segunda-feira, 12 de agosto de 2019
Ações secundárias de A Sibila
A obra
aparece-nos como um conjunto de histórias que se vão acumulando, narradas por
alguém que só diz delas o que quer e quando quer. A ação central é
continuamente interrompida por uma série de pequenas histórias narradas pelo
narrador omnisciente, que servem para caracterizar ambientes e personagens.
Estas pequenas histórias surgem desordenadamente, frequentemente fora da
sequência lógica do tempo, não se vislumbrando uma estruturação lógica da
intriga. A grande atenção da narradora está em transmitir o pormenor quer da
paisagem, quer do aspeto e atuação das personagens (seu vestuário, seu modo de
vida, suas reações somáticas) de modo a captar o seu universo psicológico. Daí
o facto de muitas delas serem interrompidas para voltarem a ser retomadas
posteriormente.
Uma das formas
de agrupar as várias ações secundárias é com base na sua funcionalidade.
a) Ações que se
relacionam com Quina, personagem central, desvendando as suas características
psicológicas e as suas relações com os outros:
"Quina
tornou-se, então, dum grande interesse para ela, e mandou chamá-la. (...)
- Ora viva a
Sibila! - disse, com mais riso na voz do que nos lábios. (...) Dirigiu-se a
Quina como se se tratasse duma velha amiga perante a qual as cerimónias nem
lembram e são supérfluas.
- É maluquice
minha, mas eu queria que me dissesse uma coisa: se alguém a ofendesse muito,
perdoava, retribuía ou esquecia?
- Perdoava a
uma criança, retribuía a uma mulher; tratando-se de um homem, esquecia.
- Ah! - Com um
certo pasmo, a condessa fitou Quina. Começava a respeitá-la, antes mesmo de a
ter entendido.
- Acha então?!
(...)
- Ah, Joaquina
Augusta - disse ela dando-se à canseira de se fingir pensativa -, haverá muita
gente assim, pelo mundo? É que diz palavras de iluminada, como se só contasse
um chiste.
- Doutra
maneira, quem me ouvia?" (pp. 76-77)
b) Ações que se
relacionam com as personagens secundárias, mostrando a sua caracterização
psicológica e o seu comportamento e relacionamento:
"- Ela já
morreu - dizia. - Antes de hoje e há muito tempo que ela estava morta. Já a
pariste morta, porque as tuas entranhas são amaldiçoadas. Quando viste os teus
filhos estendidos numa tábua em cima da cama, não choraste uma lágrima que
enchesse um dedal; porque também tu estás morta, e os teus frutos são uma
desgraça. (...)
Tossia e
gritava, e as patadas das tuas botas reboavam pela casa. - Se a menina não
aparecer, se ela não vier ter aqui, trazida pelos anjos e pelos diabos, e sem
que um pico de tojo lhe tenha arranhado a pele, abro uma cova no quinteiro e
enterro-te lá. Ouves?
- Ela não torna
a aparecer - disse Estina, debilmente. (...)
- Não? - E ele
vacilou na sua cólera." (p. 117)
c) Ações que
nos fornecem imagens do ambiente social onde se insere a protagonista:
" Porque
acontecera ser o sétimo rapaz duma família, fora batizado com o nome de Adão,
para evitar assim o correr do fado, ou seja, ficar condenado a vadiar de noite,
transformado em bácoro, ou cavalo, ou bode, ou toiro, em cujo rasto espolinhado
se espojasse. Ah, e então apenas uma labareda, à meia-noite, consumindo-lhe as
roupas que abandonou, um espinho ou um chuço ferindo o bicho que corre
desabaladamente pelos atalhos, podem quebrar o encanto! Melhor é chamar, pois,
Eva às quintas ou sétimas filhas e que Adão sejam os infantes todos que venham
perfazer esses fatídicos números." (p. 40)
d) Ações que
contêm elementos temáticos que constituem o substrato ideológico da obra:
"- Olha
que o teu homem dorme com essa moça - prevenira Narcisa Soqueira, avisada como
era em intrigas de harém provinciano. (...)
- Cantês! -
disse Maria, com a sua secura habitual. (...)
Uma tarde, não
muito depois disto, quando a merenda já fora servida e a moça se preparava para
arrumar as camas que às vezes até à noite se faziam, Maria despediu-a também
para o campo. Fazia muito calor. A sala, que era ao mesmo tempo quarto de
dormir, tinha aberta as portadas da varanda. Da eira subiam cepas que tinham
ganho corcovas, o jeito dos ferros que enlaçavam. Foi um desses pés de videira,
cuja casca, já velha, desfibrava, que Francisco usou para trepar, disposto a
representar com rigor a cena do balcão. Maria que, inclinada sobre a cama,
lançava a ponta da coberta contra a parede, sentiu-se abraçada pela cintura;
umas suíças loiras roçavam-lhe o rosto. Ela endireitou-se sem muita pressa,
disse, com uma indiferença que era como uma chicotada:
- Como te
enganaste!" (pp. 34-35)
Ação central de 'A Sibilia'
A ação central
é constituída pela longa retrospetiva da vida de Quina, tia de Germa, a partir
do momento em que, baloiçando-se na velha "rocking-chair", a recorda
com saudade e alguma nostalgia, e começa e termina no mesmo espaço (a casa da
Vessada), com as mesmas personagens em diálogo (Germa e Bernardo Sanches).
A ação central
gira, pois, à volta de Quina, iniciando-se no momento em que se dá origem à sua
evocação por Germa e termina na altura em que, cerca de oitenta anos depois, se
regressa ao tempo da evocação. Por arrastamento, dela fazem parte os membros de
sua família. O primeiro plano da intriga é ocupado pela protagonista e sua
família. A história de Quina é, logo de início, substituída pelo relato das
vidas de Maria da Encarnação e Francisco Teixeira, suas aventuras e
desventuras, com inúmeras divagações e comentários sobre o lugar da mulher na
família e na sociedade e os efeitos nefastos da existência do homem. E a
história das relações de Maria e Francisco Teixeira é muito importante para a
compreensão do comportamento de Quina: o seu desprezo pelos homens, a sua
frustração amorosa e compensação psicológica pelo poder económico e domínio dos
outros. As relações da família ocupam, pois, um lugar determinante na obra. Mas
também o peso do dinheiro e da propriedade têm grande relevo.
O narrador dá
saltos no tempo, utiliza o resumo, não se preocupa com a estruturação sólida da
intriga, pois o importante é o contar e a atenção ao pormenor (da paisagem, do
vestuário, da aparência física ou duma reação somática). Há, ocasionalmente,
alusões ao envelhecimento progressivo de Quina, mas o leitor não assiste ao
processo de evolução da protagonista). A inexistência de uma intriga bem
estruturada permite um discurso digressivo. Ainda assim, é possível
distinguirem-se alguns núcleos de ação que se organizam em torno de dois eixos:
o da conquista do poder material e espiritual e o da análise introspetiva da
sua alma, na relação com os outros e com os objetos:
A recordação da
vida de Quina é frequentemente interrompida por cortes e digressões suscitadas
pela necessidade de recriação de ambientes e costumes e enquadramento de
figuras e controlada por um narrador omnisciente, cujo ponto de vista
profundamente irónico e devastador confere a todas as personagens e aos
ambientes evocados uma feição negativa. Esta tendência para a digressão e
reconstituição de ambientes faz com que a protagonista seja muitas vezes
substituída por personagens e acontecimentos secundários relacionados com ela e
com o grupo e o modo de vida em que ela se move. De tal modo que poderíamos
dizer que o romance é, antes de mais, a história de uma família rural desde,
pelo menos, o último quartel do século XIX. A partir da segunda metade deste
século, começa a notar-se uma evolução da sociedade rural, no sentido de uma
culturização da sua burguesia que, pela ameaça ao equilíbrio de um cosmos
restrito, merece a reação conservadora de Quina, representativa de um superior
estado de espiritualidade, de poder e prestígio sociais.
O título A Sibila
As sibilas eram
videntes antigas, provenientes da Ásia Menor e existentes na Grécia desde a
época arcaica. A princípio existiria só uma, que se foi multiplicando e
recebendo nomes conforme os lugares.
Na Grécia, a
mais célebre é a do templo de Apolo, em Delfos. Este santuário torna-se
importante a partir do século VIII a.C. Os escritores e filósofos importantes
da Grécia antiga falam dos oráculos de Apolo. As respostas eram dadas pela
Pétia; depois de ter feito fumigações de louro e de cevada e bebido água da
fonte de Cassótis, recebia as emanações sulfurosas provindas de uma fenda
existente no coração do templo, entrava em delírio, proferindo assim as
palavras enigmáticas que iriam orientar as ações dos que as consultavam. Vivia
só e em castidade. Guardava a casa do seu deus, mantendo acesa a chama do seu
culto. Na sua solidão, recebia a inquietação dos homens e transmitia o recado
dos deuses. Ouvindo as preocupações, os problemas, as angústias, os segredos da
vida humana, alcançava a capacidade de entender o mistério da existência.
Na Itália, a
mais famosa é a Sibila de Cumas. É esta que acompanha Eneias aos infernos, no
canto VI da Eneida, e lhe prediz o futuro. A Sibila de Cumas é uma das
cinco, pintadas por Miguel Ângelo em alternância com os Profetas, no teto da
Capela Sistina.
O título do
romance terá sido escolhido, tendo como ponto de referência a vida da Sibila de
Delfos e os seus oráculos.
Esse título não
está exatamente em conformidade com o desenrolar da intriga. Com efeito, o
signo "sibila" aponta para as capacidades espirituais da
protagonista, quando, afinal, o que a intriga nos revela é uma Quina excecionalmente
dotada para manter e aumentar o património familiar. São raras e débeis as suas
demonstrações sobrenaturais e as suas capacidades divinatórias. Por exemplo, no
caso do desaparecimento da filha louca de Estina, a sua concentração e as rezas
são impotentes para resolver a situação que vem a ter um trágico desenlace. De
facto, o que se destaca em Quina é a forma como conquista um certo poder
material, o importante é manter ou aumentar o património, que só pode ser
transmitido a outro membro da família. Daí ela ter constituído Germa sua
herdeira universal, sem atender aos pedidos insistentes de Custódio. O dote é
como o sangue: só pertence à família, só pode ficar dentro dela, vence a morte.
No
desenvolvimento da ação, é importante considerar o título, pois ele, nesta obra,
poderá ter uma intenção irónica, servindo para desmascarar uma ambiência rural
onde proliferam a crendice, a superstição, o instinto de sobrevivência, o
sentimento arreigado da propriedade e a obsessão do dote que é preciso levar
aos vindouros intacto e, se possível, alargado. Procurar-se-ia, deste modo,
reconstituir um modo de vida provinciano que, em Portugal, nos anos 50,
começava a desaparecer ou, pelo menos, a ser ameaçado pela modernização e pela
industrialização.
Obras de Agustina Bessa-Luís
A sua obra é
muito vasta, da qual se destacam os seguintes títulos: Mundo Fechado
(1948), Os Super-Homens (1959), Contos Impopulares
(1951 e 1953), A Muralha (1957), A Sibila (1954), O Sermão de
Fogo (1962), Homens e Mulheres (1967), As Categorias (1970), As
Pessoas Felizes (1975), As Fúrias (1977), Crónica do Cruzado Osb
(1976), Fanny Owen (1979), Os Meninos de Ouro (1983), Um
Bicho das Terras (1984), Eugénia e Silvina (1989).
Biografia de Agustina Bessa-Luís
Agustina Bessa-Luís nasceu a 15 de outubro de 1922, em Vila Meã, concelho de Amarante. Apenas
com seis anos de idade, entrega-se com prazer à leitura de As Mil e Uma
Noites, obra que lhe despertou curiosidade.
Depois dos
estudos da Escola Primária, frequentou o colégio das Doroteias, na Póvoa de
Varzim, lendo apaixonadamente a Bíblia, sobretudo o Velho Testamento. Passou as
férias e parte da adolescência no Douro, em Godim. Aos dezasseis anos, disse
para si: «Também escreverei um livro; em breve escrevo um livro.»
Em entrevista
ao Jornal de Notícias, em 1955, dirá: "Num Inverno monótono duma
província magnífica de mais para ser justamente interpretado aos dezasseis
anos, ou se namora um primo, ou se come demasiado, ou se escreve um romance.
Foi uma longa história esse primeiro idílio com as letras. Chovia muito num
pátio, a água das caleiras batia nas folhas das hidrângeas, que brilhavam como
faróis do outro lado da janela. O outro lado da janela e a chuva são para todo
o espírito criador uma oportunidade – eu aproveitei-a rigorosamente, escrevi um
romance.»
E escreveu
mesmo o primeiro romance ainda não publicado. Continua a ler apaixonadamente
autores portugueses e estrangeiros.
Em 1945, casa
com Alberto de Oliveira Luís e vai viver para Coimbra, onde o marido estuda
direito na Faculdade de Direito, mostrando-se muito interessado pela literatura
e pela arte. Em 1946, nasce a filha, Laura Mónica, que virá a tirar o curso de
pintura na Escola Superior de Belas-Artes do Porto.
Concluído o
curso de Direito, o casal fixa-se, em definitivo, no Porto, onde ainda reside.
O Porto está presente em muitos dos seus romances, assim como Coimbra em dois,
o que comprova uma personalidade muito atenta ao meio que a rodeia.
Tem um intenso
convívio literário com vários escritores e artistas. Viaja por vários países,
colabora em muitos encontros internacionais, ganha inúmeros prémios literários,
escreve para a televisão, é condecorada, em 1980, pelo Presidente da República,
no dia de Portugal, com o grau de Grande Oficial da Ordem Militar de Santiago
da Espada.
Continua a
publicar quase anualmente um ou mais romances e biografias, sendo já bastante
extensa a sua obra.
Faleceu a 3 de
junho de 2019, na cidade do Porto.
domingo, 11 de agosto de 2019
A originalidade de Agustina Bessa-Luís
* A criação de um universo
romanesco próprio, pela fusão de experiências anteriores.
* O regionalismo – universalismo.
* A conceção do tempo romanesco
(elíptico): desvalorização da cronologia de forma a sugerir a intemporalidade.
* A densidade e ambiguidade da linguagem também elíptica.
* A dialética
imanente/transcendente.
* A captação das mínimas
variações do real perpetuamente em fuga (factos, gestos, comportamentos) em
busca do invisível, do oculto ou misterioso.
* A sinuosidade da ação: a secundarização da intriga e a
valorização das personagens e seus "problemas".
A recusa da cronologia linear
A recusa da
cronologia linear e a introdução no romance de múltiplos planos temporais que
se interpenetram e se confundem, constituem a fundamental linha de rumo do
romance coetâneo, magistralmente explorada por William Faulkner, por exemplo. A
confusão da cronologia e a multiplicidade dos planos temporais estão
intimamente relacionadas com o uso do monólogo interior e com o facto de o
romance moderno ser frequentemente construído com base numa memória que evoca e
reconstitui o acontecido.
O chamado nouveau
roman, designação imposta pelos jornalistas a um certo tipo de romance
aparecido em França depois de 1950, é a última expressão desta já longa
aventura que o romance empreendeu na ânsia de se libertar dos padrões
tradicionais do enredo romanesco. Nas teorias e nas obras dos seus
propugnadores, convergem a lição e o exemplo dos impressionistas, sobretudo
James Joyce e Virgínia Woolf, do romance americano de Faulkner e Dos Passos,
etc.
Na conceção de
Alain Robbe-Grillet, o romance deve desembaraçar-se da intriga e abolir a motivação
psicológica ou sociológica das personagens, devendo conceder, em contrapartida,
uma atenção absorvente aos objetos, despojados de qualquer cumplicidade afetiva
com o homem. O próprio Robbe Grillet classificou um dos seus romances, O Ciúme,
como «uma narrativa sem intriga», onde só existem «minutos sem dias, janelas
sem vidros, uma casa sem mistério, uma paixão sem ninguém».
Vítor Aguiar e Silva, Teoria da Literatura
O monólogo interior no romance moderno
O monólogo
interior, que desposa fielmente o fluir caótico da corrente de consciência das
personagens e que traduz, por conseguinte, em toda a sua integridade, o tempo
interior, permite a James Joyce devassar a confusão labiríntica e desesperante
da alma humana.
(...) A obra de
Marcel Proust, À procura do tempo perdido, insere-se igualmente nesta
moderna tradição romanesca, pela ausência de um «enredo uniforme e sistemático,
com toda a urdidura do episódio que atrai outro episódio até um final
contundente», e pela absorvente atenção concedida à vida psicológica das
personagens, uma vida psicológica extremamente densa e complexa. Marcel Proust
participa da mesma repulsa de Valéry pela demasiada aproximação do romance
relativamente à realidade informe e trivial e por isso observa que «nem sequer
uma única vez uma das minhas personagens fecha uma janela, lava as mãos, veste
um sobretudo, diz uma fórmula de apresentação. A haver alguma coisa de novo
neste livro [À procura do Tempo Perdido], seria isto mesmo».
Ao nome de
Marcel Proust, poderíamos agregar os de Frank Kafka, de William Faulkner, de
Hermann Broch, de Lawrence Durrell, as tentativas dos surrealistas no campo do
romance, etc. O romance afasta-se cada vez mais do tradicional modelo
balzaquiano, transforma-se num enigma que não raro cansa o leitor, num «romance
aberto» de perspetivas e limites incertos, com personagens estranhas e
anormais. A narrativa romanesca dissolve-se numa espécie de reflexão filosófica
e metafísica, os contornos das coisas e dos seres adquirem dimensões irreais,
as significações ocultas de carácter alegórico ou esotérico impõem-se muitas
vezes como valores dominantes do romance. O propósito primário e tradicional da
literatura romanesca - contar uma história - oblitera-se e desfigura--se.
Por outro lado,
o enredo do romance moderno torna-se muitas vezes caótico e confuso, pois o
romancista quer exprimir com autenticidade a vida e o destino humano, e estes
aparecem como o reino do absurdo, do incongruente e do fragmentário. O enredo
balzaquiano, a composição do romance defendida por Bourget, falsificavam a
densidade e a pluridimensionalidade da vida, e por isso o romance contemporâneo
situa-se muito longe do romance balzaquiano, sem que tal facto implique, aliás,
qualquer desvalorização de Balzac.
A crise de identidade de Maria
"Essa crise de identidade faz com que Maria morra de tristeza."Perante tamanhos absurdos construídos pelos alunos sobre a sua vida, como não haveria Maria de enfrentar crises de identidade?
sábado, 10 de agosto de 2019
sexta-feira, 9 de agosto de 2019
Na aula (XXXVI): Vasxinou
O que significa a 'palavra' vasxinou?
Resposta: fascinou.
Almeida Garrett foi o introdutor do incesto na literatura portuguesa
"Maria afasta-se do que a familia espera dela no momento em que, mesmo na incerteza da sobrevivência de D. João, esta se junta com Manuel de Sousa Coutinho...".Maria casou com D. João (um clássico entre os alunos mais desatentos) e «juntou-se» a Manuel de Sousa, seu pai. Note-se para a modernidade da temática do incesto introduzida em pleno Romantismo, bem como da antecipação das relações amorosas não formalizadas: «juntar».
O aprofundamento da análise psicológica
A psicologia de
William James, difundindo o conceito de corrente da consciência, revelando a
existência de recordações, pensamentos e sentimentos fora da «consciência
primária», e a psicanálise de Freud, fazendo emergir da sombra as estruturas
ocultas do psiquismo humano, impulsionaram poderosamente essa nova espécie de
romance - o romance das profundidades do eu.
A
desvalorização da diegese, acompanhada de um singular aprofundamento da análise
psicológica da personagem, caracteriza particularmente o chamado romance
impressionista de James Joyce e de Virgínia Woolf. É muito possível que, no
romance impressionista, tenha atuado como poderoso estímulo o desejo de reagir
contra o cinema mudo, semelhantemente ao que sucedera na pintura, onde o
impressionismo representara uma reação contra a fotografia. O cinema, na
verdade, podia traduzir um enredo movimentado e rico de peripécias, mas não
conseguia apreender a vida secreta e profunda das consciências. É esta vida
recôndita que o romance impressionista procura devassar, através do ritmo
narrativo extremamente lento, tão peculiar de Virgínia Woolf, e através da
técnica do monólogo interior, tão cultivada por James Joyce. Virgínia Woolf
esforça-se cuidadosamente por exprimir, de modo subtil, minudente e não
deformador, os estados e as reações da consciência, embora tais conteúdos subjetivos,
muitas vezes, pareçam e sejam absurdamente fragmentários e incoerentes. O homem
não se preocupa apenas com as suas relações pessoais, com a maneira de ganhar
dinheiro ou de adquirir um lugar na sociedade: «uma larga e importante parte da
vida consiste nas nossas emoções perante as rosas e os rouxinóis, as árvores, o
pôr do sol, a vida, a morte, e o destino». O romancista tem de se ocupar destes
estados fluidos, nostálgicos e iridescentes, razão por que, segundo Virgínia
Woolf, os romances «que se escreverem no futuro, hão de assumir algumas das
funções da poesia. Dar-nos-ão as relações do homem com a natureza, com o
destino, as suas imagens, os seus sonhos. Mas o romance dar-nos-á também o riso
escarninho, o contraste, a dúvida, a intimidade e a complexidade da vida».
O Ulisses de James Joyce
constitui uma das tentativas mais audaciosas até hoje realizadas no domínio
romanesco para apreender a «intimidade e a complexidade da vida» de que fala
Woolf. O seu enredo, no sentido tradicional do vocábulo, é mínimo: limita-se a
ser a história de tudo o que acontece, no dia 16 de junho de 1904, a Leopold
Bloom, um judeu de Dublin. E tudo o que acontece a Bloom não sai fora dos
limites habituais da vida estereotipada de um burguês daquela época -
acompanhar um enterro, passar pela redação de um jornal, entrar numa taberna,
frequentar um prostíbulo... O Ulisses é o romance destes acontecimentos
anódinos e de todas as reminiscências caóticas, das reflexões, das frustrações
e das raivas de Leopold Bloom, mas faz ascender este trivial acervo de matéria
romanesca a um plano de significações simbólicas e esotéricas, pois o romance
está modelado segundo a Odisseia, existindo um paralelismo estrito entre
as figuras e os acontecimentos do Ulisses e daquele poema homérico.
Subscrever:
Mensagens
(
Atom
)