Português

segunda-feira, 18 de outubro de 2021

Sermão de Santo António aos Peixes: Capítulo V e Conclusão


A descida do preço da gasolina



Nome não contável

             O nome não contável é o nome comum que designa algo em que não é possível distinguir partes e que não pode ser cantado, enumerável.

            Assim, são não contáveis os nomes que designam:

1. Uma entidade material homogénea:

água, gasolina, omo, petróleo, etc.

2. Uma ideia não material, não divisível:

felicidade, tristeza, liberdade, educação, etc.

 

            O nome não contável pode ser antecedido do determinante artigo definido singular o, a:

A liberdade é indiscutível.

 

            O nome não contável pode ocorrer também no singular, sem ser antecedido de artigo, em posição de complemento:

Encontraram petróleo no Beato.

 

            Alguns nomes não contáveis podem ser enumerados através de uma expressão partitiva ou de medida. É sobre essa expressão que recai a marca de plural:

Comprei um quilo de batatas.

Comi apenas três colheres de sopa.

 

            Quando o nome contável surge no plural, este designa:

a) qualidade e não quantidade:

Há ótimos vinhos na região do Dão. [= Há várias qualidades de vinho na região do Dão]

b) o objeto e não o material de que é feito:

Os estanhos desta loja são feios.

 

            Há nomes comuns não contáveis que, em certos contextos, podem ocorrer como nomes contáveis:

A Miquelina já emborcou quatro cafés hoje. [= A Miquelina já emborcou quatro chávenas de café hoje.]
 

Nome contável

             O nome contável é o nome comum que designa algo que pode ser contado, enumerável: uma casa duas casas.

            Assim, são contáveis:

1. As entidades materiais, individualizadas e descontínuas:

canetas, livros, folhas, casas…

2. As entidades abstratas que podem ser individualizadas:

direitos, sentimentos, emoções, pensamentos…

3. As unidades de medida:

metros, quilómetros, quilos, gramas, litros…

4. As entidades que podem ser antecedidas:

do artigo indefinido (um, uma):

- Comprei uma bicicleta nova.

de um quantificador numeral cardinal:

- O rebanho da Miquelina tem 200 ovelhas.

de um quantificador existencial (alguns, poucos, muitos…):

- Algumas ovelhas morreram de diarreia.
 

Nomes comuns

             O nome comum designa algo (seres, objetos, entidades, realidades, etc.) sem o individualizar.
Exemplos: caneta, mesa, televisão, homem, casa, pedra, rapariga, anel, cão, candeeiro, janela, papel, computador, senhora, etc.

            O nome comum apresenta as características seguintes:
1.ª) Varia em número:
uma caneta (singular) duas canetas (plural)
2.ª) Se surgir sozinho na frase, é uma abstração, um conceito, uma generalidade:
A mulher é feia. [a mulher em geral é feia]
3.ª) Para designar um referente único, vem acompanhado de determinantes, ou de complementos, ou de modificadores restritivos:
A mulher que me vendeu os ténis é feia. [esta e só esta mulher é feia]
Esta rapariga solta muitos gases. [apenas esta rapariga solta muitos gases]
4.ª) Escreve-se, regra geral, com letra minúscula, exceto se surgir no início de frase:
Comida picante provoca diarreia.
5.ª) O nome comum engloba o nome coletivo, o nome contável e o nome não contável.
 

Pantera Cor-de-Rosa: episódio 2

quinta-feira, 14 de outubro de 2021

Nomes próprios

             O nome próprio designa alguém ou algo de forma individualizada: uma pessoa, um país, um local, um rio, uma região, uma empresa, um monumento, etc.
Exemplos: João, Portugal, Benfica, Renault, Beira Alta, Mondego, Mosteiro dos Jerónimos, etc.
 
            O nome próprio possui as seguintes características:
1.ª) Não varia em número:
A Beira Alta tem como capital Viseu.
* As Beiras Altas têm como capitais Viseus.
 
2.ª) Excecionalmente, admite plural:
a) Quando designa um conjunto de pessoas que, individualmente, têm o mesmo nome:
Os Joões faltaram às aulas.
b) Quando designa um conjunto – «seres humanos como X»:
Quantos Camões haverá no futuro?
3.ª) Não admite modificadores do nome restritivo:
*O João simpático disse-me adeus.
4.ª) Escreve-se com letra maiúscula, tanto os antropónimos (Miguel, Lopes, Luís, Ribeiro) como os topónimos (Mangualde, Porto, Sagres).
5.ª) Por vezes, pode ocorrer em construções típicas de nomes comuns:
A Viseu do meu tempo já não existe.
 

quarta-feira, 13 de outubro de 2021

Retrato / Caracterização de Heitor

             Heitor é a maior figura de entre os Troianos. O filho de Príamo destaca-se pela sua grandeza heroica e humana. Ele constitui o modelo de filho, de marido, de pai e de cidadão. Enquanto Aquiles luta pela glória pessoal, Heitor fá-lo pela sua cidade e pelo seu povo, bem como pela sua família. Esta forma como Homero trata o inimigo configura uma prova clara de imparcialidade e da superioridade moral grega. Outro exemplo disto verifica-se quando Heitor morre às mãos de Aquiles. Nesse instante, os Aqueus aproximam-se para o verem de perto e não se coíbem de expressar a sua admiração pela beleza física do inimigo morto.

            Heitor é, pois, o comandante do exército troiano e nenhum guerreiro do seu exército se aproxima do seu valor, coragem e valentia. Assim sendo, é ele quem lidera o ataque que, por fim, rompe a resistência grega e penetra as suas muralhas, é ele o primeiro e único troiano a atear fogo a um navio inimigo e, não menos importante, é ele quem mata Pátroclo e, deste modo, se torna o responsável pelo regresso de Aquiles à guerra. Tal sucede a partir do instante em que tira a vida a Pátroclo e suscita o desejo de vingança no filho de Tétis. Em consequência, Heitor sentencia, nesse momento, a sua morte.

            Além disso, enquanto primogénito de Príamo e Hécuba, será o futuro rei de Troia. A sua preocupação com as mulheres troianas e com a comunidade troiana no seu conjunto enquadram-se perfeitamente neste contexto.

            Ao longo do poema, Heitor contrasta com Aquiles: aquele é um homem com família e consciente das suas responsabilidades nos seus diversos papéis, enquanto o segundo se apresenta como uma figura extremamente orgulhosa, excessiva e barbaramente cruel. Nenhum dos dois, no fundo, acredita na guerra, mas Heitor continua a lutar dado que é a atitude honrada a ter nas presentes circunstâncias, enquanto Aquiles se retira do conflito porque o seu orgulho foi ofendido por Agamémnon.

            Além das responsabilidades sociais que possui e das qualidades guerreiras que alardeia, Heitor é um comandante preocupado e atencioso; por outro lado, respeita as divindades olímpicas, por isso recusa o vinho que a sua mãe lhe oferece, visto que se encontra cansado e impuro e receia que a bebida o faça esquecer o seu dever para com as suas tropas.

            Heitor é um homem virtuoso, um modelo de herói homérico. Um claro exemplo disso verifica-se quando censura Páris, seu irmão, por ter raptado Helena, atitude que precipitou a guerra com os Aqueus. O gesto vergonhoso do irmão coloca Heitor numa posição complexa, pois, se é verdade que tem de proteger Páris, também é necessário que o repreenda. Deste modo, o seu código de conduta enquanto herói e modelo exemplar colocam-no numa posição delicada.

            De modo semelhante, Helena deixa-o perante um dilema. Por um lado, ela é a companheira amorosa do irmão e uma convidada da cidade de Troia. Além disso, como foi raptada, é uma esposa sem dote, algo que desrespeita os princípios da sociedade troiana. Heitor não a responsabiliza por nada, incluindo a guerra e os seus dramas, mas, sendo casada indevidamente, constitui um símbolo de desordem e uma ameaça às normas sociais de ambos os povos em conflito.

            Por seu turno, Andrómaca representa algo bem diferente para o «domador de cavalos», desde logo porque é a sua esposa de forma legítima e de acordo com as normas. Heitor ama-a profundamente, pelo que a perspetiva de, perdendo Troia a guerra, ela ser feito prisioneira e escrava dos Gregos, o deixa extremamente inquieto e preocupado.

            Esta postura e o relacionamento de Heitor com as mulheres e crianças estão profundamente enraizados na cultura homérica. De acordo com o código da época, um filho imita o pai na guerra, mas também é criado pela mãe, que o ensina a comportar-se como um herói, lutando por ela e por outras mulheres enquanto progenitores de heróis. A cultura da época preocupava-se imenso com as mulheres e as crianças, visto que se trata de seres humanos frágeis, dependentes e vulneráveis a vários males, como, por exemplo, a escravidão. Neste sentido, Heitor é o herói que é, simultaneamente, uma extensão do seu pai e da sua mãe.

            Não obstante ser o comandante do exército troiano e o mais valoroso dos seus combatentes, Heitor tem falhas. Por exemplo, no Canto XVII, foge duas vezes quando combate com Ájax e só retorna após ser insultado por Glauco e Eneias. Outra falha ocorre quando promete às suas tropas a vitória na guerra após a expulsão dos Aqueus dos seus navios. Quando discursa perante elas, anuncia-lhes o seu plano, segundo o qual acamparão fora das muralhas, prontas para um ataque rápido. Tal perceção em torno de uma possível vitória tem origem nu erro de interpretação da promessa de Zeus, que, na verdade, se tinha comprometido a favorecer os Troianos apenas até eles alcançarem os navios gregos, para que Agamémnon seja castigado pelo que fez a Aquiles. Outra falha tem a ver com o seu excesso de confiança, que o leva a recusar a retirada do exército para a segurança do interior da cidade, sob a proteção das suas muralhas, tal como aconselha Polidamas, na noite que antecede o retorno de Aquiles à guerra, o que conduz ao descalabro do dia seguinte. Todos estes factos colocam-nos perante uma personagem impulsiva e nada prudente, mas está bem longe do orgulho de Aquiles e da arrogância e autoritarismo de Agamémnon.

            Seja como for, Heitor é um homem de família que ama a esposa e o filho e um patriota que se preocupa com troia e os seus cidadãos. No entanto, quando abandona o interior da cidade, mostra-se uma pessoa diferente, talvez pelo desejo do sucesso militar na guerra, pela sua própria força e pela ilusão de que Zeus apoio incondicionalmente a sua causa. O processo de isolamento que ocorre no exterior de Troia culminará no instante em que se vê só no campo de batalha, lutando até à morte com Aquiles.

            O lado negativo da personalidade de Heitor evidencia-se noutro momento: a morte de Pátroclo. Nesse instante, foge ao ideal do herói homérico, concretamente no momento em que ameaça arrastar o corpo morto do inimigo até Troia para o deitar aos cães da cidade, quando o código lhe impunha que o devolvesse aos Aqueus, para que estes o sepultassem adequadamente. É também por isto que Aquiles maltratará o corpo do próprio Heitor depois de o matar. Por outro lado, se é verdade que foge do filho de Tétis aquando desse combate final e que, durante breves momentos, acalenta a esperança de negociar a sua saída desse duelo, não o é menos que acaba por enfrentar o seu poderoso inimigo, mesmo quando toma consciência de que os deuses o abandonaram. A sua recusa em fugir nesse momento, mesmo perante forças bem superiores a si, tornam-no a figura mais trágica da Ilíada.

            Sob certo prisma, Heitor constitui o mais heroico dos heróis no poema. Enquanto Aquiles, como já foi referido, passa grande parte da obra amuado por causa do seu orgulho ferido, Heitor parece ser bem menos egoísta, preocupando-se essencialmente com o destino de Troia e com a sua família. Por outro lado, facilmente o leitor simpatizará com esta personagem, desde logo porque sabe desde cedo que os deuses decidiram já que os Gregos triunfarão e que Troia está condenada a sucumbir e que intervirão no desenrolar dos acontecimentos, de modo a assegurarem-se de que esse será o desenlace do conflito. Em suma, Heitor nunca teve qualquer hipótese de sair vencedor.

            A morte de Heitor é um dos passos mais importantes da Ilíada, como é óbvio. No Canto XII, enquanto Aquiles aniquila ferozmente todos os soldados troianos que lhe urgem à frente, Heitor recua em direção aos portões da cidade. Vários compatriotas conseguem refugiar-se no seu interior, todavia o filho de Príamo permanece no exterior, apesar de os pais lhe implorarem que se coloque a salvo do inimigo. Heitor, no entanto, decide ficar e lutar, num acesso de confiança nas suas capacidades e força, no entanto subitamente essa confiança desaparece e ele foge. Aquiles persegue-o em torno das muralhas três vezes, mas os deuses interferem nos eventos e o «domador de cavalos» cumpre o seu destino e morre no campo de batalha, confirmando-se também a ideia de que é um instrumento dos deuses.

            Note-se que a Ilíada principia focada em Aquiles e na sua cólera, contudo termina com os funerais de Heitor. O estudioso James Redfield considera, por isso, que a figura principal do poema é Heitor, a personagem cuja tragédia comove o leitor; a personagem que, ao contrário de Aquiles, não participa na guerra por escolha pessoal, nem dela se pode retirar quando algo o ofende. Assim sendo, isto é, porque não tem escolha, o papel de Heitor é trágico: é seu dever proteger e defender os pais idosos, a esposa, o filho, os concidadãos, Troia. Todos dependem dele. Confirmando isto, quando ele morre às mãos do filho de Tétis, a cidade morre consigo. Heitor é um homem nobre, um guerreiro viril e corajoso, com espírito de sacrifício, uma figura que aceita o seu destino, o filho, o pai e o marido ideal e exemplar. Exemplo de tal é a sua despedida de Andrómaca, um momento de amor, ternura e compreensão mútua.

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segunda-feira, 11 de outubro de 2021

Sermão de Santo António aos peixes - Cap. II, III, IV


Análise de "Fostes, filha, eno bailar"

 
Assunto: a mãe repreende a donzela por ter rasgado a sua roupa num baile e adverte-a no sentido de ter cuidado com o veado, que se aproxima.

 

 
Comentário
 

            A donzela acabou de chegar do baile e a sua mãe repreende-a por ter rompido a roupa/o manto. Além disso, adverte-a para que tenha cuidado, pois o baile aproxima-se da fonte, onde, aparentemente, o baile teve lugar. Ora, no contexto da cantiga de amigo, a fonte constitui o lugar do encontro erótico e o veado/cervo o símbolo da sexualidade masculina. Por outro lado, a dança/o baile configuram um comportamento de cariz sensual ou erótico, isto é, através do qual a jovem procura seduzir o amigo que a observa.

            As roupas rasgadas (“e rompestes i o brial”) simbolizam a perda da virgindade na poesia trovadoresca. O «brial» era uma peça de vestuário exterior, uma espécie de túnica ou manto, feita de seda ou outro tecido fino.

            O primeiro verso do refrão adverte-a para a aproximação do veado, que vai beber à fonte, a metáfora da virilidade, portanto do amigo, ou seja, a figura materna chama a atenção da filha para a vinda do amigo. Já o verso seguinte do refrão (“esta fonte seguide-a bem”) apresenta dificuldades de interpretação. De facto, interpretá-lo de forma literal parece não fazer sentido, visto que as fontes não se movem. Por outro lado, a mãe também não está a mandar a filha para a fonte. Poder-se-á aindaconsiderar que, neste caso, “seguide-a bem” poderá significar “observar” (“observa-a bem”), indiciando que a progenitora está a alertar a jovem para ter cuidado com algo. Todavia, de acordo com alguns críticos, este significado não foi atestado. A forma «seguir» provém do latim vulvar “sequire”, pelo contrário “sequi” («seguir»), da raiz indo-europeia “sekw”. Assim, «vê», «observa» estão entre as possibilidades decorrentes da raiz e este uso ocorre, efetivamente, em latim. A Eneida, o célebre poema épico de Virgílio, contém o uso da expressão “oculis sequi” com o sentido de «seguir (um objeto que recua) com os olhos”. Assim, neste contexto, a evolução semântica da expressão seria algo como «seguir» > «observar um objeto em movimento» > «observar um objeto». No entanto, se correto, o uso é único.

            A segunda cobla, como é característico das cantigas de amigo paralelísticas perfeitas, repete o conteúdo da primeira, sendo os respetivos versos muito semelhantes, com pequenas variações, mais concretamente das palavras rimantes. Ainda assim, convém deixar uma nota a propósito do termo «loir» (v. 6), cuja origem parece residir no latim «ludere» (via «ludire»). «Loir» talvez não seja um sinónimo exato de «bailar», mas regra geral significa «jogar» ou «brincar».

            O segundo par de coblas insiste na censura da mãe por a filha ter rompido as vestes, acrescentando nova informação – como é hábito no paralelismo perfeito –, neste caso o pesar da progenitora pelo sucedido, o que traduz a sua oposição à situação.

            Em suma, tal como sucede em vários outros cantares de amigo, esta composição é passível de uma dupla leitura. A primeira, singela, coloca-nos perante uma mãe que censura a sua filha por esta ter ido bailar e lá ter rasgado a sua roupa de tecido fino. A segunda, de cariz metafórico, recorda-nos que o baile constitui um momento de sensualidade e sedução do amigo por parte da donzela. Por outro lado, o «brial», que é uma peça fina de vestuário, conota igualmente sensualidade e o seu rompimento simboliza o rompimento do hímen, isto é, a perda da virgindade. Deste modo, estaremos na presença da primeira relação sexual da jovem. Quanto à fonte, geograficamente constitui o local do encontro amoroso, mas simboliza também a figura feminina; já a sua forma, fálica, representa o amigo, que é igualmente representado pela figura do cervo, um animal que, tradicionalmente, metaforiza o homem.

            Deste modo, poderemos concluir que a donzela se foi encontrar com o amigo na fonte, onde se concretizou o ato sexual e a consequente perda da virgindade da menina. A dança representa a sua maturidade sexual; a fonte, o encontro e a concretização do ato; o romper do brial, uma metonímia do rompimento do hímen, da perda da virgindade.

            Tudo isto causa o descontentamento da mãe, que comunica com a filha através de uma espécie de código, ao desvendar o segredo da filha. As duas coblas finais acrescentam uma informação que parece confirmar a ideia segundo a qual a donzela deseja manter ter relações sexuais com o amigo: foi ela quem fez o vestido, sem o consentimento da mãe. Ora, este dado implica que a figura materna se opõe ao relacionamento sexual da filha. Porquê? Provavelmente, porque considera que a jovem não está ainda pronta para dar tal passo, ou porque não tinha boa opinião do amigo.

            Esta cantiga – à semelhança de outras de Pero Meogo – alude à passagem da adolescência à idade adulta por parte da donzela. De facto, as nove cantigas que conhecemos deste trovador constituem um conjunto que conta uma história. Assim, as cantigas I a IV configuram o prelúdio de uma iniciação sexual vivida pela donzela entre a preocupação pelos sentimentos que alberga por ela o amigo, a segurança do namoro dele e a procura dos conselhos da mãe. A cantiga V é o clímax de um encontro amoroso, prolongado na plenitude do poema VI e sistematizado no VII. As cantigas VIII e IX supõem a resposta da mãe à transgressão moral e mostram a sua preocupação ante um abandono por parte do amigo.

            Nestas cantigas, encontramos vários elementos simbólicos, como o cervo, o mar, a fonte, etc. O mar é apresentado como um espaço de morte. A rapariga que penteia os cabelos na fonte relaciona-se com as figuras das «mouras», das «donas», das «lavadeiras» e da própria Morrigana (a deusa da guerra e da morte para os celtas), de grande conotação sexual, geradora de vida e de morte. O cervo é o símbolo da força geradora, da virilidade. A sua origem encontra-se na raiz proto-indoeuropeia *ker, com as variantes *kor e *kr-, que têm o significado de corno. Os cornos do veado são elementos geradores relacionados com uma mística primitiva, na qual se unem as forças masculinas e femininas.

 
 
Classificação
 
            Estamos na presença de uma cantiga de amigo posta na boca da mãe, que é o sujeito de enunciação.
            Por outro lado, tendo em conta que faz referência ao baile, podemos classifica-la como bailia ou bailada.
            No que diz respeito à forma, a cantiga é de refrão e paralelística perfeita com leixa-pren.
 

segunda-feira, 4 de outubro de 2021

TikTok: a opinião de Régis Tadeu

Sermão de Santo António aos Peixes - Exórdio (cap. I)


Análise da cantiga "Bailemos nós já todas três, ai amigas"

 
Assunto: num ambiente rural e florido, logo convidativo ao amor e à alegria, as donzelas aprestam-se para bailar e dessa forma atraírem os amigos.
 
 
Tema: o convite às amigas para dançar = sedução dos amigos.
 
 
Sujeito poético: a donzela.
 
 
Interlocutor: as amigas.
 
 
Estrutura narrativa da cantiga
 
• Personagens:
▪ três donzelas / amigas
relação de proximidade: «amigas», «irmanas»
simbologia do número 3: a perfeição das donzelas (jovens e belas), a harmonia e a união entre as figuras femininas
 
▪ os amigos: ausentes, mas sempre presentes (no coração e pensamento das donzelas)
 
Relação entre as donzelas e as amigas:
relação muito próxima;
grande cumplicidade (a variação de «amigas» para «irmanas» evidencia essa cumplicidade).
 
• Ação: o baile debaixo das avelaneiras – dança = sedução
a donzela incita as amigas a bailar
consequência as donzelas amigas, belas e apaixonadas, dançarão como ela.
 
• Espaço
campestre e natural (o campo) – ruralismo (característica da cantiga de amigo):
▪ debaixo das avelaneiras
▪ debaixo das avelãs
▪ debaixo do ramo florido
• Tempo: o ambiente primaveril / a primavera (pois é a época em que florescem as avelanei árvores em flor            ras)
analogia entre o aspeto, a natureza primaveril e o estado de alma da donzela (alegria de viver)
 
 
Estado de espírito do sujeito poético
 


 Caracterização das donzelas


Papel das amigas: confidentes – a donzela apela às amigas que bailem, pois será através da dança que conseguirão atrair os namorados.


Recursos poético-estilísticos
 
1. Aspetos fónicos

• Estrofes/coblas/cobras: três sextilhas (4 + 2) heterométricas.

• Métrica: versos decassílabos, alternando com versos tetrassílabos no refrão.

• Rima:

- esquema rimático: aaabab

- emparelhada e cruzada

- rica (“velidas”/”frolidas”) e pobre (“amar”/”bailar”)

- grave (“velidas”/”frolidas”) e aguda (“amar”/”bailar”)

- consoante (“velidas”/”frolidas”)

• Refrão: intercalado, monorrimo; sugere o ritmo do baile a realizar; reitera o convite à dança realizado nas coblas. Introduzindo a condição «se amigo amar».

• Ritmo: mais rápido no refrão, coincidente com a alternância entre versos compridos e mais curtos.

• Transporte: vv. 1-2, 5-6, etc.

  
2. Aspetos morfossintáticos

• Nomes:

- “amigas”: as donzelas das cantigas de amigo;

- “amigo”: o objeto visado pela ação (a dança) das donzelas, isto é, a figura para quem pretendem dançar e, assim, seduzir;

- “avelaneiras”, “ramo”: indiciam o ambiente (espaço e tempo) em que ocorre o baile.

• Pronome «nós»: indicia uma ação coletiva.

• Adjetivos (“velida”, “louçana”): encarecem a beleza física das donzelas, afinal aquilo que, juntamente com a dança, atrairá os amigos.

• Verbos: encontram-se no conjuntivo/imperativo, na 1.ª pessoa do plural, e traduzem o apelo, a exortação à dança coletiva.

• Numeral cardinal três: especifica o número exato de donzelas; simboliza a harmonia e a perfeição.

• Interjeição «ai»: indicia a alegria do convite.

• Vocativo “ai amigas”: identifica as confidentes, o destinatário do convite para bailar.

• Tipos de frases: imperativas – traduzem o apelo/convite da donzela às amigas para dançarem.

• Anáfora: intensifica o apelo à dança.

• Paralelismo semântico (“louçanas”/”velidas”), estrutural e anafórico (“Bailemos”/”Bailemos”):

- salienta o objetivo do convite, evidente na repetição de “Bailemos nós já todas três” (vv. 1 e 7);

- sublinha a relação de proximidade afetiva entre as donzelas pela substituição da palavra “amigas” por “irmanas”;

- evidencia a consciência, por parte da donzela, de que ela e as suas amigas são belas, através da sinonímia entre “velidas” (v. 3) e “louçanas” (v. 9);

- exprime a passagem de uma visão geral do espaço (campo com avelaneiras onde as donzelas bailarão) para uma visão circunscrita (a árvore e o ramo sob o qual decorrerá a dança), através da substituição da expressão “avelaneiras frolidas” (v. 2) por “aqueste ramo destas avelanas” (v. 8);

- contribui para a cadência melódica da cantiga.

 
3. Aspetos semânticos

• Apóstrofe “Ai amigas”: identifica o destinatário do discurso da donzela.

• Comparações: enfatizam a beleza e a formosura das donzelas; incitam ao encontro, à dança e à celebração do amor pelas donzelas enamoradas.

• Metonímia: a alternância entre a árvore e o fruto permite identificar o sujeito poético feminino e plural com as avelaneiras/aveleiras.
  
 
Classificação
 
1. Cantiga de amigo: o sujeito poético é feminino.
 
1.1. Temática: bailia/bailada, pois nela há referências explícitas ao baile. Esta cantiga pode ler-se como um insistente incitamento à dança, impulsionado pela juventude, pelo amor, pela primavera.
 
1.2. Formal: cantiga de refrão e de estrutura paralelística.
 
 
Valor documental
 
            Esta cantiga reflete a existência de determinados festejos populares que se faziam à base de música e de dança; bailava-se em roda, cantava-se, batia-se com os pés e as mãos. Por outro lado, a dança enformava boa parte das cantigas de amigo dos séculos XIII e XIV. Regra geral, o tema tratado é a alegria de viver e amar.
            A descoberta das carjas, em 1948, veio revelar a existência, no território espanhol, de uma primitiva poesia feminina de extração romântica que se insere no lirismo árabe-andaluz. Quer a canção de mulher moçárabe quer a cantiga de amigo galego-portuguesa radicam num velho substrato lírico da Europa ocidental, que subentende um núcleo sagrado em que à mulher cabe uma relevante função sacerdotal. É talvez desses velhos ritos afrodisíacos, circunscritos ao culto maternal da fertilidade, que derivam as choreas psallentium mulierum que se destacam de entre as manifestações festivas que acolhem Afonso VII, aquando da sua entrada em Compostela em 1117. Seja como for, é no Ocidente peninsular que o tema arcaico da canção feminina, comum a uma remota tradição da România, subsiste com maior vigor e fidelidade a um esquema coreográfico que tem como fundamento a dança ritual. É essa a origem das nossas bailias, nas quais perdura o vestígio da árvore ritual, como exemplifica esta cantiga.
            Por outro lado, esta cantiga permite adivinhar a presença de motivos sexuais nestes poemas que depõem contra a moral sexual cristã. De facto, nesta composição não só temos uma mulher ativa como também uma que incita outras à ação de bailar. Esta atividade perfaz-se no encontro com outros homens (amigos/namorados) para a realização do desejo sexual, uma vez que o “ramo destas avelanas” é uma clara referência ao órgão sexual masculino. Dito de outra forma, a donzela convida as amigas a irem até campo de avelaneiras para encontrarem amigos e com eles terem a coita, estendendo essa possibilidade de realização do ato erótico a todas as jovens belas: “e quem for velida, como nós, velidas, / se amigo amar, / sô aquestas avelaneiras frolidas / verrá bailar”. Assim sendo, estes aspetos imprimem à cantiga uma liberdade sexual feminina, referente aos espaços rurais da Galiza da Idade Média. Isto permite olhar para as cantigas de amigo e as suas potencialidades simbólicas numa perspetiva nem moralista nem moralizante que não fecha os olhos à natureza erótica das mesmas. Por outro lado, permite fugir das generalizações acerca de uma cristianização homogénea e de um domínio absoluto da moral cristã no período medieval, bem como reconhecer o papel ativo da mulher durante a Idade Média.
            Em suma, nesta cantiga Aires Nunes recria um espaço medieval da vida coletiva, o baile e as festas populares, que constituíam os locais privilegiados de encontros amorosos.
 
 
Simbologia
 
• Número 3:
a perfeição das donzelas (belas e jovens);
a união e harmonia das donzelas.
 
• Dança / baile:
ritual que celebra a beleza, a juventude e o amor;
forma de exibição da formosura das donzelas e, portanto, da sedução dos amigos;
o amor, a sedução amorosa, fecundidade.
 
• Primavera e dança: tal como a Natureza, também as donzelas se encontram em «flor», isto é, são jovens, belas e estão na idade propícia ao amor.
 
• “Avelaneiras frolidas”:
ambas se caracterizam pela beleza;
remetem para a alegria e o vigor juvenis / primaveris – a alegria da natureza primaveril é associada à alegria dos jovens, expressa pela dança e pelo amor;
simbolizam a feminilidade, a beleza e a delicadeza;
simbolizam ainda a juventude e a fecundidade das donzelas (as flores).
 
• Ramos.
 
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