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quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Análise de "Dizeres íntimos", de Florbela Espanca


 Dizeres íntimos

 
É tão triste morrer na minha idade
E vou ver os meus olhos penitentes
Vestidinhos de roxo, como crentes
Do soturno convento da Saudade!
 
E logo vou olhar (com que ansiedade!...)
As minhas mãos esguias, languescentes,
De brancos dedos, uns bebés doentes
Que hão de morrer em plena mocidade!
 
E ser-se novo é ter-se o Paraíso,
É ter-se a estrada larga, ao sol, florida,
Aonde tudo é luz e graça e riso!
 
E os meus vinte e três anos… (Sou tão nova!)
Dizem-me baixinho a rir: “Que linda a vida!...”
Responde a minha dor: “Que linda a cova!”
 
            Este soneto, cuja temática gira em torno da morte, pertence à obra Livros de Mágoa, datado de 1919.

            O título da composição aponta para a ideia de que se trata de uma confissão do «eu» poético (onde ele revela as suas inquietações e pensamentos dolorosos ao refletir sobre a morte), o que parece ser confirmado pelo uso da primeira pessoa, quer nas formas verbais (“vou”), quer nos determinantes (“minha”).

            O primeiro verso traduz a tristeza do sujeito lírico pela sua morte, sobretudo, deduz-se, numa idade jovem: “É tão triste morrer na minha idade” (v. 1). Assim sendo, o poema coloca-nos, desde já, perante a ideia da morte como algo triste.

            Os versos seguintes parecem esboçar uma imagem do estado físico de uma pessoa morta, como, por exemplo, o redor dos olhos roxos. A aliteração do /s/ produz uma sonoridade apropriada para a expressão de estados de alma caracterizados por sentimentos como a tristeza, a dor e a angústia, motivados pela morte. Por seu turno, a assonância da vogal /i/, associada ao diminutivo “inho”, reproduz um tom agudo que sugere a imagem sonora de um grito fino e dolorido que vai crescendo à medida que o sujeito poético pensa na morte e no abandonar o usufruto da vida.

            Pela leitura da primeira estrofe, fica claro que a morte, para o sujeito poético, é um evento triste, já que significa o fim da vida. Desta forma, o «eu» ironiza a morte, desde logo porque não é possível evitá-la, o que o leva a procurar camuflar o medo de morrer, dado que, ao mesmo tempo que demonstra angústia ao referir-se-lhe, parece ironizar e brincar com a morte, como se depreende do uso da expressão “E vou ver” (v. 2), a qual sugere um momento de reflexão.

            Os versos 3 e 4, embora contenham vocabulário do domínio do religioso (“crentes”, “convento”), não querem dizer que o sujeito poético seja religioso, antes pretendem traduzir uma atitude solene e compungida, representada pela imagem do “convento da Saudade” (v. 4). A referência à cor roxa e o adjetivo “soturno”, juntamente com as vogais fechadas /u/ e /o/ traduzem o tom melancólico e fúnebre que domina a primeira estrofe. Deste modo, o «eu» expressa o medo que a ideia de morte lhe traz, pois a qualquer momento a vida pode extinguir-se e a matéria transformar-se em nada, em pó. Imaginar a própria morte é um gesto assustador e angustiante por várias razões, incluindo o facto de ela não ser apenas uma possibilidade, mas uma certeza.

            A segunda quadra abre com a conjunção coordenativa copulativa «e», o que traduz uma ideia de sequência, ou seja, a tristeza expressa na primeira estrofe expande-se nesta e manifesta-se sob a forma de outro sentimento: a ansiedade [“E logo vou olhar (com que ansiedade!...)”]. O ato de olhar contém em si o sentimento de ansiedade anunciado dentro dos parênteses.

            Após o discurso parentético, o «eu» prossegue a descrição do estado cadavérico, focando-se nas suas mãos, “esguias” e “languescentes”, isto é, moles, fracas, sem vitalidade e pálidas. A repetição da conjunção coordenativa copulativa «e» ao longo de versos vários sugere a gradação com que a morte se vai apossando do corpo: inicialmente, pintam os olhos de roxo; depois, empalidece e enfraquece as mãos; a seguir, no  verso 7, os dedos brancos.

            Nos versos 7 e 8, o «eu» estabelece uma analogia entre os bebés doentes e ele mesmo, sugerindo a sua, dele, morte prematura, enquanto o primeiro terceto se inicia com uma tonalidade mais positiva, tendo em conta o vocábulo “Paraíso” no verso 9, dado que, em termos religiosos, ele simboliza o espaço para onde o espírito vai após a morte, sendo considerado um ambiente calmo, iluminado, pacífico. Ora, é exatamente essa sugestão de paz que este terceto introduz no soneto, como se o sujeito poético fosse gradualmente acalmando e a sua angústia, trazida pelos pensamentos na morte, vai desaparecendo aos poucos.

            Por outro lado, não obstante o Paraíso ser associado à morte, neste caso parece estar mais relacionado com a vida. Aqui, entra em cena a imagem da “estrada larga, ao sol, florida”: a estrada larga é o futuro pela frente; “florida” é a flor da idade, a juventude; o sol representa a plenitude da vida. Em suma, a imagem enfatiza a felicidade trazida pela esperança representada pela estrada larga e florida que é a juventude.

            O último terceto precisa a idade do «eu»: vinte e três anos. Os parênteses e a exclamação traduzem, mais uma vez, a tristeza que sente de morrer na sua idade, tendo toda a vida pela frente. Ou seja, apesar de exalar vida com vinte e três anos, sabe que a morte é inevitável. Neste contexto, as reticências enfatizam a valorização da vida e a vontade de viver.

            O soneto termina de forma irónica: “Dizem baixinho a rir: / Que linda a vida!...”. As repetições da vogal /i/ causam a impressão de uma risadinha fina, sarcástica dos seus “vinte e três anos”. A ironia maior reside no verso 14, traduzindo a dor causada pela morte: “Responde a minha dor:/ Que linda a cova!”. É interessante registar que as antíteses “rir”/”dor” e “vida”/”cova” parecem sugerir que, embora o senso comum se entristeça com a ideia da morte em idade jovem, ela também determina o fim da dor. O nome “cova” representa precisamente a morte, mas uma morte que se torna um alívio, pois o sofrimento, a dor, a angústia terminam.

 

"You have what it takes", A-ha

quarta-feira, 28 de setembro de 2022

Análise de "Poema dum funcionário cansado", de António Ramos Rosa


            Este poema foi incluído na obra O Grito Claro, publicado em 1958. Nele, Ramos denuncia a desumanização de que são vítimas os trabalhadores do Estado, traduzida na alienação que o trabalho rotineiro e monótono impõe a quem dele necessita para (sobre)viver e que se traduz na perda da individualidade que advém do esmagamento do espírito do funcionário público, tratado como uma máquina ou uma parte dela. A sociedade não liberta; pelo contrário, escraviza; não valoriza e dignifica, antes desumaniza.

            Na primeira estrofe, o sujeito poético autocaracteriza-se como uma pessoa solitária, confusa, sem amigos e despojada de sonhos, com uma visão profundamente negativa e pessimista do mundo em que vive, que o oprime.

            Diariamente reduzida a uma coisa, um objeto, o “funcionário cansado” perceciona a cidade como um espaço físico (e social) asfixiante e opressivo, no qual a escuridão da noite, as ruas e as casas se tornam ameaçadoras ao agigantarem-se contra ele (“as casas engolem-nos”) – a casa é representada como um monstro que o engole (devora); as ruas limitam-lhe os movimentos (“ e a rua é estreita / em cada passo”), como secada uma fosse uma calha à qual está preso (como o comboio aos carris) e lhe dirigisse os passos até ao quarto onde vive, solitário, e para onde retorna todas as noites com o coração pesado e a alma triste. O espaço, com efeito, aprisiona-o, a ele e aos seus sonhos, perdendo tudo o que possa ter de mais íntimo, pessoal e criativo. O que sobra? Um “funcionário cansado”, “irremediavelmente perdido no [seu] cansaço”. Atente-se na repetição, nomeadamente da expressão “num quarto só” (quatro vezes em todo o poema), que acentua a solidão do sujeito poético. Por outro lado, a personificação da noite, responsável pela dispersão dos sonhos e dos amigos, bem como das casas que o engolem, sublinha a confinação e o aprisionamento do «eu», vítima de uma realidade que não o deixa respirar.

            A cidade, percecionada, pois, como extensão do poder instituído, impede a libertação da servidão em que o funcionário se encontra, situação que é partilhada pela generalidade dos que executam tarefas burocráticas (atente-se no uso do plural “engolem-nos” e “sumimo-nos”) através das quais o Estado afirma o seu poder, ao mesmo tempo que os responsabiliza, na medida em que as normas são superiormente decididas. Ao funcionário cabe apenas cumprir as ordens que lhe dão e é essa obediência que lhe garante uma vida “útil” à sociedade, o seu sustento e o da família.

            No final do dia, espera-o um quarto, uma outra “gaiola” idêntica à do pássaro que observa através da janela do escritório (verso 16). Ao espaço reduzido em que trabalha, sucede o espaço exíguo em que dorme sozinho. A pequenez do espaço em que faz a contabilidade continua cá fora e, quanto mais pequenos forem os espaços, mais fácil será exercer um controlo sobre os indivíduos, tanto na vida pessoal como na vida profissional e social. Culpado do crime de desejar uma vida na qual lhe seja permitido sonhar, criar, manifestar a sua singularidade de ser humano, o funcionário é condenado à solidão do quarto para não ser contaminado com pensamentos alheios ao desejo de ser útil à nação por parte do “chefe”, cujas promoções se fazem à custa do cumprimento escrupuloso do «dever» e da denúncia de quem pensa de modo diferente.

            Habituado a ser dirigido pelo “chefe”, este funcionário sente-se perdido fora do local de trabalho; o mundo parece-lhe confuso, as relações sociais são inexistentes ou ocasionais, a escuridão causa-lhe medo, porque é nela que se encontra consigo próprio e o que vê dentro de si deixou há muito de fazer sentido, é uma noite mais negra que a noite citadina: “A noite trocou-me sonhos e as mãos / dispersou-me os amigos / tenho o coração confundido e a rua é estreita / […] com toda a vida às avessas a arder num quarto só.” O sujeito poético, solitário, sem amigos e despojado dos seus sonhos, manifesta uma visão pessimista da sua vida e do mundo que o rodeia, sentindo-se emparedado pelo espaço.

            No início da segunda estrofe, autocaracteriza-se como um funcionário “apagado” e “triste”. O seu cansaço nasce do conflito que existe entre o seu reconhecimento de uma vida dedicada à colaboração com uma organização social que o desorganiza a ele, dado que lhe suga a vitalidade, e a necessidade de o fazer, apesar de saber que é apenas uma peça de uma vasta engrenagem e das manifestações de desprezo que sente. O seu lado visível aceita as ordens provenientes do superior hierárquico e o seu lado invisível assiste, impotente, ao esmagamento quotidiano da sua individualidade.

            Isto significa que existe um desajuste entre a sua sensibilidade de poeta e a sua condição de funcionário. De faco, esta obriga-o a uma vida compassada pelo ritmo dos números e dos documentos com que trabalha, o “Débito e Crédito” referenciado no poema. No entanto, em desajuste relativamente a esta condição de funcionário, a sua alma insatisfeita “não dança com os números” e arrasta o seu “olhar lírico” de poeta para lá da realidade, para a beleza de um pássaro, para as “velhas palavras generosas” do seu sonho aprisionado. Neste passo do poema, o sujeito poético recorre, nalguns versos, a uma ironia triste: “A minha alma não dança com os números”, “o chefe apanhou-me com o olhar lírico”, “debitou-me na minha conta de empregado”.

            Apesar de tudo, é no local de trabalho, onde vigora o “policiamento do chefe”, que o funcionário ousa deitar o “olho lírico” (ironia e metáfora: traduzem a possível transformação que a vida poderia trazer à sua vida), para a “gaiola do quintal em frente” (metáfora), atitude que o faz sentir “envergonhado” por se evadir, momentaneamente, do “Débito e Crédito Débito e Crédito”. Este passo do poema pode ter duas interpretações: por um lado, o funcionário sentirá inveja do pássaro por este lhe parecer ter tido mais sorte, dado que nasceu pássaro inconsciente da sua prisão (os animais irracionais, enquanto tal, não pensam, não refletem, pelo que não têm consciência do que são ou experienciam); por outro lado, o olhar que o «eu» lhe dirige é um olhar de cumplicidade terna com o animal encarcerado, tal como ele.

            A realidade é que, da janela do escritório, o funcionário observa um espaço exterior domesticado e murado do qual está ausente o céu; o desejo por parte dos agentes do poder de dominar os que se encontram na base da pirâmide é extensiva à natureza. Quer o ser humano quer a natureza não humana existem apenas para serem úteis: o funcionário faz a contabilidade, o quintal produz o que lá decidiram plantar e o pássaro decora o quintal e distrai o dono com o seu canto.

            Domesticado como um animal numa jaula, o funcionário, “cansado” de pactuar com uma sociedade em que não se revê, sente-se “envergonhado” após ter sido “apanhado” a olhar o pássaro preso. O “chefe”, estupidificado por anos de chefia, não percebeu que um ser humano digno desse nome lamenta a triste vida dos pássaros engaiolados, eles que nasceram para voar no infinito do céu. Provavelmente convencido de que o funcionário desejava trocar a vida rotineira e monótona de “o deve” e “o haver” por outra diferente, decidiu diminuir-lhe o salário, pois muitos outros estariam dispostos a fazer a contabilidade dias inteiros sem tirar os olhos do papel.

            A divisão interior que o conflito entre a vontade da “alma” e a necessidade de ser um funcionário exemplar não se manifesta em revolta contra o agente controlador da sua vida, apenas se anuncia nas perguntas retóricas que o funcionário se coloca e para as quais sabe a resposta: “Porque não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever? / Porque me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?” Estas interrogações traduzem o desalento solitário, a insatisfação calada e só confessada a si mesmo.

            Cansado de não viver, mas da vida desagregadora da sua realidade interior, da ausência de esperança / sonho em que a sua vida se transformou, tem consciência de que, caso escolhesse um caminho alternativo à submissão ao “chefe”, se condenaria à angústia gerada pelo desemprego, pela despromoção social, pelo sentimento de culpa e pela miséria. Na engrenagem social de que ele e a maioria das pessoas faz parte, não há final feliz para ninguém, porque a exploração dos que estão empregados e o desespero dos que procuram emprego é mortal para uns e outros, ainda que por razões diferentes.

            Na solidão do quarto, o funcionário “soletra” as “velhas palavras generosas” (metáfora) que outrora o fizeram sentir-se vivo, talvez porque já não as saiba pronunciar tão bem como antigamente, de tão descabidas que elas agora lhe parecem no isolamento em que vive e em tempos de desprezo pelo que é genuinamente humano.

            Em suma, na segunda estrofe, o «eu» poético revela as razões da sua insatisfação e do seu cansaço: a atividade que exerce como funcionário público, daí o seu autorretrato – apagado, triste e inadaptado à rotina de um trabalho que não é compatível com a sua alma de “poeta”. O seu trabalho envolvendo contas e contabilidade, cálculos e números fazem parte de um mundo material, de um tipo de atividade da qual a sua alma lírica não participa.

            Apesar da sua condição de funcionário que arrasta uma existência apagada, o funcionário soletra “velhas palavras” que povoam o seu sonho abafado – “flor”, “rapariga”, “amigo”, “menino”, “irmão”, “beijo”, “namorada”, “mãe”, “estrela”, “música”. São palavras que podem encher de calor a alma mais fria, de cor o lugar mais cinzento, palavras carregadas da poesia que o funcionário não ousa, apenas timidamente soletra e deixa escapar do “olho lírico”. A enumeração dos versos 22 a 24 simbolizam aspetos como amor, afeto, beleza, vida, inocência, amizade, alegria, luz, que a vida tem e ao «eu» faltam.

            No entanto, o sonho de libertação é impossível, pois o sujeito poético esconde, envergonhado, as suas evasões poéticas, como se verifica com o olhar a gaiola do quintal em frente do seu escritório, está soterrado na prisão da sua vida, autolimitado, sozinho na noite que o venceu e lhe “trocou os sonhos e as mãos”. Aprisionado num espaço físico e social absolutamente asfixiante que o engole e aos seus sonhos, num universo de funcionários que só podem ter olhos para os papéis, perde tudo o que possa ter de mais íntimo, pessoal e criativo, e fica um “funcionário cansado”, “irremediavelmente perdido no [seu] […] cansaço”. De acordo com o «eu» poético, a existência sem poesia constitui um grande vazio, por isso intenta um momento de evasão, traduzido pelo soletrar de “palavras generosas”, sem as quais a vida se resume a nada.

            Em suma, neste poema de António Ramos Rosa, o poeta aborda a temática da opressão da sociedade de meados do século XX, em pleno Estado Novo, e denuncia a desumanização de que são vítimas os trabalhadores estatais, manifestada na alienação que o trabalho rotineiro impõe a quem dele precisa para (sobre)viver, que se manifesta na perda da individualidade decorrente do esmagamento do interior do sujeito poético, tratado como uma máquina ou peça dela. A perda dessa interioridade é denunciada nos versos que exprimem o estado de confusão mental de um funcionário que, após o final de um dia de trabalho, projeta no espaço físico que o rodeia os sentimentos e emoções que tem dentro de si e que é a realidade desconfortável que lhe resta, depois de destruída a sua humanidade numa atividade profissional que assenta na desvalorização do pensar, do sentir, do sonho e da liberdade individual.

segunda-feira, 26 de setembro de 2022

Análise do prefácio da segunda edição de Amor de Perdição (1863)


 
1. Fontes usadas para reconstituir a história de Simão Botelho, tio paterno de Camilo Castelo Branco: os relatos da tia Rita, irmã do protagonista, as informações inscritas nos livros de registo da cadeia, uns “maços de papéis antigos” guardados em casa da irmã do próprio Camilo e o testemunho de contemporâneos do seu tio.
 
2. Efeito obtido com a referência a diversas fontes: grande curiosidade e preocupação com a verdade por parte do autor; deste modo, confere veracidade ao retrato e desperta o interesse do leitor.
 
3. Elementos que permitem a identificação entre o narrador-autor e Simão: o parentesco (tio – sobrinho) e a prisão na mesma cadeia.
 
4. Características de Amor de Perdição (segundo o próprio autor): o caráter “triste”, “sombrio” e angustiante; “a rapidez das peripécias”; a derivação concisa do diálogo para os pontos essenciais do enredo; a ausência de divagações filosóficas; a linguagem simples e sem artifícios.
 
5. Relação entre a rapidez da escrita da obra (quinze dias) e o estado de espírito do narrador: uma grande ânsia em relatar a história de amor trágica de Simão Botelho.
 
6. Atitude crítica do autor acerca da obra: Camilo considera que Amor de Perdição contém “defeitos” e é um “tolhiço incorrigível”.
 
7. Significado da autocrítica: ao mostrar modéstia, apontando defeitos à obra, o autor pretende captar a simpatia e a adesão do leitor.
 
8. Receção pública: a novela alcançou uma popularidade / recetividade superior a qualquer outra obra do escritor.
 
9. Causas do sucesso: a rapidez das peripécias, a concisão do diálogo, a ausência de divagações. A lhaneza da linguagem, o facto de possuir uma linguagem são e ajeitada à expressão das ideias.
 
10. Referências ao título e subtítulo
 

Título

a caracterização da história de Simão: “triste história”, “trágicas e afrontosas dores”

 

Subtítulo

as referências à família do protagonista e do autor (“a triste história do meu tio paterno”, “Minha tia […] estava sempre pronta a repetir o facto”, etc.)

 
            No entanto, em 1879, no prefácio da quinta edição, embora critique o Realismo, acusando-o de “devassar alcovas, usar calão, espremer opus das escrófulas”, considera Amor de Perdição ultrapassado em relação a uma estética atualizada, ainda que, interiormente, continue fiel ao Romantismo e, no fundo, use a ironia para o classificar. Assim, nesse texto classifica-o como:
. romântico;
. declamatório;
. com aleijões líricos;
. com desaforo de sentimentalismos;
. apresentando as lágrimas nos braços da retórica.

O «stress» sobe


     A resposta é SIM: depois de ler isto, fiquei sob grande stress.

sexta-feira, 23 de setembro de 2022

Análise do poema "Variações sobre «O Poema Pouco Original do Medo» de Alexandre O’Neill", de Manuel Alegre


            Este poema de Manuel Alegre foi escrito em 1965,em plena vigência do Estado Novo, que é o equivalente a falar em falta de liberdade, censura, medo, opressão. A literatura não ficou indiferente à situação: houve escritores que a aceitaram, enquanto outros procuraram combater o regime, o que forçou alguns ao exílio, como sucedeu com Manuel Alegre.

            O título do texto relaciona-o com o poema de Alexandre O’Neill por meio do nome «variações», termo que remete para uma versão de algo. Assim sendo, iremos encontrar diferenças entre as duas composições.

            Relativamente à estrutura interna, podemos dividir o texto em três partes. A primeira corresponde à primeira estrofe, que nos dá conta da invasão da cidade pelos ratos e o seu domínio sobre “as gentes”. A segunda parte, composta pela segunda estrofe, evidencia a postura do «eu», que não se conforma nem se acomoda à vontade dos ratos, não se deixa intimidar nem oprimir. A terceira parte, a terceira estrofe, apresenta o resultado do poder transformador do canto, isto é, a liberdade de expressão combate o medo.

            A primeira estrofe dá-nos conta de uma situação: os ratos invadiram a cidade e dominaram toda a gente, como o demonstra o seu comportamento – tomaram as casas e roeram o coração das pessoas, a vida, o sol, a lua e o amor. Quer isto dizer que o medo reina, governa tudo e todos, incluindo o próprio país. A metáfora do verso 4 (“Cada homem traz um rato na alma.”) significa que as pessoas foram dominadas pelo que os ratos simbolizam negativamente. A aliteração do /r/ do verso 5 sugere a forma como os ratos roem e o ruído que produzem ao fazê-lo, bem como a sua ação dominadora e destruidora dos seres humanos. Por sua vez, o verso 6 traduz a noção de que todos têm de aceitar os valores e as ideias representadas pelos ratos. Por outro lado, simboliza a desumanização das pessoas, ao retirar-lhes os traços humanos, substituídos pelos dos roedores.

            Por que motivo terá o «eu» selecionado estes animais para desenvolver a temática do poema? Os ratos são bichos que vivem e se alimentam do lixo, que se reproduzem rapidamente e em grande escala. Quando atuam em grupo, têm um efeito devastador. Além disso, são responsáveis pela transmissão de várias doenças graves para os humanos, como, por exemplo, a peste negra. Por último, o termo «rato», quando aplicado às pessoas como adjetivo qualificativo, significa que as ditas são medrosas, se acobardam.

            Deste modo, podemos deduzir que os ratos, neste poema, simbolizam o medo, a opressão, a desumanização do indivíduo, etc.

            A segunda estrofe mostra a atividade e o comportamento do «eu». Assim, afirma-se um homem, por oposição a um rato. Por outro lado, ao contrário dos roedores, que chiam, ele canta e grita-lhes não, isto é, enfrenta-os corajosamente, não se deixando intimidar nem oprimir. Por conseguinte, enche a toca de sol, que simboliza a liberdade (o sol fica no céu), a luz, a esperança; de luar e de amor. Cada uma das ações do sujeito poético é seguida de um verso entre parênteses e anafórico (“Cá fora”), que traduz a oposição entre os ideais que defende – a liberdade, por exemplo – e que estão a ser destruídos pelos ratos (“roeram o sol”, “roeram a lua”, “roeram o amor”) e a situação vivida.

            A última estrofe reflete o poder transformador da ação e do canto do «eu». Esses quatro versos estão prenhes de esperança e representam a semente da mudança que foi plantada: a toca do sujeito poético não é mais dominada pelos animais; pertence agora a um conjunto de homens que canta e que, através do seu canto, a enche de sol, ou seja, subverte a situação num sentido positivo. O sol e o canto simbolizam os princípios que os ratos haviam destruído, concretamente a liberdade de expressão, a vida, o amor. Por outro lado, a antítese entre os ratos que chiam e os homens que cantam representa a humanização destes. Em suma, esta estrofe apresenta-nos a imagem de um conjunto de homens unidos e a cantar contra os ratos, isto é, todos os que oprimiam, para permitir que a cidade, sinédoque do país (Portugal), se voltasse a encher de sol, ou seja, de liberdade.

            Deste modo, podemos concluir que este poema reflete o medo e a opressão vividos nos anos 60 em Portugal, em plena ditadura salazarista. Assim, não é de estranhar o posicionamento crítico do poeta, que denuncia e expõe a opressão e a falta de liberdade suscitadas pelo regime, como forma de dominar “as gentes”, a sociedade.

            A presença do canto dos homens neste poema relaciona-se com uma tendência da época, que consistia em fazer da poesia uma arma de combate, de denúncia da situação, em suma, uma arma política. Assim sendo, o poeta, nesta composição, denuncia a opressão e a falta de liberdade de expressão, mostra a sua postura perante a realidade vivida na época face à opressão e perseguição da polícia através da figura dos ratos.

quinta-feira, 22 de setembro de 2022

Mais um verão chega ao fim

Método Científico

Análise do poema "Caminho", de Camilo Pessanha


 Caminho
 

Tenho sonhos cruéis, n’alma doente

Sinto um vago receio prematuro.

Vou a medo na aresta do futuro,

Embebido em saudades do presente…

 

Saudades desta dor que em vão procuro

Do peito afugentar bem rudemente,

Devendo, ao desmaiar sobre o poente,

Cobrir-me o coração dum véu escuro!...

 

Porque a dor, esta falta d’harmonia,

Toda a luz desgrenhada que alumia

As almas doidamente, o céu d’agora,

 

Sem ela o coração é quase nada:

Um sol onde expirasse a madrugada,

Porque é só madrugada quando chora.

 
            O título do soneto remete para o olhar em frente, para o que pode vir (por exemplo, uma rua, uma estrada). De forma específica, podemos dizer que esse caminho representa a própria vida, caracterizado por sensações e sentimentos vários, como veremos pela análise.

            Nas duas quadras, o sujeito poético descreve o seu drama existencial, o seu percurso de vida (passado, presente e futuro), enquanto nos dois tercetos amplia esse sentimento ao descrever a dor como uma falta de harmonia, embora necessária aos corações humanos, demonstrando que o seu sofrimento é recorrente no percurso de outras vidas.

            O sujeito poético é um ser sofrido, consumido por uma dor existencial, que não é motivada por nenhuma razão palpável, como o amor não correspondido, a perda ou a morte.

            Na primeira quadra, o «eu» descreve a sua angústia em relação ao caminho que deve percorrer e declara-se um sonhador, embora viva um momento de dor e medo, do qual, apesar de tudo, sente saudades. A rima entre o adjetivo «doente» e o nome «presente» contribui para a construção da ideia de que o presente do «eu», embora seja passível de saudade, é um momento de sofrimento, no qual a sua alma se encontra doente, assolada por essa dor. No que diz respeito à sua trajetória, o sujeito poético afirma que tem sonhos cruéis que mantém na sua alma. Por outro lado, sente um receio que o faz caminhar com medo pelo estreito caminho que o levará ao futuro. Ao mesmo tempo em que há o medo, sente saudades do presente, no sentido de que o caminho que o levará ao futuro o faz sentir saudades do presente, que logo se transformará em passado, assim que o caminho for percorrido. Por outro lado, a rima entre o adjetivo «prematuro» e o nome «futuro» mostram que a angústia do sujeito lírico existe em todos os momentos, que o medo é antecipado, incluindo o que se relaciona com o futuro, o incerto.

            Na segunda quadra, a rima entre a forma verbal «procuro» e o adjetivo «escuro» sugere que, embora o «eu» procure libertar-se da dor que sente, a escuridão e o sofrimento constituem a sua resposta. Mais uma vez afirma que sente saudades do presente e da dor que o caracteriza, da qual se procura afastar, porém em vão. Essa dor agrava-se com o anoitecer (“ao desmaiar sobre o poente” – v. 7). O mesmo véu que cobre a noite cobre o seu coração e torna-o sombrio, tomado pela dor, pelos medos e pelas incertezas. A metáfora “desmaiar sobre poente” representa o sono, o momento de adormecer. Além do caminho que é a vida, há outros caminhos: o que transforma dia em noite, sol em escuridão.

            No primeiro terceto, o sujeito poético compara a dor à falta de harmonia, a qual se pode entender como um desconcerto, uma inadaptação ao mundo, à sociedade e a si mesmo. Por outro lado, a dor é a luz desregrada que ilumina as almas, a luz que ora é forte, ora é fraca, mas sem a qual não é possível sobreviver, como se comprova no segundo terceto: “Sem ela o coração é quase nada: / Um sol onde expirasse a madrugada, / Porque é só madrugada quando chora.” (vv. 12-14). Estes versos significam que, sem essa luz e consequentemente a dor, que gera a luz, o coração é quase nada. A rima entre «agora» e «chora» evidenciam o sofrimento que caracteriza o «eu» no presente. A escuridão e a madrugada constituem símbolos de solidão e dor.

            Em suma, podemos concluir que a mensagem do soneto é que a passagem do tempo não altera a vida do sujeito poético e os seus sentimentos de dor, solidão e pessimismo, que são parte constituinte do caminho a percorrer e do próprio «eu».

segunda-feira, 19 de setembro de 2022

Análise do poema "Reais Ausências", de Ana Luísa Amaral


             O sujeito poético aborda o tema da ausência das mulheres na História oficial e imaginária de Portugal e da Inglaterra, como fica bem evidente nos versos seguintes: “Não há rainhas, não. / Quando se fala em mitos, é sempre Artur / ou D. Sebastião”. Esta referência consecutiva aos reis Artur e Sebastião não é casual, dado que o mito construído em torno do soberano português se assemelha imenso ao do monarca de Camelot, na figura do rei que iria regressar para resgatar a pátria.

            Ao longo do poema, o «eu» enumera reis e rainhas, estabelecendo entre eles constantes conspirações, no sentido de evidenciar a escassa importância que é dada a elas, falemos da rainha santa Isabel – famosa pelo milagre das rosas –, comparada com Henrique VIII – famoso por ter casado seis vezes, por ter sido declarado soberano da nova Igreja Anglicana (fundada após a sua rutura com a Igreja Católica), por ter exercido o poder mais absoluto dentre os monarcas ingleses e pela peça homónima de Shakespeare –, seja comparando Maria da Escócia – uma soberana bela, instruída, culta e inteligente, condenada à morte pela filha de Henrique VIII, Isabel I, sua prima – a D. Dinis, marido da rainha portuguesa Isabel, famoso trovador e místico plantador do pinhal de Leiria, cuja madeira, de acordo com a Mensagem, serviria para construir as naus das Descobertas.

            Por outro lado, o sujeito poético parece sugerir que as figuras femininas teriam sido as responsáveis pela ruína dos reis míticos, Artur e Sebastião. De facto, de acordo com a História, Guinevere traiu Artur com Lancelot, um dos seus cavaleiros da Távola Redonda, enquanto D. Sebastião, por ser solteiro (correspondendo tal à ausência de uma mulher) e ter morrido em Alcácer Quibir, esteve na origem do fim da dinastia de Avis e da perda da independência nacional.

            A ausência da mulher assume particular relevância na já citada Mensagem, na qual são referidas unicamente D. Teresa, “Mãe de reis e avó de impérios”, e D. Filipa de Lencastre, o “Humano ventre do Império”, a que só génios concebia, o que equivale a dizer que as mulheres são importantes não pelos seus atos ou pelas suas qualidades, mas apenas pela função de mães, de terem concebido e dado à luz os reis de Portugal. Assim sendo, o papel das mulheres é reduzido à conceção, “como se a virtude da mulher pudesse ser medida pelas virtudes de seus filhos, como se esses filhos fossem uma continuação da mãe, não um começo em si.”(Rhea Willmer, in Ana Luísa Amaral e Ana Cristina César: modos de pensar o feminino na poesia contemporânea em português, p.45).

            As rainhas deveriam ser, entre as mulheres em geral, especialmente férteis, visto que dependia delas o assegurar a descendência e os sucessores ao trono. Outra obra de referência, o Memorial do Convento, aborda, logo de início, esta premência de assegurar a sucessão. Com efeito, existe grande preocupação no círculo da corte por causa de a rainha, após quase dois anos de casamento, ainda não ter dado um filho a D. João V. A função da mulher é reduzida no romance, mais uma vez, a parir filhos, daí o narrador se referir a ela através de uma metáfora bíblica: “vaso de receber”.

            Voltando ao poema, a única figura feminina que assume relevância enquanto monarca é a rainha Vitória. É importante, neste contexto, salientar o facto de esta soberana ter assumido o trono unicamente pelo facto de, à época, não haver nenhum homem que sucedesse, por linha direta, ao rei George III, bem como a realidade de não ter assumido o poder em Hannover, onde vigorava a lei sálica (uma lei originária dos Francos Sálios, estabelecidos no Norte da França e da Bélgica atuais, que excluía as mulheres da sucessão à terra dos seus antepassados, por se considerar que, através do casamento, elas deixavam a sua família para integrar a do marido. Esta lei, que inicialmente se aplicava exclusivamente às sucessões privadas, graças a uma interpretação abusiva dos juristas, serviu mais tarde para as excluir da sucessão da coroa). Não obstante, o «eu» lírico destaca que “na forma de mandar, foi mais que homem”.

            É frequente, quando as mulheres que lideram governos exercem o poder de forma rígida e conservadora, compará-las a homens, como se fosse necessário que se masculinizassem para exercer esse poder. São exemplos disto a ex-primeira-ministra inglesa Margaret Thatcher (apelidada de Dama de Ferro) e Golda Meir, em Israel. Esta comparação estará, eventualmente, relacionada com o facto de estas figuras não terem assumido, durante a sua governação, uma postura maternal relativamente ao seu povo nem “uma posição progressista esperada por muitos homens e mulheres que veem no conservadorismo uma forma de perpetuar as desigualdades, dentre as quais, as desigualdades entre homens e mulheres.” (Rhea Willmer, ibidem, p. 46). Deste modo, a rainha Vitória, mesmo não sendo uma monarca absolutista, acaba por ser comparada a um homem pela forma como exerceu o poder e pela rigidez em termos de normas sociais, vestuário e linguagem, traços evidenciados no poema por expressões como “toucados opressores” e “verso espartilhado e de costumes”.

            Perante isto, o sujeito poético parece procurar um modo feminino e diferente de exercer o poder num “reinado feminino e língua nova, / nariz torcido à guerra no saber ancestral / de entranhas próprias”, mas não encontra nenhum exemplo de tal: “não me lembro nenhuma”. Apesar de haver figuras como as rainhas Santa Isabel e Vitória, que exerceu o poder durante mais de sessenta anos, não existe nenhuma monarca mitificada pela maneira como exerceu o poder. Veremos como a História registará a longo reinado de Isabel II, de Inglaterra, recentemente falecida. A única exceção talvez seja Inês de Castro. Porquê? Em primeiro lugar, esta figura assumiu grande relevância literária (tal como os reis Artur e Sebastião, por exemplo), constituindo um dos mais importantes episódios de Os Lusíadas e servindo de base à escrita de uma tragédia, da autoria de António Ferreira. Em segundo lugar, foi coroada depois de morta. Em terceiro lugar, possui sobrenome próprio (Castro), dado que não chegou a casar com D. Pedro. Em quarto lugar, a sua mitificação não dependeu da sua função de mãe, visto que a conceção de filhos de um rei foi a consequência do seu amor por D. Pedro e das suas relações sexuais com o filho do rei (D. Afonso IV, que a mandou matar). Assim sendo, Inês de Castro é assassinada – e posteriormente mitificada – por não ter seguido o modelo de Nossa Senhora. Com efeito, esta concebeu o filho de Deus sendo virgem, para que o fruto do seu ventre fosse puro, sem a mancha do pecado do sexo, enquanto Inês satisfez os seus desejos sexuais femininos de um modo que só foi permitido às mulheres trazer a público e através de uma linguagem muito recentemente.

            Note-se, porém, que num outro poema, intitulado “Inês e Pedro: quarenta anos depois”, Ana Luísa Amaral traça um retrato muito cruel do casal. Assim, Inês é, quarenta anos depois, uma mulher velha e desdentada, enquanto o seu amado Pedro sofre de cãibras e o passado é mera fantasia ou imaginação. Um pouco à semelhança do que aconteceu com Diana de Gales, a morte prematura permite a Inês de Castro tornar-se um mito: ela está morta, mas permanece jovem e bela. Envelhecer e tornar-se um mito é algo extremamente difícil para as mulheres. Atente-se, por exemplo, no caso da atriz Greta Garbo, que abandonou a sua carreira em Hollywood, para ficar imortalizada no auge da sua beleza.

 

Bibliografia:

• FERNANDES, Maria Lúcia, As Palavras e as Coisas na Poesia de Ana Luísa Amaral.

• JUNQUEIRA, Maria Aparecida, Imagens: tempos espacializados na Poesia de Ana Luísa Amaral.

WILLMER, Rhea, Ana Luísa Amaral e Ana Cristina César: modos de pensar o feminino na poesia contemporânea em português.
 

Análise do poema "O amor é o amor", de Alexandre O'Neill


             Este poema aborda a temática o amor, como o título indicia, em métrica irregular (que vai do verso dissílabo até ao decassílabo) e rima emparelhada e cruzada, com um verso branco ou solto (o oitavo).

            O amor é apresentado como algo intrínseco à natureza humana, algo absoluto e imaginativo, que oscila entre o mundo real e o onírico: “O amor é o amor – e depois?” – v. 1). Atente-sena repetição e interrogação presentes no verso 1, que mostram que o amor é algo natural na existência humana. Por seu turno, a repetição, no verso 3, da expressão «a imaginar» reforça a noção de que o amor é movido pela vertente emocional do ser humano.

            O «eu» poético está apaixonado e deseja o contacto físico com a pessoa amada (“O meu peito contra o teu peito, / Cortando o mar, cortando o ar”) por e com alguém que o faz sentir completo (“somos um? somos dois?”). Observe-se a expressividade da construção paralelística do verso 5, que realça o facto de o amor, para o sujeito poético, não possuir barreiras e ter uma força invencível, que é capaz de superar qualquer obstáculo, desafiando a própria natureza (representada, no verso, pelos elementos «mar» e «ar»).

            Por outro lado, o sujeito poético exalta o poder que o amor tem sobre si, distinguindo que, apesar de, fisicamente, haver dois corpos (“Na nossa carne estamos”), os seus espíritos unem-se num só (“somos um? somos dois?”). Para que este sentimento seja realizado, os amantes têm de ser livres e são-no(“Num leito / Há todo o espaço para amar.”). Atente-se na enumeração do verso 9, que realça a liberdade que existe entre o «eu» e o «tu» do poema.

            A fusão metafísica de ambos os espíritos apaixonados, depois da união física dos corpos, é perspetivada como o auge do relacionamento amoroso entre amos (“E trocamos – somos um? somos dois? / espírito e calor!” – vv. 10-11).

            Obedecendo a uma estrutura circular, o poema encerra com a repetição do verso que o inicia.
 

Análise do poema "Os dias sem ninguém", de Al Berto


 Os dias sem ninguém
 
dizem que a paixão o conheceu
mas hoje vive escondido nuns óculos escuros
senta-se no estremecer da noite enumera
o que lhe sobejou do adolescente rosto
turvo pela ligeira náusea da velhice
 
conhece a solidão de quem permanece acordado
quase sempre estendido ao lado do sono
pressente o suave esvoaçar da idade
ergue-se para o espelho
que lhe devolve um sorriso tamanho do medo
 
dizem que vive na transparência do sonho
à beira-mar envelheceu vagarosamente
sem que nenhuma ternura nenhuma alegria
nenhum ofício cantante
o tenha convencido a permanecer entre os vivos
 

            Como é característico de alguma poesia contemporânea, este poema pauta-se pela liberdade formal, nomeadamente ao nível da rima (versos brancos ou soltos) e da métrica.

            O título da composição remete para a solidão, a tristeza, a melancolia e a desolação de alguém. No entanto, o primeiro verso do texto aponta numa direção diferente, isto é, essa figura já amou e se apaixonou no passado, talvez na juventude (“dizem que a paixão o conheceu”), de acordo com a informação dada por um sujeito indeterminado (“dizem”). Todavia, o presente é de solidão, ideia veiculada pela imagem “vive escondido nuns óculos escuros”, que significa que essa pessoa se fecha em si mesmo, se recolhe, se esconde de «tudo»  – sentimentos, pessoas e até de si mesmo.

            Além disso, essa figura reflete durante a noite, procurando perceber o que restou do jovem que fora, dos sonhos que tivera e do amor que vivera, do rosto adolescente que a velhice turvou. Esse ser conhece, como ninguém, coisas como a solidão, a tristeza, a melancolia e a inversão nos seus próprios sentimentos, como alguém que permanece acordado, consciente da sua posição enquanto pessoa.

            Por outro lado, sente a passagem do tempo, o avançar da idade e a aproximação da velhice, por isso olha-se ao espelho, o que pode simbolizar o olhar sobre si mesmo, uma reflexão interior, sobre a sua vida. E o espelho dá-lhe como resposta (“devolve”) o medo, que norteia a sua existência.

            A última estrofe mostra-nos que essa pessoa envelheceu pouco a pouco, consumido pela solidão, sem sentir, em nenhum momento, alegria, felicidade, ternura. Deste modo, levou uma vida entregue à solidão e, mesmo enquanto vivo, absorveu a experiência de uma morte enquanto pessoa, alguém que poderia ter tido desejos, sonhos, amores, amizades, mas não o fez / faz.

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