A
resposta é óbvia: não sabemos. Certamente, não foi algo imediato, antes
um processo gradual que levou milhares ou milhões de anos. O que sabemos é que
todos os animais comunicam entre si, incluindo os irracionais, embora as formas
de comunicação humanas sejam especiais. Por exemplo, os seres humanos comunicam
quando choram ou coram, isto é, sem soltar um som que seja.
As
línguas humanas têm características muito específicas: não estão inscritas nos
genes, são extremamente flexíveis, adaptam-se facilmente a novas realidades (todos
os dias surgem novas palavras para designar algo novo que surge), permitem
falar do passado e do futuro (note-se como podemo-nos referir ao futuro sem
usar o respetivo tempo verbal; é possível fazê-lo – e fazemo-lo – usando o
presente: “Volto amanhã.” = “Voltarei amanhã.”), despertam e interferem com a
imaginação. Por outro lado, as línguas humanas fazem uso da chamada dupla
articulação, ou seja, um conjunto limitado de sons conjuga-se para criar
unidades com significado.
No
seu sítio Certas Palavras (www.certaspalavras.pt),
o professor Marco Neves, perante a total falta de dados que nos permitam saber
como surgiu a linguagem humana, imagina uma história explicativa do processo.
De
acordo com essa explicação, a linguagem teria tido origem em sons que o Homem usava
em certas situações de forma instintiva ou na imitação de animais e que, a
partir de certo momento, conseguiu desligar o símbolo do seu significado. E
prossegue nos seguintes termos: “Imaginemos um grupo de seres humanos, na
savana, a caçar. Um deles vê, à frente, uma gazela. Habitualmente, usam um som
dito em surdina, para que todos reparem. Com o tempo, encontram vários sons
para diferentes animais. Estamos perante sinais, que vão sendo aprendidos pelas
novas gerações. Estes sinais, a certa altura, começam a ser usados noutros
contextos, para «conversar» sobre os animais. Nascem as palavras. Um som poderia
representar um tigre, mas também pode ter passado a significar um animal,
usando-se outro som (ou uma conjugação de sons) para representar o tigre em si.
Alguém, à noite, refere vários tigres, usando, provavelmente, uma duplicação
dos sons usados para se referirem àquele animal.
Com
o tempo, ganham-se hábitos de ordenação desses símbolos sonoros – seria possível
dizer «gazela» «caçar» «eu», mas nunca «eu» «caçar» «gazela». Nasce a gramática.
A língua é criada a partir de necessidades práticas, ganha características
gramaticais particulares, que mais não são do que a cristalização de hábitos
linguísticos adquiridos sem grande lógica, e conhecer essas características
(essa gramática) torna-se essencial para viver na comunidade que usa essa
língua. Quem falava para caçar também era capaz de falar para impressionar a
vizinha – e se não fizesse, teria menos hipóteses de ter filhos com a vizinha.
As
línguas são sistemas simbólicos muito complexas, com base em sons ou gestos.
Com esses símbolos, comunicamos e criamos pensamentos na cabeça dos outros
(obrigamo-los a pensar em tigres). Trabalhamos a pensar em conjunto, nem que
seja para saber como caçar o tigre – ou atacar a tribo do lado. Quanto mais o
cérebro aumentava, mais capacidade tínhamos para manipular símbolos.”
[…]
Imaginemos,
por exemplo, um conjunto de arbustos que precisam de ter exposição ao sol para
sobreviver. Ora, se um arbusto em particular sofre uma mutação no seu ADN que o
torna ligeiramente mais alto e com mais folhas no topo, vai conseguir receber
mais luz do sol e, ao mesmo tempo, vai impedir que os arbustos do lado recebam
tanta luz. Vai viver mais e reproduzir-se mais. Em breve, […], os genes deste
arbusto vão começar a espalhar-se mais do que os arbustos um pouco mais baixos.
Os arbustos mais baixos passam a ter uma desvantagem que não existia antes. Os
arbustos com mutações que os tornam mais altos ganham. O gene que leva a uma
maior altura começa a ser preponderante – e assim surgem as árvores. Todos os
arbustos viviam felizes e contentes antes desta guerra. Não há uma vantagem
inerente à maior altura: a única vantagem é conseguir ganhar aos arbustos do
lado.”
No
caso do ser humano, o uso do símbolo permitia o ganha de vantagens
relativamente a quem não o domina, pois permite perceber melhor os outros,
ganhar mais poder, ser bem-visto, seduzir.
A
linguagem não é essencial para a sobrevivência do ser humano, como o prova o
facto de a humanidade ter vivido e evoluído ao longo de milhares de anos sem
ter uma linguagem como a entendemos hoje. Assim sendo, qual terá sido a razão
que fez com que se tornasse tão preponderante? O professor Marco Neves
responde: “Há duas grandes correntes. Alguns linguistas sublinham que a
linguagem é uma ferramenta cultural, inventada ao longo da nossa História. No
fundo, o uso da linguagem será como a roda: uma vez inventada, tornou-se tão
útil que ninguém a dispensa. Mas não nascemos – segundo esta perspetiva – com algum
tipo de mecanismo linguístico impresso no cérebro. Outros linguistas sublinham
o caráter biológico da linguagem: temos aparelhos fonadores e cérebros
adaptados ao uso da linguagem – as nossas gargantas seriam diferentes se não
fosse a necessidade de falar.” Assim sendo, é lícito concluir que a linguagem humana
é um facto cultural e biológico.
Para
se adaptar à nova necessidade que era a linguagem, tudo no ser humano evoluiu: o
corpo em geral, o cérebro, o aparelho fonador, a boca, a garganta. Aprender a
falar é algo natural ao ser humano, como é caminhar, ao contrário do que sucede
com outras competências, como, por exemplo, a leitura ou a escrita. Por
exemplo, uma criança de 3 ou 4 anos não necessita que os adultos a ensinem a
falar; basta a convivência diária para que ela aquira e desenvolva essa
competência. Porém, o mesmo não sucede com a leitura. Se dermos a essa mesma
criança um livro, não conseguirá lê-lo sozinha, sem ajuda, sem quem a ensine.
Embora
não existam certezas, é possível que, há cerca de 40 000 anos, os seres humanos
já falassem línguas com características semelhantes às que hoje possuímos. No
entanto, há indícios que sugerem que a linguagem humana já existia na era do Homo
erectus, que surgiu há 2 000 000 de anos, conseguiu controlar e usar o
fogo, se expandiu por um território vastíssimo e navegou até ilhas tão
afastadas no mar que tal empresa implicou um grau acentuado de organização e
comunicação, bem como o uso de embarcações com algum alcance e robustez. Em
2004, descobriram-se na Ilha das Flores, na Indonésia, ferramentas que datam de
há 800 000 anos. Daniel Everett, na sua obra How Language Began,
sustenta que o Homo erectus já falaria um tipo de língua simbólica algo
parecida com a nossa. Dado que a ilha já na época distava muito de terra
continental, certamente foi necessário construir barcos que levassem seres
humanos até lá, sendo difícil imaginar que tudo teria sido feito sem o uso da
fala.
Deste
modo, é possível que pelo menos há 40 mil anos já existissem línguas na Terra
com características parecidas às das atuais, sendo que há quem alargue o
período de surgimento das mesmas até há cerca de dois milhões de anos.