Português: O classicismo francês: a época de Luís XIV

terça-feira, 9 de julho de 2019

O classicismo francês: a época de Luís XIV

            Em França, as guerras de religião haviam rematado no século XVI pelo Edicto de Nantes (1598) e o advento da dinastia bourbónica. Deste compromisso precário entre a burguesia huguenote e a aristocracia católica resulta, como fiel da balança, a política absolutista de Richelieu, Mazarino e Luís XIV, profundamente diferente, no seu significado social, do absolutismo peninsular. A coroa sustenta, além da nova burocracia do absolutismo, a velha aristocracia de sangue, que, domesticada depois do esmagamento da Fronda, faz uma vida ociosa de corte. A burguesia ascende, em parte, à categoria de cargo, prevalece na administração central, enriquece com os fornecimentos e arrematações dos impostos da Coroa, impõe a política mercantilista que permite o desenvolvimento da manufatura (indústrias de luxo, mineração, construção naval, têxteis, etc.). Batidos os Filipes na Paz dos Pirenéus de1659, a França torna-se a potência hegemónica da Europa. Mas a «guerra do dinheiro», de conquista surda dos mercados e do ouro, conduzida por Colbert e as suas Companhias contra as outras potências, empurra Luís XIV a uma série de lutas armadas que desprestigiam o absolutismo e dão lugar ao agravamento da situação económica das massas populares.
            Sob o ponto de vista cultural, o grande foco é ainda então a corte, que deve à corte madrilena a iniciação em muitos requintes. No campo literário, Honoré d’Urfé, com o início da Astrée e, 1608, introduz na corte francesa o formalismo da alegoria pastoral anteriormente consagrada pela Diana de Montemor, dando o modelo para as damas preciosas dos salões da marquesa de Rambouillet e de M.lle. Scudéry; e Corneille, com o Cid (1636-37), adapta o drama espanhol ao gosto francês, inaugurando o teatro clássico em França. Mas a um estado de coisas político e social mais estável e a um nível já superior corresponde um espírito mais analítico e racionalista, um sentimento de vida mais confiante, mais equilibrado e menos patético que o prevalecente em Espanha. Há uma enorme floração de doutrinadores e preceptistas literários, cheios de ponderação sensata, entre os quais se destacam o poeta Malherbe, à entrada do século, e Boileau, cerca do último quartel (Arte Poética, 1674). Ao mesmo tempo a Academia Francesa (1635) e vários gramáticos racionalistas desempenham o seu papel de codificação e apuramento linguísticos.
            No terreno filosófico, a figura dominante do século XVII francês é Descartes, também um dos criadores da álgebra, da geometria analítica e da mecânica. A sua filosofia, como a do seu contemporâneo inglês Bacon, centra-se no problema da metodologia científica (Discurso do Método, 1637). Em última análise, o método cartesiano reduz-se a interpretar os fenómenos segundo esquemas mecânicos, geométricos e algébricos. Descartes, por outro lado, acautela o idealismo tradicional e a teologia, e não discute as instituições políticas e sociais do tempo; sustenta a imaterialidade e eternidade do espírito, mas concebido como simples consciência das leis mecânicas do mundo, e afirma a existência de Deus, mas como garantidor da realidade objetiva das leis científicas – um Deus, aliás, que (pelo menos sob certa leitura de Descartes) é a negação mesma do milagre.
            Com Newton, Pascal e Leibniz, além do método experimental, integram-se no pensamento científico os conceitos de energia e de infinito. A preocupação da infinidade e da omnipotência divinas, agora que a ciência impunha uma conceção infinitista e energética do mundo, sente-se nos Jansenistas de Port-Royal, de que Pascal foi a figura dominante.
            À ascensão do absolutismo em França corresponde o teatro de Corneille (Horácio, Cinna, 1640), em que se apresenta sempre a vitória da autodisciplina cívica do protagonista sobre as paixões pessoais mais veementes. Com Racine, os conflitos da tragédia já lisonjeiam mais as paixões, e a noção de dever desloca-se do clima cívico para o clima familiar (Fedra, 1677). Um e outro levam à maior perfeição o esquema das três unidades (ação, lugar e tempo), que ao teatro clássico francês uma grande densidade psicológica e ideológica. Entretanto, a comédia de caracteres de Molière, fundindo o racionalismo francês com a experiência de palco da Commedia dell’Arte, critica penetrantemente a hipocrisia e a fatuidade do sistema feudal remodelado sob o absolutismo, atingindo ao mesmo tempo a caça ao lucro, ou ao prazer e várias deformações psicológicas, típicas não só da nobreza mas também da burguesia dirigente, com um poder de apreensão que os ideólogos burgueses perderão mais tarde no seu propagandismo revolucionário (Preciosas Ridículas, 1659; D. João, 1665; Tartufo, 1669; As Sabichonas, 1672, etc.).
            Os sintomas de dissolução ideológica do regime de Luís XIV começam por se fazer sentir nos meios aristocráticos. Tal como na aristocracia tory inglesa, desenvolve-se o ceticismo galante dos libertinos, que transvasa para as obras de um estilo seco e cínico (Máximas de Rochefoucauld, 1665, Caracteres de La Bruyère, 1688, Fábulas de La Fontaine, 1668); os espíritos volvem-se para as pequenas coisas, registam efemérides e ditos, redigem memórias, correspondência literária, mantêm o tom racionalista, mais virado para o mundo psicológico ou para uma perspetiva pessimista do mundo social (Memórias do cardeal de Retz e do duque de Saint-Simon; Cartas de M.me de Sévigné; Princesse de Clèves, romance de M.me de Lafayette, 1678). Entre 1680 e 1715 decorre o período que Paul Hazard denomina de «crise da consciência europeia», no qual se confirma o descrédito das instituições e formas culturais da época de Luís XIV.

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