Português: Obra do Padre António Vieira

terça-feira, 9 de julho de 2019

Obra do Padre António Vieira

            António Vieira legou-nos cerca de 200 sermões, que lhe valeram ser considerado o maior orador sacro de Portugal, mais de 700 cartas, diversos tratados de caráter profético e um conjunto de textos de natureza política e social, conjunto este que simboliza o modo como o escritor se comprometeu com a vida e a cultura do seu tempo. Destes textos destacam-se os referentes à venda ou à recuperação de Pernambuco; os relativos à Inquisição e aos Cristãos-Novos; os que concernem a liberdade dos Índios; e os dedicados ao seu próprio processo inquisitorial.
            Nos textos de feição visionária – História do Futuro, Livro Anteprimeiro (prólogo explicativo daquela), Esperanças de Portugal, Clavis Prophetarum, Defesa perante o Tribunal do Santo Ofício –, procura explicar o verdadeiro sentido das trovas do Bandarra, as quais apontavam para a consumação do Quinto Império: um império universal, harmónico, onde coubessem todas as raças e todas as culturas, unidas espiritualmente num único reino cristão e católico.
            As cartas, escritas entre 1626 e 1697, patenteiam o gosto de uma experiência vivida. Umas vezes é a longa missiva, ordenada, sistemática, a antever já virtuais leitores, reveladora das principais preocupações do autor; outras, é a carta dita “familiar”, dirigida geralmente a um amigo, onde perpassam impressões fugazes, desabafos e episódios da sua vida íntima; aqui e ali, breves discursos ou simples expressões de amizade e cortesia. Descobrem-se, nestas epístolas, referências à vida militar e económica do tempo; incorporam-se autênticos ensaios de administração ultramarina; criticam-se certos pregadores e retratam-se homens e individualidades de então; defendem-se os índios do Brasil; relatam-se as horas de êxito vividas no púlpito ou os momentos amargos dos anos de pobreza; observam-se e descrevem-se povos, costumes, lugares; e focalizam-se tantos outros assuntos que mereciam ser mencionados.
            Pejadas de pormenores e registando os pontos fulcrais de um percurso biográfico, as cartas do Padre António Vieira transformam-se num valioso testemunho quer dos diversos condicionalismos político-sociais da época, quer da complexa personalidade do escritor.
            Durante o século XVII, o sermão não foi só o género literário predominante; foi também, e principalmente, a base da mais importante cerimónia social: a pregação. Através dela, a palavra do orador atingia todas as camadas sociais.
            O púlpito transformara-se, na época, no último baluarte da liberdade de expressão. Durante a dominação filipina, apenas a alguns sacerdotes era dada a faculdade de falar livremente contra, por exemplo, a opressão espanhola. Talvez daí, também, o hábito instituído de fazer do púlpito a tribuna ideal do comentário crítico à vida pública. No século XVII, o púlpito era um palco e o pregador um actor a tentar exibir do melhor modo possível a sua palavra, ajustando as modulações da sua voz aos efeitos visados junto do auditório. A pregação era um espectáculo, tanto quanto possível espectacular. Aliás, uma das tradicionais funções oratórias era o delectare (deleitar), para além do docere (ensinar) e do movere (mover ou influenciar o comportamento do ouvinte), e estava no espírito da Contrarreforma a captação e catequização das multidões não tanto pela razão, que se estava cada vez mais revelando perigosa para a religião de então, mas antes pela sensibilidade, pelo prazer, pelo puro gozo intelectual, e também pelo terror e piedade que moveriam (movere) os espectadores (o argumento do inferno era o mais poderoso equivalente imaginário dos autos-de-fé reais).
            Tudo isto se relaciona com uma época cultural que deslocou para múltiplos palcos – o teatro, a ópera, o púlpito, o auto-de-fé, as procissões, os enterros – o seu sadismo doentio aí o descarregando. A própria existência de um ritual social como o sermão, onde os ouvintes vão para serem, em princípio, admoestados e culpabilizados, e os pregadores para os fustigarem como intérpretes autorizados da Lei, é uma prática mórbida e fantasmagórica. Nos sermões do Padre António Vieira, espelha-se fielmente a época conturbada em que ele viveu, apegado a uma nação cada vez mais vulnerável, quer às arremetidas dos adversários, quer às próprias tensões internas.
            Os sermões mais conhecidos contam-se entre os que, de uma forma mais directa, se prendem a processos ou factos históricos específicos: o levantamento do sítio que os Holandeses haviam feito à Baía (1638) e a situação aflitiva que esta cidade de novo enfrentou passados dois anos determinam, respectivamente, o Sermão de Santo António e o Sermão pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal contra as da Holanda (1640); para incitar todas as classes da nação a contribuírem para a defesa nacional, surge o Sermão de Santo António (1642), proferido na véspera da reunião das cortes; o sermão Sobre as Verdades e Falsas Riquezas vem datado de 1656, «na ocasião em que chegou a nova de se ter desvanecido a esperança das minas, que com grande empenho se tinham ido descobrir»; e lembremos ainda o Sermão dos Bons Anos, pregado em Lisboa na Capela Real, no ano de 1642, onde Vieira apregoa a sua confiança em Deus e na política do Rei (D. João IV).
            Do missionário catequista destacam-se os referentes à defesa dos Índios contra o egoísmo dos colonos, de que ficou célebre o Sermão de Santo António aos Peixes. Os sermões de mais alta inspiração religiosa, e os de maior fascínio artístico, desligados das contingências espácio-temporais, são os menos conhecidos dos leitores.
            É nesta actividade missionária que o fervor evangélico de Vieira se impregna de uma doce e comovente humildade, que a carta dirigida ao Padre Francisco de Morais (maio de 1653) deixa transparecer: «Sabei, amigo, que a melhor vida é esta. Ando vestido de um pano grosseiro cá da terra, mais pardo que preto; como farinha de pau; durmo pouco; trabalho de pela manhã à noite; gasto parte dela em me encomendar a Deus; não trato com mínima criatura; não saio fora senão a remédio de alguma alma; choro meus pecados; faço que outros chorem os seus; e o tempo que sobeja destas ocupações, levam-no os livros da madre Teresa e outros de semelhante leitura. Finalmente, ainda que com grandes imperfeições, nenhuma coisa faço que não seja com Deus, por Deus e para Deus, e para estar na bem-aventurança só me falta vê-lo, que seria maior gosto, mas não maior felicidade.»
            Neste género literário desenvolvido por Vieira convergem, pois, o idealista, o político, o missionário, o sebastianista, o patriota, enfim, a complexa e enigmática personalidade do escritor. Por isso, os seus sermões ultrapassam o valor religioso para se tornarem motor de meditação e estudo por parte de moralistas, sociólogos, linguistas e historiadores.

Sem comentários :

Enviar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...