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segunda-feira, 20 de abril de 2020

Retrato de Frei Dinis

Antes de se ter tornado frade, Frei Dinis era simplesmente Dinis de Ataíde, um importante magistrado, representante da vida mundana.

“Católico sincero e frade no coração”, era o “frade mais austero e pregador mais eloquente daquele tempo”.

Tratava-se de um “homem extraordinário que juntava a uma erudição imensa o profundo conhecimento dos homens e do mundo”.

É austero e inflexível: “homem de princípios austeros, de crenças rígidas e de uma lógica inflexível e teimosa”.

“Um ser de mistério e terror”, “o cúmplice e o verdugo de um grande crime”, encarna a ideia cristã da penitência, vive para expiar os seus pecados, sendo objeto de uma cólera divina.

Figura ominosa, agente de um destino inexorável, cuja função na economia da obra é criar uma atmosfera de terror, fazendo prever ao leitor uma fatalidade iminente e um mistério terrível que o cerca.

Atormentado pelo remorso, perseguido pelo mundo na cela do seu convento, abomina as doutrinas liberais e a heresia.

Neste sentido, simboliza as ideias absolutistas (o Portugal Velho), segundo as quais o poder régio é legado por Deus para governar a nação seguindo os preceitos evangélicos.

É uma personagem aparentemente rigorosa e malévola, como era característico do frade romântico, o que, de certa forma, confirma: é o destruidor da família do Vale e o protótipo do mal.

A sua transformação em Frei Dinis representa a rutura com o material e a ligação ao espiritual, traço em que é o oposto de seu filho, Carlos.

Visita a casa do Vale todas as sextas-feiras.

Acaba por entrar em conflito ideológico com Carlos, de quem é pai, que o considera um intruso.

Antes de ser frade, Dinis de Ataíde era materialista, dominado por paixões que levarão ao nascimento de Carlos, à morte de sua mãe e ao assassínio do pai de Joaninha e do marido da mãe de Carlos, crimes que o levarão a professar, abandonando a vida materialista e mundana para se tornar espiritualista.
Em contramão, Carlos segue um percurso inverso: quando jovem, era idealista (daí a adesão ao Liberalismo), desprendido das coisas materialistas (espiritualista), porém, com a instalação do Novo Regime (Liberalismo), a sociedade torna-se profundamente materialista e ele torna-se barão, o símbolo mais perfeito do materialismo burguês.


Retrato de Joaninha

1. Retrato físico

Joaninha é uma jovem órfã de 16 anos, pele branca e olhos verdes, como a Natureza pura, com a qual ela está em harmonia.

O seu retrato começa por ser físico e só depois é caracterizada psicologicamente.

2. Retrato psicológico

Joaninha é uma adolescente natural, impoluta, misto de criança e mulher, ideal de espiritualidade.

É definida pela estabilidade e pela fidelidade ao espaço onde cresceu – o Vale de Santarém – a cujos valores permanece fiel: a harmonia, a perfeição, a simplicidade, a espiritualidade, a naturalidade e a pureza original (a cor verde dos olhos) de um espaço que exclui os vícios sociais.

É sentimental, ingénua e pura, não corrompida pelos vícios da sociedade; enlouquece e morre, vítima inocente, ao ser confrontada com as injustiças e crueldades sociais.

Personifica a graça, a fragilidade, o espírito de sacrifício, o encanto feminino segundo a conceção do autor.

Polariza todas as mulheres que Carlos amou, todas as suas paixões e anseios amorosos.

Apresenta traços de excecionalidade, de diferença.

Está-lhe associado o rouxinol, que prenuncia, por associação com o rouxinol da Menina e Moça, de Bernardim Ribeiro, o sofrimento amoroso, a desilusão e a morte vividos

É o retrato da mulher ideal, da mulher-anjo, constantemente superlativada.


COVID-19: ponto de situação do dia 19 de abril


Retrato de Carlos

▪ Caracterizado direta (pelo narrador) e indiretamente (a partir dos diálogos e da carta final), é uma personagem modelada, rica de vida interior, sofrendo evolução psicológica ao longo da obra.
▪ É a personagem central, o protagonista, em quem Garrett vazou a sua própria personalidade, procurando justifica-la e tomando a sua defesa: “Leitor amigo e benévolo, caro leitor meu indulgente, não acuses, não julgues à pressa o meu pobre Carlos” (cap. XXII).
▪ É o modelo da galeria romântica dos homens fatais, que espalham o sofrimento e a destruição à sua volta.
▪ Começa por ser caracterizado fisicamente e só depois psicologicamente, numa perspetiva que parte do geral para o particular. Como sucede frequentemente com diversas personagens, as suas características físicas indiciam as psicológicas.

1. Retrato físico

• Carlos tem aproximadamente 30 anos.
• É de estatura média, corpo delgado, mas com peito largo e forte (alberga um grande coração).
• Tem olhos pardos e expressivos.
• A boca, embora pequena, é igualmente expressiva.
• Os olhos e a boca projetam o temperamento e o caráter de Carlos: a nobreza, a lealdade, a generosidade, mas também a afetividade, a emotividade e a tendência para o arrebatamento (cap. XX).

2. Retrato psicológico

• É franco, leal e generoso.
• Por outro lado, é vaidoso e mentiroso, temperamental e difícil de entender.
• É egoísta até à comiseração que sente por si mesmo, sorve dos outros aquilo que lhe podem dar, sem jamais retribuir, porque é incapaz disso: “Quero contar-te a minha história: verás nela o que vale um homem. Sabe que os não há melhores que eu: e tão bons, poucos. Olha o que será o resto!” (cap. XLIV).
• Era possuidor de um coração puro que a sociedade transformou num cético, um sentimental arrastado por um coração demasiado grande e sensível que não sabia obedecer à razão ou à vontade.
• Possuidor de um caráter inconstante, que o impede de encontrar-se a si próprio, de identificar-se com o seu verdadeiro «eu», simbolizado por Joaninha, é incapaz de vencer uma tendência mórbida para a volubilidade.
• Representa as ideias liberais e, simultaneamente, as opiniões pessoais do autor sobre o liberalismo e a sua aplicação prática.
• Incapaz de vencer a indeterminação, cai no indiferentismo, engorda, enriquece e faz-se barão.
• Encarna a instabilidade sentimental do romântico: sofre por não poder dar-se inteiro e para sempre no amor, mas não deixa de se envaidecer por ter um coração “grande de mais”.
• É uma personagem marcada por traços de excecionalidade típicos do herói romântico:
» a superioridade;
» as antinomias (“fácil na ira, fácil no perdão”);
» o pendor para a marginalidade;
» o pendor para o isolamento existencial.
• Contrariamente a Joaninha, é dominado por uma tendência para a mudança/instabilidade:
» a partida do Vale;
» o exílio;
» o regresso ao Vale;
» a partida definitiva do Vale;
» dividido entre o chamamento do Amor e o empenhamento no combate pelo Liberalismo, empreende um percurso instável de sucessivos desenganos amorosos (com Júlia, com Laura e com Georgina na Inglaterra; com Soledad na Ilha Terceira, com Joaninha no Vale);
» o empenhamento na causa liberal também se resolve em termos de mudança, já que esse empenhamento significa o envolvimento de uma personagem originariamente boa e pura (porque proveniente do espaço paradisíaco do Vale de Santarém) na teia das convenções sociais que a vão degradando, acabando poe ceder ao materialismo e se tornar barão.

3. Carlos enquanto herói romântico (síntese)

A longa carta que Carlos escreve a Joaninha permite identificar as características que fazem dele um herói romântico:
▪ individualista, narcisista e egoísta, vivendo um drama interior;
▪ temperamento contraditório e dominado pelo sentimento;
▪ marginal, solitário e sofredor;
▪ fracassado a nível social e amoroso: passa do idealismo ao materialismo, de Adão natural transforma-se em Adão social, seguindo um percurso oposto ao do pai, Frei Dinis;
▪ megalómano;
▪ sedutor;
▪ sentimento de superioridade;
▪ excecional e excessivo;
▪ revolucionário;
▪ instável e constantemente móvel (partida do Vale, exílio, regresso, nova partida, etc.);
▪ ser corrompido;
▪ amante: ama todas as mulheres, revelando-se incapacitado para o amor;
▪ herói fatal: causa a perdição daqueles que o amam ou que o rodeiam.

4. Percurso de Carlos

▪ Infância na casa do Vale.
▪ Formatura em Coimbra.
▪ Adesão às ideias liberais.
▪ Emigração para Inglaterra em 1830, onde vive um período de grandes paixões e mentiras.
▪ Regresso ao Vale de Santarém como oficial liberal, durante a guerra civil que opôs liberais a absolutistas.
▪ Reencontro com Joaninha.
▪ Incapacidade de corresponder ao amor de Joaninha.
▪ Ferimento numa batalha e mudança para o convento de Frei Dinis, em Santarém.
▪ Fuga a compromissos (Joaninha versus Georgina).
▪ Incapacidade de enfrentar a revelação do passado da sua família.
▪ Incapacidade para lidar com o destino trágico: a avó cega, de tanto chorar, fica como morta; Frei Dinis é um cadáver vivo; Georgina professara; Joaninha enlouquecera e morrera.
▪ Entrada na política: torna-se barão.

Este percurso de Carlos simboliza a fraqueza do Homem. Ele personifica o trajeto de um jovem bom que, ao sair do edénico Vale de Santarém, onde fora criado, na casa da avó Francisca, ao lado de Joaninha, vigiado por Frei Dinis, perde a sua pureza original e se transforma, tornando-se, no final, barão.
Almeida Garrett parece identificar-se com o Carlos herói romântico, que, no entanto, ao longo da obra acaba por se transformar num anti-herói que desiste por não conseguir resolver os seus dilemas. O fracasso da sua vida amorosa coincide com o triunfo do Liberalismo, no entanto a desistência de todos os seus ideais condu-lo ao ceticismo, tornando-se barão. De facto, o jovem, originalmente puro e bom (o Adão natural), cede ao materialismo e às convenções sociais que o transformam e o fazem barão (Adão social). Estamos, afinal, na presença da teoria do “bom selvagem”, de Rousseau, segundo a qual o Homem nasce naturalmente bom (Adão natural), mas é corrompido pela sociedade (Adão social).

5. Posicionamento do narrador relativamente a Carlos

▪ à primeira vista, os termos em que caracteriza Carlos propendem a fazer dele uma figura de destaque que sugere uma apreciação positiva;
▪ noutros momentos, deparamos com reações de teor irónico, tendendo a desdramatizar atitudes da personagem marcadas pelo excesso;
▪ no final, o narrador declara-se antigo camarada de Carlos, o que leva a pensar que aquele também se julga a si mesmo num registo autocrítico.

domingo, 19 de abril de 2020

Momentos fundamentais da novela da “Menina dos Rouxinóis”

1883: Joaninha vive no Vale de Santarém com a avó cega.

Todas as sextas-feiras, Frei Dinis visita o vale.

Carlos, primo de Joaninha, que tinha abandonado o vale em atitude de rebeldia para com Frei Dinis, suspeitando que este era o assassino do seu pai e do de Joaninha, regressa ao vale enquanto membro das tropas liberais.

Carlos e Joaninha reencontram-se e apaixonam-se.

Carlos escreve um poema em prosa sobre os olhos de Joaninha.

Carlos começa a revelar a sua faceta de mentiroso, enquanto Joaninha é espontânea e pura.

Carlos é ferido em combate, internado no Convento de S. Francisco, em Santarém, e tratado por Georgina, que amara em Inglaterra.

Carlos tenta matar Frei Dinis, mas a avó impede-o, contando-lhe que ele é seu pai e que matara em legítima defesa o marido da mãe e o pai de Joaninha.

Carlos parte e escreve uma carta justificativa a Joaninha.

Carlos torna-se barão; Joaninha enlouquece e morre; Georgina ingressa num convento; da família restam Frei Dinis e a avó Francisca.

Estrutura trágica da novela da "Menina dos Rouxinóis"


A novela das Viagens apresenta uma estrutura trágica, conforme o próprio Almeida Garrett reconhece no final do capítulo XXVI:
– “Porquê? já se acabou a história de Carlos e Joaninha?” diz talvez a amável leitora.
– “Não, minha senhora”, responde o autor mui lisonjeado da pergunta: “não, minha senhora, a história não acabou, quase se pode dizer que ainda agora ela começa: mas houve mutação de cena. Vamos a Santarém, que lá se passa o segundo ato.”

De facto, a estrutura da novela aproxima-se da estrutura trágica:
o 1.º ato (introdutório) (caps. XI a XVIII):
- localiza-se na casa do Vale;
- nele são apresentadas as personagens e as suas inquietações:
. Carlos, o protótipo do herói romântico, símbolo do Portugal Novo, liberal;
. Joaninha, exemplo da conceção romântica da mulher (-anjo);
. a Avó, testemunha trágica do mistério da família;
. Frei Dinis, símbolo da ideologia absolutista do Portugal Velho;
. Georgina, testemunha da génese romântica de Carlos;
o 2.º ato (caps. XIX a XXV):
- tem como cenário o Vale, onde a guerra civil “parecia cansada”;
- dá-se o reencontro de Carlos e Joaninha (cap. XX), o amor surge e, desde logo, se presente todo o dramatismo que a divisão interior do herói irá acarretar;
o 3.º ato (caps. XXXII a XXXV):
- decorre numa cela do Convento de S. Francisco de Santarém, onde se reúnem todas as personagens (Carlos, Joaninha, a Avó, Fr. Dinis e Georgina) e se assiste ao reconhecimento do frade como pai de Carlos;
- este reconhecimento constitui o clímax da ação trágica: em risco de vida por ferimentos na guerra civil, profundamente abalado pela revelação do mistério da família, Carlos acaba por fugir.
O destino final das personagens é-nos posteriormente revelado:
Carlos: “… um belo dia caiu no indiferentismo absoluto”, fez-se “o que chamam cético”, morreu-lhe “o coração para todo o afeto generoso” e deu “em homem político ou em agiota” (= barão) (cap. XXXVI);
Joaninha morre;
Frei Dinis e a Avó morrem para o mundo-

Esquema da estrutura trágica da novela



A par desta estrutura existem outros elementos característicos da tragédia:

A ação: uma tragédia de família, apresentada no seu momento mais crítico, em que os mistérios são desvendados e as faltas do passado marcam o destino de todos os intervenientes.

A redução progressiva do espaço, até se confinar a uma cela: Vale de >Santarém, hospital, convento, cela.

O tempo relativamente curto, a sucessão rápida e tensa de cenas, com recurso ao “suspense”, provocando o retardamento de dados.

As cenas (diálogos teatrais).

O reduzido número de personagens, cujo sofrimento (pathos) é intenso e crescente.

Os presságios (as visitas de Frei Dinis ocorrem sempre à sexta-feira, dia aziago).

O fatalismo (anankê) que atinge inexoravelmente as personagens.

A anagnórise ou reconhecimento: a cena na cela do Convento de S. Francisco, na qual Carlos fica a saber que é filho de Frei Dinis.

O adensar do conflito até ao clímax.

As peripécias, que conduzem ao desenlace fatal:
» a partida de Carlos para o estrangeiro;
» o seu regresso;
» a guerra civil;
» a batalha;
» etc.

O sofrimento (pathos) das personagens, que aumenta gradualmente até ao desenlace, em que todos morrem física ou espiritualmente.

A compaixão (éleos) e o terror (fobós) que se apoderam do narratário (o leitor).

A presença do coro na carta final de Carlos a Joaninha, espécie de biografia psicológica; vestígios do coro em certos comentários, quer de Frei Dinis quer do narrador.

O desenlace trágico (catástrofe):
- Joaninha (vítima) enlouquece e morre;
- Georgina morre para o mundo (faz-se abadessa de um convento que ela própria funda);
- a Avó fica afásica e abúlica (morta para o mundo);
- Fr. Dinis aguarda a morte, expiando as culpas;
- Carlos destrói-se (cai no indiferentismo e torna-se barão).

A fuga às descrições demoradas e aos longos retratos das personagens.

A utilização da terminologia teatral nas referências à própria construção da novela (por exemplo, no final do capítulo XXVI).

Análise de "Um adeus português"

Contextualização do poema

“Um adeus português” foi publicado originalmente em 1958, na obra No Reino da Dinamarca, e constitui uma crítica ao regime do Estado Novo r ao ambiente persecutório e controlador do Portugal dessa época.
A origem do poema foi explicada pelo próprio poeta. Assim, O’Neill ter-se-ia apaixonado por uma mulher francesa chamada Nora Mitrani e desejava ir a Paris encontrar-se com ela, porém elementos da sua família opunham-se à sua ida e meteram uma «cunha» junto da PIDE no sentido de lhe negarem o passaporte.
Deste modo, o poeta foi chamado à sede da polícia, onde o questionaram a propósito da razão da sua viagem a França e se conhecia a senhora Mitrani. O’Neill respondeu afirmativamente, tendo o inspetor que o interrogava retorquido o seguinte: “Se calhar V. quer ir, porque essa gaja lhe meteu alguma coisa na cachola.”. O poeta respondeu que Nora não era uma gaja e que não tinha cachola. Na sequência deste episódio, não conseguiu obter passaporte durante vários anos.
Quando Alexandre O’Neill pode, finalmente, ir ao seu encontro em Paris, já ela tinha falecido, vitimada pelo cancro, mas ficou a saber que Nora tinha lido o seu poema e ficado muito comovida com o mesmo.


Título

No título do poema, destacam-se duas palavras:
• o nome «adeus»: a despedida;
• o adjetivo «português»: o sentimento nacional.
O título anuncia o final de um amor e, em simultâneo, aponta para uma crítica ao modo de ser português.
De facto, não é a falta de amor que leva à separação dos apaixonados, mas a condição e a vivência no país.


Tema

O tema do poema é a inevitável despedida de dois amantes, de um amor que desde o início estava condenado à impossibilidade [é o tema do amor impossível ou impossibilitado], dado que os apaixonados pertencem a mundos diferentes e opostos – enquanto ela parte para longe, para a “cidade aventureira”, ele permanece limitado à pequenez burocrática e à “dorzinha quase vegetal” em que entretém a passagem do tempo.
Além do sofrimento motivado pela separação dos amantes, destaca-se o diagnóstico sobre Portugal e a maneira portuguesa de viver, resignada ao lento apodrecimento dos afetos, sob o efeito de um mal-estar quase nauseante que contagia, aliás, toda a visão que esta poesia tem do país.

Jornal Público

Além deste tema central, outros estão presentes na composição poética:
▪ o tema da separação e do adeus;
▪ o tema (da imagem) de Portugal;
▪ o tema da revolta e da denúncia;
▪ o tema de um país outro.


Estrutura interna

1.ª parte (vv. 1-4): O sujeito poético interpela o «tu» (a mulher amada), indiciando já a despedida e a separação iminentes entre ambos.

▪ O sujeito poético interpela, ao longo da composição, um «tu», como se pode comprovar pela ocorrência de formas de segunda pessoa:
» pronomes: «tu» (v. 5), «te» (v. 52), «ti» (v. 55);
» determinantes: «teus» (v. 1), «teu» (v. 51);
» formas verbais: «podias» (v. 5), «mereces» (v. 35), «és» (v. 41), etc.

▪ Apresentação do «tu» / da mulher:
» possui «olhos altamente perigosos»: olhar muito sedutor, daí perigoso;
» tem uma relação de amor com o sujeito poético (“vigora ainda o mais rigoroso amor”);
» esse amor e a mulher são puros, ainda que marcados pela sensualidade da «cama»;
» uma sombra ameaça esse amor, a de uma «angústia já purificada».
Esta mulher, o «tu» a quem os sujeito poético se dirige, é aquela que ele ama, mas vai partir de Portugal para outro país, pois não se enquadra no ambiente que se vive cá, marcado pela opressão e podridão, pela repressão policial, pela hipocrisia, pela mesquinhez. É alguém que não se identifica com a monotonia e a ausência de liberdade que asfixia.

▪ A primeira estrofe constitui, pois, a abertura do diálogo (simulado) entre o sujeito poético e o «tu», do qual sabemos muito pouco, além do atrás referido.

▪ A relação entre os dois é muito próxima, proximidade essa que é pontuada pelo uso recorrente de formas de segunda pessoa do singular. Sabemos também que é uma história de amor (“nos teus olhos (…) vigora ainda o mais rigoroso amor”) e que esse sentimento parece condenado à partida: o advérbio «assim» possui um valor temporal e aspetual que antecipa o fim da relação (na medida em que se institui a oposição entre «ainda» e «já não»). Por outro lado, a relação é intensa, mas acaba, inevitavelmente, com o afastamento e a despedida dos dois.

▪ No poema, está presente também um «nós», marcado pelas formas de 1.ª pessoa do plural («apodrecemos», «giramos», «nossa»). No entanto, o «nós» que surge no poema não é sempre o mesmo. Num caso, é o resultado do «eu» + o «tu»; no outro, é o resultado da junção do «eu» com ?.


2.ª parte (vv. 5-49): O sujeito poético apresenta as razões que impedem o amor entre si e a sua amada.

▪ As seis estrofes seguintes (2.ª à 7.ª) constituem um bloco único, ligado pela anáfora («Não») que inicia cada uma delas. O advérbio de negação contribui para a simulação do diálogo, nomeadamente nas segunda e sexta estrofes, em que se estabelece um jogo de polifonia: a ocorrência do advérbio faz ouvir a voz do «tu» simulado, como interrogação total a que responde(ria) o advérbio (em posição inicial), ou apenas como hipótese, quando a ocorrência do advérbio marca a asserção negativa (“tu não podias ficar presa comigo” e “tu não mereces esta cidade”). Esquematicamente:

[eu podia ficar contigo?]                 [tu podias ficar comigo]
                                                    
Não                                tu não podias ficar comigo

▪ A segunda estrofe clarifica que o «tu» é efetivamente uma mulher, a partir da forma feminina do adjetivo («presa»). Ela não se enquadra no conjunto de situações elencadas e, por isso, tem de partir. A anáfora (iniciada pelo advérbio de negação «Não») mostra precisamente os motivos que tornam impossível o amor entre o sujeito poético e a mulher representada por «tu».

▪ A primeira dessas situações surge precisamente na segunda estrofe: ela não poderia ficar presa como ele (mas ele fica). A quê?
» À roda em que ele apodrece: a roda equivale a um círculo fechado e surge associada à forma verbal «apodreço».
» À pata ensanguentada:
. a pata e outros elementos evocam as touradas: o animal avança pelo túnel, ferido («vacila»): a pata ensanguentada (o touro), mugindo (a vaca), sugerindo dor.

▪ A anteposição do adjetivo ao nome em “uma velha dor” sugere a transição da dor (motivada pelo ferimento) para a dor (simbólica) de uma tourada (simbólica) [numa arena que é o mundo, a vida?].

▪ Assim, a roda em que o sujeito apodrece pode ser interpretada como a arena de uma tourada (real e simbólica). Note-se que a forma verbal «apodrecemos» se encontra num plural, isto é, a podridão afeta um coletivo e não apenas o eu.

▪ Os primeiros versos da terceira estrofe indiciam uma vida rotineira e monótona, feita de burocracia.

▪ Os versos seguintes desnudam a miséria, uma “miséria que sobe aos olhos”, indiciando um movimento (ou sensação) de vómito sugerido(a) pelo movimento ascendente denunciado pelos predicados verbais (“sobe aos olhos”, “vem às mãos”).

▪ A enumeração dos elementos repulsivos, culminando com “o modo funcionário de viver”, evoca a tradição poética neorrealista, de que serão expoentes a figura ou a relação com o “patrão Vasques”, de Bernardo Soares, o Coro dos Empregados da Câmara e Mataram a Tuna, de Manuel da Fonseca.

▪ Esta enumeração gradativa evolui dos aspetos positivos para os negativos, realçando o caráter opressivo da cidade.

▪ Na quarta estrofe, a «cama» simboliza o amor, um amor sensual, erótico, mas também marcado pela perspetiva de fim ou morte (“trânsito mortal”).

▪ O dia é “sórdido / canino / policial” (tripla adjetivação): estes adjetivos, juntamente com «mortal», denunciam o clima de perseguição política e policial e de repressão vivido na cidade. Por sua vez, o adjetivo «puríssima» sugere o caráter positivo da mudança que é necessária.

▪ Por outro lado, o dia, que nasce da madrugada, simboliza, ordinariamente, a abertura, o nascimento, e estaria associado à promessa e à pureza, porém, neste caso, corresponde à noite, isto é, ao fecho, à morte.

▪ A quinta estrofe denuncia os brandos costumes que caracterizam a sociedade portuguesa da época, aos quais a mulher não poderia ficar presa.

▪ A imagem da dor trazida pela mão é bastante significativa e está associada à imagem de trazer pela tela, como um cão. Esta passagem possui um valor irónico-caricatural: trazer a dor docemente pela mão, dor à portuguesa (os brandos costumes).

▪ Outra das razões pelas quais o amor é impossível surge na sexta estrofe e tem a ver com o facto de a mulher não merecer aquela cidade, caracterizada pela náusea, pela idiotia, pela morte e pelo absurdo.

▪ A sétima estrofe apresenta duas imagens diferentes de cidade. A mulher «pertence» a uma cidade (quase) ideal, caracterizada pela aventura, pelo amor, pelo comércio puro, uma cidade, em suma, onde existe liberdade e modos de vida alternativos.

▪ Já o sujeito poético vive numa cidade que asfixia, que prende, que oprime, uma cidade onde existe “a moeda falsa do bem e do mal”. Esta representa, metonimicamente, Portugal, que contrasta com a imagem da cidade ideal apresentada anteriormente.

▪ Nesta estrofe, estão presentes temas surrealistas, como o encontro, o acaso, o amor louco.

▪ Em suma, deste bloco de seis estrofes, as cinco primeiras apresentam uma imagem não poética de Portugal, enquanto a sexta (no conjunto do poema, a sétima) retrata um outro lugar alternativo. Esta imagem remete para dois espaços que correspondem a duas identidades nacionais e/ou dois espaços simbólicos (política e culturalmente):

Lisboa                                                        Paris
                                                             
Portugal                                                    França
                                                             
ditadura                                                    liberdade
                                                             
brandos costumes                                     alternativa

▪ Não esqueçamos a origem do poema: Nora Mitrani, francesa surrealista que O’Neill conhecera e Lisboa e por quem se apaixonara, parte da França; o poeta é impedido de se lhe juntar, pois a PIDE confisca-lhe o passaporte e ele, impossibilitado de sair do país, nunca mais a volta a ver, pois, entretanto, ela falece de cancro. No entanto, o que é significativo no poema não é propriamente uma leitura biográfica, antes passa pelo saborear a sua mensagem: de amor, de dor, de revolta e de utopia.


3.ª parte (vv. 50-55): Na última estrofe, assistimos à despedida e separação entre o sujeito e a sua amada.

▪ O sujeito poético despede-se da mulher amada (“digo-te adeus”), que vai partir (“o teu desaparecimento”), despedida essa que é marcada, simultaneamente, pela ternura e pela dor (“Nesta curva [símbolo da mudança de direção da relação entre os dois, isto é, da sua separação] tão terna e lancinante”).

▪ A separação [e a dor que lhe está associada], embora não tenha sido ainda concretizada, é sentida já como tal: “que vai ser que já é” (v. 53).

▪ É o momento do desaparecimento irremediável do amor – marcado pela partida da mulher – para além da curva da vida, um momento de dor e de frustração, comparado a um tropeço de ternura de um adolescente.

▪ Há uma certa circularidade no poema, com marcas de narratividade, dado que a separação é anunciada na 1.ª estrofe e retomada na última.


Crítica

Em suma, o poeta critica, ao longo deste poema, o ambiente vivido na época em Portugal:
▪ compara-o a uma tourada, um espetáculo sangrento, de dor e morte;
▪ critica o povo português por se conformar com a vida que tem (vv. 31-35 e 38-40) – conformismo;
▪ critica a repressão política do Estado Novo, bem evidente na referência ao medo, nos versos 23 a 29;
▪ critica a miséria e a burocracia (vv. 12-21);
▪ critica a podridão e a sordidez;
▪ critica o medo, o desespero e o policiamento.


COVID-19: ponto de situação do dia 18 de abril


Análise de "Autorretrato", de Alexandre O'Neill

Tema: o autorretrato do sujeito poético.


Estrutura interna

1.ª parte (vv. 1-4): Retrato físico do sujeito poético.

• Características físicas:
» moreno;
» cabelo negro (“cabelo asa de corvo”: metáfora);
» nariz mal feito (“nariguete”) acima de uma ferida;
» olhar triste;
» testa “iluminada”.

• A descrição física do sujeito poético insinua, desde logo, diversas características psicológicas:
» a cara revela angústia;
» a ferida denota desdém – é uma atitude de superioridade e desdém – pelos outros ou pelo país – que não cessa;
» o olhar mostra tristeza.

• A ferida na cara, referida no verso 4, sugere uma atitude de superioridade e desdém – pelos outros ou pelo país –, por parte do sujeito poético, que não cura. De facto, o facto de não estar cicatrizada pode querer dizer que essa atitude desdenhosa não cessa.


2.ª parte (vv. 5-8): Retrato psicológico-moral.

• Neste momento do poema, há uma tentativa de esboço de um retrato «moral»: “o retrato moral também tem os seus quês” (v. 7).

• O verso 7 insinua que a sua vida não é exemplar, mas não chega a concretizar a que se refere e nada revela sobre si.

• O verso 8 pode ter um duplo entendimento [“(aqui, uma pequena frase censurada…)”]:
» autocensura por parte do poeta ou
» antecipação da censura por parte de outros (não podemos esquecer que o poema foi publicado em 1962, em plena vigência do Estado Novo): insinua que o que ia ser dito seria cortado pela censura salazarista.

• O retrato moral é breve, enigmático e pouco revelador sobre o “eu” poético, pois este apenas insinua que a sua vida não é exemplar: “o retrato moral também tem os seus quês” (v. 7). E, quando se preparava para revelar algo sobre si, autocensura-se ou antecipa a censura dos outros.

3.ª parte (vv. 9-4): Retrato ideológico-afetivo.

• O sujeito poético acredita no amor e envolve-se empenhadamente nele.

• A «ternura» que sente fá-lo sofrer (“Mas sofre de ternura” – antítese), ou seja, ele mostra ter uma grande sensibilidade e ser afetuoso com os outros, no entanto essa «ternura» e esse afeto trazem-lhe sofrimento.

• O sujeito poético bebe em demasia.

• Ri-se do autorretrato, riso esse que pode ter duas justificações:
» o autorretrato não corresponde totalmente à verdade e sugere, assim, ao leitor que não deve confiar completamente no que diz sobre si mesmo;
ou
» o autorretrato leva-o a rir-se de si próprio, o que configuraria uma autocrítica.


Tom caricatural do poema

Alexandre O’Neill ter-se-á “inspirado” num poema de Bocage (“Magro, de olhos azuis, carão moreno”) para a composição do seu autorretrato.
Por outro lado, diversas expressões da composição aproximam-ma da caricatura, dado o seu caráter humorístico e jocoso: “nariguete que sobrepuja de través / a ferida desdenhosa e não cicatrizada” (vv. 3-4); “o retrato moral também tem os seus quês” (v. 7).


Relação do poema com o soneto “Magro, de olhos azuis, carão moreno”

▪ Os dois poemas constituem um autorretrato dos respetivos autores.

▪ Os autorretratos apresentam três dimensões: a física, a psicológico-moral e a amorosa.

▪ Ambos os textos se referem aos mesmos órgãos do corpo: a cara, o nariz, a tez.

▪ Ambos afirmam que valorizam o amor e que se entregam a ele.

▪ Ambos os textos adotam uma atitude de crítica benevolente e autoirónica, não receando rir-se de si próprios.


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