de Dezembro, um grupo de nobres atacou o palácio real de
Lisboa e prendeu a duquesa de Mântua.» D. João de Bragança é aclamado rei,
«entrando em Lisboa alguns dias mais tarde. Por quase todo o Portugal metropolitano
e ultramarino as notícias da mudança do regime e do juramento de fidelidade ao
Bragança foram bem recebidas e obedecidas sem qualquer dúvida. Apenas Ceuta
permaneceu fiel à causa de Filipe IV.» A proclamação da independência «fora
assim coisa relativamente fácil. Mais difícil seria agora conseguir mantê-la, o
que custou vinte e oito anos de luta e provou ser tarefa muito mais árdua»
(Marques, 1980: 440).
Os
Portugueses de 1640, tal como em 1580, estavam longe de ser unidos: «Se as classes
inferiores conservavam intacta a fé nacionalista e aderiram a D. João IV sem
sombra de dúvida, já a nobreza, muitas vezes com laços familiares em Espanha,
hesitou e só parte dela (de onde havia provindo o núcleo revolucionário)
alinhou firmemente com o duque de Bragança.» (Ibidem: 441-442). Muitos nobres
conservavam-se em posição duvidosa, «outros esperaram algum tempo até se
decidirem, outros ainda continuariam a servir Filipe IV, sendo recompensados
com títulos e dignidades (três nobres portugueses foram governadores dos Países
Baixos e um deles foi vice-rei da Sicília depois de 1640)» (Ibidem: 442). A
maior parte dos burocratas apoiou D. João IV, «tornando-se seus secretários e
propagandistas. Todavia, alguns escolheram a causa de Espanha e alinharam como
conspiradores contra o novo regime. Quanto aos burgueses, a grande maioria não
participou no movimento separatista e foi apanhada de surpresa. A sua atitude
depois de 1640 mostrou-se, geralmente, de expectativa neutral. Muitos
mercadores e capitalistas estavam metidos em negócios em Espanha, possuindo aí,
ou no Império Espanhol, boa parte dos seus bens. Outro grupo, porém, com um
núcleo importante de cristãos-novos e conexões de relevo fora da Península
Ibérica – na Holanda e na Alemanha sobretudo – apoiou a revolução e ajudou a
financiá-la. É que os negócios deste grupo dependiam muito mais do tráfico
atlântico (Brasil) e do tráfico com a Europa Ocidental e Setentrional» (Ibidem:
442)
12. As minas do Brasil e o apogeu do
Barroco em Portugal
A
descoberta do ouro e dos diamantes do Brasil, o incremento das exportações de
vinhos (estabilizadas pelo tratado de Methuen em 1703) adiam de novo o problema
económico e social, propiciam o prolongamento e reajuste das formas barrocas em
Portugal. No tempo de D. João V, com efeito, o ouro brasileiro repete os
efeitos das especiarias de Quinhentos: a indústria, ainda mesteiral, definha
(excepto em certos ramos sumptuários), no movimento comercial externo
destaca-se a exportação visível do ouro, como moeda cunhada ou por interpole (contrabando); emigram massas
enormes de artífices e camponeses, sobretudo nortenhos; a burguesia prefere
dedicar-se ao contrabando, aos contratos fiscais, ao comércio externo, ao
funcionalismo e às profissões liberais; o orgulho de classe da aristocracia
exacerba-se, enchendo os conventos de mulheres sem casamento condigno, o que
relaxa e mundaniza a disciplina monástica; enchem-se as rodas de «expostos»
(enjeitados), e as portarias conventuais ou senhoriais nos dias de esmola ou do
caldo; a escolástica jesuíta repele transigências que ainda tinha em 1630 com a
mecânica, e torna-se sebenteira.
Há
a orgia do espectaculoso, dos efeitos artísticos redundantes e cumulativos; a
ópera de Metastásio, profusa de coros, bastidores e «tramóias»; a arquitectura
imponente e recheada inteiramente de talha ou mármores variegados; procissões
espaventosas, principalmente as de Corpus
Christi, em que figuram inclusivamente alegorias mitológicas; recepções solenes,
faustosíssimas, de embaixadores ou de prelados; autos-de-fé copiosos, com a
pompa tradicional; touradas intérminas; coches monumentais.
Publica-se
então o mais extenso cancioneiro do barroquismo versejante, a Fénix Renascida, que depois será
antologizada e actualizada sob o título de Postilhão
de Apolo. Os títulos dos livros são muito longos e pomposos. Em 1720
cria-se a Academia Real das Ciências, que, pelo culto da documentação, progride
a historiografia seiscentista, mas reproduz na erudição a mesma ansiedade do
monumental que D. João V herdou de Luís XIV.
Por
outro lado, na medicina, na balística, na engenharia, na cartografia, na astronomia,
na mineração, na pedagogia, como na arquitectura, na pintura, na música
orquestral ou vocal, na cenografia, D. João V precisa de mandar vir
estrangeiros, de consultar portugueses estrangeirados
(incluindo cristãos-novos), precisa mesmo de enviar portugueses a industriar-se
no estrangeiro. Oratorianos e Teatinos, mais condescendes com o espírito
científico das sociedades então aburguesadas, quebram o monopólio do ensino
jesuíta. Pelas fendas que se abrem nas necessidades mais clamorosas, penetra o
ar de uma mentalidade antiescolástica e antibarroca. Põe-se agudamente o
problema de como educar de modo mais útil a classe dirigente. A baixa na
extracção do ouro e noutros produtos coloniais, que se acentuará na 1.ª metade
do século XVIII, torna urgente um programa de fomento mercantilista.
Alguns
homens mais actualizados, como Martinho de Mendonça Pina e Proença, D. Luís da
Cunha, Diogo de Mendonça Corte Real, Alexandre de Gusmão, Ribeiro Sanches,
Verney e outros, esboçam já no reinado de D. João V o programa que o marquês de
Pombal tentará levar a cabo.