Português

quarta-feira, 25 de março de 2015

"O Amor em Visita", Herberto Helder

Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra
e seu arbusto de sangue. Com ela
encantarei a noite.
Dai-me uma folha viva de erva, uma mulher.
Seus ombros beijarei, a pedra pequena
do sorriso de um momento.
Mulher quase incriada, mas com a gravidade
de dois seios, com o peso lúbrico e triste
da boca. Seus ombros beijarei.

Cantar? Longamente cantar.
Uma mulher com quem beber e morrer.
Quando fora se abrir o instinto da noite e uma ave
o atravessar trespassada por um grito marítimo
e o pão for invadido pelas ondas -
seu corpo arderá mansamente sob os meus olhos palpitantes.
Ele - imagem vertiginosa e alta de um certo pensamento
de alegria e de impudor.
Seu corpo arderá para mim
sobre um lençol mordido por flores com água.

Em cada mulher existe uma morte silenciosa.
E enquanto o dorso imagina, sob os dedos,
os bordões da melodia,
a morte sobe pelos dedos, navega o sangue,
desfaz-se em embriaguez dentro do coração faminto.
- Oh cabra no vento e na urze, mulher nua sob
as mãos, mulher de ventre escarlate onde o sal põe o espírito,
mulher de pés no branco, transportadora
da morte e da alegria.

Dai-me uma mulher tão nova como a resina
e o cheiro da terra.
Com uma flecha em meu flanco, cantarei.
E enquanto manar de minha carne uma videira de sangue,
cantarei seu sorriso ardendo,
suas mamas de pura substância,
a curva quente dos cabelos.
Beberei sua boca, para depois cantar a morte
e a alegria da morte.

Dai-me um torso dobrado pela música, um ligeiro
pescoço de planta,
onde uma chama comece a florir o espírito.
À tona da sua face se moverão as águas,
dentro da sua face estará a pedra da noite.
- Então cantarei a exaltante alegria da morte.

Nem sempre me incendeiam o acordar das ervas e a estrela
despenhada de sua órbita viva.
- Porém, tu sempre me incendeias.
Esqueço o arbusto impregnado de silêncio diurno, a noite
imagem pungente
com seu deus esmagado e ascendido.
- Porém, não te esquecem meus corações de sal e de brandura.
Entontece meu hálito com a sombra,
tua boca penetra a minha voz como a espada
se perde no arco.
E quando gela a mãe em sua distância amarga, a lua
estiola, a paisagem regressa ao ventre, o tempo
se desfibra - invento para ti a música, a loucura
e o mar.

Toco o peso da tua vida: a carne que fulge, o sorriso,
a inspiração.
E eu sei que cercaste os pensamentos com mesa e harpa.
Vou para ti com a beleza oculta,
o corpo iluminado pelas luzes longas.
Digo: eu sou a beleza, seu rosto e seu durar. Teus olhos
transfiguram-se, tuas mãos descobrem
a sombra da minha face. Agarro tua cabeça
áspera e luminosa, e digo: ouves, meu amor?, eu sou
aquilo que se espera para as coisas, para o tempo -
eu sou a beleza.
Inteira, tua vida o deseja. Para mim se erguem
teus olhos de longe. Tu própria me duras em minha velada
beleza.

Então sento-me à tua mesa. Porque é de ti
que me vem o fogo.
Não há gesto ou verdade onde não dormissem
tua noite e loucura, não há vindima ou água
em que não estivesses pousando o silêncio criador.
Digo: olha, é o mar e a ilha dos mitos
originais.
Tu dás-me a tua mesa, descerras na vastidão da terra
a carne transcendente. E em ti
principiam o mar e o mundo.

Minha memória perde em sua espuma
o sinal e a vinha.
Plantas, bichos, águas cresceram como religião
sobre a vida - e eu nisso demorei
meu frágil instante. Porém
teu silêncio de fogo e leite repõe a força
maternal, e tudo circula entre teu sopro
e teu amor. As coisas nascem de ti
como as luas nascem dos campos fecundos,
os instantes começam da tua oferenda
como as guitarras tiram seu início da música nocturna.

Mais inocente que as árvores, mais vasta
que a pedra e a morte,
a carne cresce em seu espírito cego e abstracto,
tinge a aurora pobre,
insiste de violência a imobilidade aquática.
E os astros quebram-se em luz
sobre as casas, a cidade arrebata-se,
os bichos erguem seus olhos dementes,
arde a madeira - para que tudo cante
pelo teu poder fechado.
Com minha face cheia de teu espanto e beleza,
eu sei quanto és o íntimo pudor
e a água inicial de outros sentidos.

Começa o tempo onde a mulher começa,
é sua carne que do minuto obscuro e morto
se devolve à luz.
Na morte referve o vinho, e a promessa tinge as pálpebras
com uma imagem.
Espero o tempo com a face espantada junto ao teu peito
de sal e de silêncio, concebo para minha serenidade
uma ideia de pedra e de brancura.
És tu que me aceitas em teu sorriso, que ouves,
que te alimentas de desejos puros.
E une-se ao vento o espírito, rarefaz-se a auréola,
a sombra canta baixo.

Começa o tempo onde a boca se desfaz na lua,
onde a beleza que transportas como um peso árduo
se quebra em glória junto ao meu flanco
martirizado e vivo.
- Para consagração da noite erguerei um violino,
beijarei tuas mãos fecundas, e à madrugada
darei minha voz confundida com a tua.
Oh teoria de instintos, dom de inocência,
taça para beber junto à perturbada intimidade
em que me acolhes.

Começa o tempo na insuportável ternura
com que te adivinho, o tempo onde
a vária dor envolve o barro e a estrela, onde
o encanto liga a ave ao trevo. E em sua medida
ingénua e cara, o que pressente o coração
engasta seu contorno de lume ao longe.
Bom será o tempo, bom será o espírito,
boa será nossa carne presa e morosa.
- Começa o tempo onde se une a vida
à nossa vida breve.

Estás profundamente na pedra e a pedra em mim, ó urna
salina, imagem fechada em sua força e pungência.
E o que se perde de ti, como espírito de música estiolado
em torno das violas, a morte que não beijo,
a erva incendiada que se derrama na íntima noite
- o que se perde de ti, minha voz o renova
num estilo de prata viva.

Quando o fruto empolga um instante a eternidade
inteira, eu estou no fruto como sol
e desfeita pedra, e tu és o silêncio, a cerrada
matriz de sumo e vivo gosto.
- E as aves morrem para nós, os luminosos cálices
das nuvens florescem, a resina tinge
a estrela, o aroma distancia o barro vermelho da manhã.
E estás em mim como a flor na ideia
e o livro no espaço triste.

Se te aprendessem minhas mãos, forma do vento
a cevada pura, de ti viriam cheias
minhas mãos sem nada. Se uma vida dormisses
em minha espuma,
que frescura indecisa ficaria no meu sorriso?
- No entanto és tu que te moverás na matéria
da minha boca, e serás uma árvore
dormindo e acordando onde existe o meu sangue.

Beijar teus olhos será morrer pela esperança.
Ver no aro de fogo de uma entrega
tua carne de vinho roçada pelo espírito de Deus
será criar-te para luz dos meus pulsos e instante
do meu perpétuo instante.
- Eu devo rasgar minha face para que a tua face
se encha de um minuto sobrenatural,
devo murmurar cada coisa do mundo
até que sejas o incêndio da minha voz.

As águas que um dia nasceram onde marcaste o peso
jovem da carne aspiram longamente
a nossa vida. As sombras que rodeiam
o êxtase, os bichos que levam ao fim do instinto
seu bárbaro fulgor, o rosto divino
impresso no lodo, a casa morta, a montanha
inspirada, o mar, os centauros
do crepúsculo
- aspiram longamente a nossa vida.

Por isso é que estamos morrendo na boca
um do outro. Por isso é que
nos desfazemos no arco do verão, no pensamento
da brisa, no sorriso, no peixe,
no cubo, no linho,
no mosto aberto
- no amor mais terrível do que a vida.

Beijo o degrau e o espaço. O meu desejo traz
o perfume da tua noite.
Murmuro os teus cabelos e o teu ventre, ó mais nua
e branca das mulheres. Correm em mim o lacre
e a cânfora, descubro tuas mãos, ergue-se tua boca
ao círculo de meu ardente pensamento.
Onde está o mar? Aves bêbedas e puras que voam
sobre o teu sorriso imenso.
Em cada espasmo eu morrerei contigo.

E peço ao vento: traz do espaço a luz inocente
das urzes, um silêncio, uma palavra;
traz da montanha um pássaro de resina, uma lua
vermelha.
Oh amados cavalos com flor de giesta nos olhos novos,
casa de madeira do planalto,
rios imaginados,
espadas, danças, superstições, cânticos, coisas
maravilhosas da noite. Ó meu amor,
em cada espasmo eu morrerei contigo.

De meu recente coração a vida inteira sobe,
o povo renasce,
o tempo ganha a alma. Meu desejo devora
a flor do vinho, envolve tuas ancas com uma espuma
de crepúsculos e crateras.
Ó pensada corola de linho, mulher que a fome
encanta pela noite equilibrada, imponderável -
em cada espasmo eu morrerei contigo.

E à alegria diurna descerro as mãos. Perde-se
entre a nuvem e o arbusto o cheiro acre e puro
da tua entrega. Bichos inclinam-se
para dentro do sono, levantam-se rosas respirando
contra o ar. Tua voz canta
o horto e a água - e eu caminho pelas ruas frias com
o lento desejo do teu corpo.
Beijarei em ti a vida enorme, e em cada espasmo
eu morrerei contigo.


                               Herberto Helder, in O Amor em Visita

terça-feira, 24 de março de 2015

sábado, 21 de março de 2015

"Always the Sun", The Stranglers


     Após o eclipse de ontem de manhã, é sempre bom saber que há «always the sun».

quinta-feira, 19 de março de 2015

'Pai Herói'

85...

Para Sempre

Por que Deus permite
que as mães vão-se embora?
Mãe não tem limite,
é tempo sem hora,
luz que não apaga
quando sopra o vento
e chuva desaba,
veludo escondido
na pele enrugada,
água pura, ar puro,
puro pensamento.
Morrer acontece
com o que é breve e passa
sem deixar vestígio.
Mãe, na sua graça,
é eternidade.
Por que Deus se lembra
— mistério profundo —
de tirá-la um dia?
Fosse eu Rei do Mundo,
baixava uma lei:
Mãe não morre nunca,
mãe ficará sempre
junto de seu filho
e ele, velho embora,
será pequenino

feito grão de milho.

                      Carlos Drummond de Andrade, in Lição de Coisas

segunda-feira, 16 de março de 2015

Einstein e a maçã

     «Isto» é uma aluna do 12.º ano a refletir sobre a importância do sonho na vida do ser humano: «Um exemplo disso è a teoria de AlBert Einstein, se ele, quando a maça lhe cai na cabeça ficasse quieto a comer a maça, nós secalhar hoje nao sabiamos o que atraia os corpos para o centro da Terra.»

     Uma pessoa otimista considerará que, pelo menos, a aluna conseguiu associar o nome de Einstein à «ciência».

segunda-feira, 9 de março de 2015

Guia Geral de Exames 2015

(Clicar na imagem para aceder.)

Concurso Nacional de Professores

     O sítio do SNP disponibiliza o mapa concetual abaixo reproduzido (consultar aqui), muito útil para todos os professores que pensam e / ou têm de concorrer.


domingo, 8 de março de 2015

Contração da preposição com pronomes e artigos

. Regra geral, a preposição contrai-se com pronomes e determinantes artigos:
- O golo é do Jonas.
- O livro é dele.

. Porém, quando é seguisa de um verbo no infinitivo, a preposição não se contrai com pronomes e artigos:
- Tenho pena de ele ter falecido.

- Gostei de a ver, Sr.ª Quinhas.

- O facto de o o Jesus ter problemas com a língua...

sexta-feira, 6 de março de 2015

Exames Nacionais 2015 - Normas para alunos com Necessidades Educativas Especiais

     Ler aqui: Norma JNE NEE 2015.

Plural de «pêra»


     Qual é o plural de pêra? Peras ou pêras?

     O plural de pêra é peras, ou seja, sem acento circunflexo, ao contrário do que sucede com o singular.
     O singular da palavra tem acento para diferenciar da preposição arcaica «pera» (presente, por exemplo, nas obras de Gil Vicente). Ora, dado que as preposições não têm plural, o plural do fruto pêra não necessita de acento.

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

'Octógono' ou 'octágono'?

     A resposta é: ambas as formas.

     De facto, estamos perante um vocábulo que surgiu no âmbito da Ciência a partir do século XVI que envolve elementos tanto do grego como do latim.
     Assim, por um lado temos a forma octágono, cujos elementos de formação são de origem grega.
     Por outro lado, octógono é um nome de formação híbrida, constituído pelo elemento octo-, de origem latina, e pelo elemento -gono, de origem grega.

sábado, 21 de fevereiro de 2015

O grupo de Salazar

     Pérola nos exames de 12.º ano de junho:

     «Salazar juntou-se a um grupo de indivíduos que queriam por ordem no mundo e sinceramente conseguiram.»

sábado, 14 de fevereiro de 2015

Sexta-feira 13


          Sexta-feira 13 é considerado um dia de azar e um poço de superstições. Qual será a origem desta associação do dia a diversos mitos, crenças e curiosidades? Uma coisa é certa: todos os meses começados a um domingo terão uma sexta-feira 13.

          O medo resultante da ocorrência deste dia tem um nome: parascavedecatriafobia. O Instituto da Fobia de Ashville, na Carolina do Norte, Estados Unidos, estima que entre 17 e 21 milhões de norte-americanos sofram desta doença, que também é conhecida por frigatriscaidecafobia. Muitas destas pessoas não saem de casa quando a sexta-feira coincide com o dia 13 do mês, com medo que algo de mal lhes aconteça. Por outro lado, há quem sofra de um medo incontrolável apenas do número 13. Essa fobia também está estudada cientificamente e chama-se triskaidekaphofia. O cantor brasileiro Roberto Carlos, por exemplo, tem tanto medo dos maus agouros que às sextas-feiras 13 simplesmente não trabalha. Pelo sim, pelo não, tira folga nos outros dias 13 do ano. Em vários países asiáticos, nomeadamente no Japão, o número 13 não existe nos prédios. Os números dos elevadores dos prédios mais altos, por exemplo, saltam do 12 para o 14.
          Por outro lado, este dia é pródigo em acontecimentos trágicos:
. O dilúvio bíblico, relatado no livro do Génesis, terá começado precisamente numa sexta-feira 13. Só Noé ‑ e a sua família ‑, instruído por Deus a construir uma arca que pudesse albergar um casal de cada espécie existente na Terra, escapou.
. A queda do avião que levava a equipa uruguaia de rúgbi nos Andes foi numa sexta-feira 13, em 1972.
. O maior incêndio da história da Austrália, onde todos os anos ardem quilómetros e quilómetros de floresta, deflagrou a uma sexta-feira 13, em 1939. Nesse dia, mais de 20 mil quilómetros quadrados de floresta arderam e 71 pessoas perderam a vida.
. De acordo com uma seguradora britânica, nas sextas-feiras 13 o número de acidentes de automóvel sofre um acréscimo na ordem dos 13%.

          As explicações em torno desta superstição são várias e de diversas origens.
          Uma das principais explicações provenientes do Ocidente prende-se com a Última Ceia, durante a qual Jesus se sentou à mesa com 12 apóstolos, sendo ele o 13.º elemento na mesa. Além disso, foi crucificado numa sexta-feira.
          Outra das mais comummente aceites está relacionada com a ordem dos Templários. O rei Felipe IV de França sentia-se ameaçado pelo poder e influência exercidos pela Igreja católica no país. Para contornar a situação, tentou entrar na ordem religiosa dos Cavaleiros Templários, que gozava de grande prestígio. No entanto, o seu pedido foi declinado. Enfurecido, terá ordenado a perseguição dos templários. Os que foram encontrados foram presos (aos milhares), excomungados e até queimados na fogueira. Tal sucedeu numa sexta-feira, 13 de outubro de 1307.
          A mitologia nórdica procura explicar a maldição das sextas-feiras 13 a partir de um grande banquete organizado pelos deuses em Valhalla, no qual o seu chefe, Odin, terá reunido outras onze importantes divindades. Uma delas, Loki, o deus da discórdia e do fogo, ofendida por não ter sido convidada, foi ao encontro, enganou um deus cego para que este ferisse Balder (ou Baldur), favorito de Odin, ato que resultou na morte de Balder. Daqui terá surgido a ideia que juntar 13 pessoas à mesma mesa é sinal de desgraça. Por isso, fica um de fora, ou se convida um décimo quarto.
          Um segundo mito da mitologia nórdica explica esta superstição com o processo de cristianização dos povos bárbaros que invadiram a Europa no início do período medieval. Antes da conversão, eram politeístas e muito devotos de Friga, deusa do amor e da beleza. Com o processo de conversão, passaram a amaldiçoá-la como uma bruxa. Então, todas as sextas-feiras, Friga terá passado a reunir-se com 11 feiticeiras e com o Diabo, rogando pragas contra os homens.

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...