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sábado, 17 de agosto de 2024

Análise do poema "Liberdade, onde estás? Quem te demora?", de Bocage

  Condições histórico-políticas que estão na génese do soneto:
            – Revolução Francesa (1789);
            – consolidação da República Francesa (1797);
            – estado de absolutismo despótico que se vivia em Portugal.

 
Tema: a ânsia de Liberdade.

 
Assunto: o sujeito poético lamente a chegada tardia da Liberdade, constata a oportunidade da sua vinda, desejando e fazendo apelo para a instauração definitiva de tal valor.
 
 
Estrutura interna

 

1.ª parte (1.ª quadra) – O sujeito lírico interroga-se sobre o paradeiro da Liberdade e desabafa, em tom de incerteza e dúvida, quanto à sua chegada.
   Possuído por grande ansiedade e inquietação, face à situação presente de falta de liberdade e opressão, o sujeito poético chama por uma “liberdade colectiva” (“nós”) que alguém desconhecido impede de chegar.
 
2.ª parte (vv. 5-14) – A ansiedade, o desejo e consequente apelo, súplica, à Liberdade para que, chegando, possibilite a realização do sujeito/Humanidade.
 
 
▪ Na 2.ª estrofe, é clara a dicotomia liberdade/despotismo: o presente é o despotismo, a opressão “feroz” que “nos devora”; a situação desejada é a da redenção, da salvação: “é vinda a hora”.
 
No 1.º terceto, temos a súplica do sujeito poético à Liberdade, súplica para o merecido acolhimento para quem é patriota. Por outro lado, o sujeito apresenta os efeitos do despotismo em si:
– frio e mudo ® inexistência de liberdade de expressão – não pode poetar à vontade;
– oculta o amor pátrio;
– torce a vontade;
– finge.
          Há, de facto, no soneto, uma oposição entre uma situação real e uma situação desejada. A situação real é de opressão (“despotismo feroz”), que obriga o sujeito a silenciar, por medo, o próprio amor à Pátria, a contrariar a sua própria vontade e a fingir, para não ser apanhado nas malhas da perseguição política, conforme pode ver-se neste terceto.
          A situação desejada é a de Liberdade, aqui encarada como uma “santa redenção”, uma verdadeira salvação, tal é a violência da tirania que “nos devora”. Só a “aurora” da Liberdade poderá iluminar a “espera de Lísia” (Portugal) e dissipar as trevas de um regime ditatorial.
 
▪ No 2.º terceto, a Liberdade é apresentada como aspiração máxima do Homem [“tu és (...) tudo”] e caracterizada como divindade, glória, “mãe do génio (não há entraves para poetar) e do prazer.
 
A dicotomia Liberdade/Despotismo é sustentada, no poema, por um vasto conjunto de vocábulos:
 

Liberdade

 

Vv.

 

Ausência de Liberdade

 

Vv.

“Liberdade”
“santa redenção”
“Oh! Venha... Oh! Venha”
“pátrio amor”
“piedade”
“númen tu és
“glória”
“Mãe do génio e prazer”
“Liberdade”

 

1
5
7
10
12
13
13
14
14

 

“demora”
“triste de mim!”
“não caia”
“desmaia”
“descaia”
“Despotismo feroz, que nos devora!”
“frio e mudo”
“Oculta”
“torce a vontade”
“fingir”
“temor”
“grilhões”

 

1
2
2
6
7
8
 
9
10
10
11
11
12
 
 
Conclusão
 
            O número de vocábulos/expressões dos dois grupos opostos é semelhante, ficando, deste modo, comprovada a luta, o conflito entre forças iguais (Liberdade/Ausência de Liberdade), para o qual o sujeito poético incita, apelando e desejando a chegada da Liberdade como necessidade imperiosa para os homens, uma vez que tal privação já causara avultados sacrifícios.

 
Recursos poético-estilísticos
 
            A nível formal, trata-se de um soneto pois contém duas quadras e dois tercetos, de versos isométricos – decassilábicos. O esquema rimático é ABBA / ABBBA / CDC / DCD, sendo a rima interpolada e emparelhada nas quadras e cruzada nos tercetos. Os versos têm ainda rima grave, consoante, rica (“demora”/”aurora”) e pobre (“desmaia”/”descaia”).
 
            A nível morfossintáctico, existem, nos versos 5 e 12, dois hipérbatos bastante significativos: “Da santa redenção é vinda a hora”; “Movam nossos grilhões tua piedade”. Com a inversão sintáctica que caracteriza o hipérbato, são colocados na posição de destaque do verso (no início) os elementos mais significativos: “Da santa redenção” ® a necessidade de salvação; “Movam nossos grilhões” ® o desejo de libertação e de resolução do conflito.
            A adjectivação agrupa-se dm dois conjuntos: “triste”, “feroz”, “frio e mudo”, “pátrio”, referem-se à situação de despotismo, de opressão; “santa” refere-se à ânsia de redenção e salvação possíveis de obter através da chegada da Liberdade.
            O uso do pronome indefinido (“tudo”) reforça a dificuldade do sujeito poético em seleccionar os vocábulos apropriados para a definição de Liberdade, a aspiração máxima do Homem. Dada essa dificuldade, recorre a este pronome como forma de sintetizar a definição.
            O apelo e desejo de liberdade implicam o predomínio da função apelativa, na medida em que o discurso está centrado no receptor – Liberdade – , para, através de vocativos (“Liberdade”, “ó Liberdade”), formas de imperativo (“acode”) e de presente do conjuntivo (“venha”, “descaia”, “movam”), suplicar a sua intervenção redentora. Por outro lado, é visível também a presença emocionada do sujeito poético (função expressiva), não só pela utilização de pronomes pessoais e determinantes possessivos de primeira pessoa (“nós”, “mim”, “nos”, “nossos”, “nosso”), mas, sobretudo, através de exclamações (“triste de mim!”, por exemplo), interrogações, interjeições (“eia”, “oh”), repetições (“Oh!, venha... Oh!, venha”), reticências e adjectivação (“santa”, “trémulo”, “feroz”, “frio e mudo”) e até da metáfora (“raia (...) a tua aurora”, “devora”, “grilhões”).
            O pronome interrogativo “Quem” remete para a indefinição que rodeia a pessoa ou entidade que impede a liberdade de chegar e libertar o sujeito da situação de asfixia em que se debate face ao “despotismo feroz”.
            O polissíndeto (vv. 13-14) resulta numa tentativa de definição de algo que é transcendente pela sucessão de vocábulos.
            Encontram-se no soneto frases interrogativas (vv. 1, 2, 3-4), declarativas (vv. 5-6), exclamativas (vv. 3, 7-8, 13-14) e imperativas (vv. 9-11, 12). Esta sequência, no que diz respeito à forma como surgem no poema, remete para uma determinada progressão do estado de espírito do sujeito poético: em primeiro lugar, incerteza e indignação pela ausência de Liberdade (frases interrogativas, vv. 1-4); de seguida, a constatação de que o tempo oportuno havia chegado (frases declarativas, vv. 5-6), acompanhado de um desejo em forma de súplica para o término da situação presente (frases exclamativas, vv. 7-8); o apelo para a instauração da Liberdade (frases imperativas, vv. 9-11, 12); e, por último, o destaque atribuído à Liberdade e ao sentimentos do sujeito por tal valor (frases exclamativas, vv. 13.14) que protagoniza o poema.

            A nível semântico, logo no primeiro verso deparamos com uma apóstrofe à Liberdade que se repete no último. Ainda na primeira quadra encontramos uma série de interrogações retóricas, isto é, uma série de interpelações à origem da Liberdade, aos responsáveis pela não existência da mesma e às causas da sua chegada tardia, que servem especialmente a função expressiva, presente na 1.ª quadra, na qual o sujeito poético revela a sua tristeza e indignação pelo facto de estar privado de Liberdade.
            As exclamações, associadas às interjeições (vv. 3, 7-8, 9, 13, 14), marcas da função expressiva, evidenciam o estado de espírito do sujeito poético: a súplica, a ansiedade, a aspiração, o desespero.
            Por outro lado, quer a Liberdade quer o Despotismo surgem personificados. Assim, a personificação da Liberdade por parte do sujeito poético traduz a grande ânsia da sua chegada, enquanto a personificação do Despotismo, por um lado, intensifica a sua presença, força e acção, e, por outro, a situação asfixiante em que vive.
            A metáfora é outro dos recursos importantes do poema:
– “raia (...) a tua aurora” (vv. 3-4);
– “A esta parte do mundo, que desmaia” (v. 6);
– “Despotismo feroz, que nos devora!” (v. 8);
– “... torce a vontade...” (v. 10);
– “Movam nossos grilhões...” (v. 12);
– “Nosso númen tu és...” (v. 13);
– “Mãe do génio e do prazer...” (v. 14).
Este conjunto de metáforas revela a situação de opressão em que o sujeito se debate face ao “despotismo feroz” que a Liberdade tarda em destruir, porque demora a chegar. Além disso, no caso da última metáfora, é atribuída à Liberdade a capacidade de gerar e proteger, sendo ela identificada como a génese da inspiração, do talento.


Características


sexta-feira, 16 de agosto de 2024

A escola do século XIX em imagens - XII


Eduard Ritter – Sala de aula no Tirol (c. 1840)

    Eis, em pleno século XIX, uma sala de aula nada convencional: em vez do mobiliário habitual – carteiras, lousas, secretária, estrado, mapas na parede – o que vemos é um aposento da casa do professor, com quadros na parede e móveis domésticos, sem faltar o pormenor da fruta que o docente vai depenicando durante a aula.
    Mais curiosa ainda é a forma como as crianças surgem divididas em dois grupos contrastantes: à esquerda, junto ao professor, três meninas aplicadas apresentam os seus trabalhos ao professor, enquanto o grupo mais numeroso dos rapazes, à direita, se entretêm com diversas tropelias. O mestre, já idoso, concentra-se nas suas alunas predilectas e no enorme cachimbo que vai fumando, aparentemente alheio a desordem que grassa lá para atrás. A indisciplina não é apenas, como aqui se vê, um problema do nosso tempo…
    Outra reflexão que este quadro nos sugere e que se mantém actual: como explicar que a indisciplina e os comportamentos disruptivos em geral surjam mais frequentemente associados, nas escolas, ao género masculino? Sendo esta uma realidade tanto empírica como estatisticamente demonstrável, o que leva a que os rapazes, de um modo geral, tendam a comportar-se pior na escola? Serão determinantes as características biológicas e psicológicas associadas a cada um dos géneros, as mesmas que levam a que também haja mais delinquentes, criminosos e presidiários entre os homens? Ou é a escola, da forma como tradicionalmente se organiza, que tende a valorizar determinados estereótipos atitudinais e comportamentais mais associados aos género feminino?
    Poderá ser um pouco de tudo isto, mas há um factor de natureza mais sociológica não menos relevante: antes da escolaridade ser obrigatória, eram quase só os rapazes que iam à escola. Numa família pobre ou mesmo remediada, era comum os rapazes estudarem pelo menos o tempo suficiente para aprenderem a ler e escrever, enquanto as suas irmãs ficavam em casa. E é quando começam a ser mandadas à escola que muitas raparigas, vendo nos estudos a possibilidade de ter uma vida diferente das suas mães e avós, e sabendo que ao primeiro sinal de insucesso serão retiradas da escola, não hesitam: agarram essa oportunidade com unhas e dentes…

Análise do poema "Olha, Marília, as flautas dos pastores", de Bocage

  Tema: enaltecimento da mulher amada.
 
 
Assunto: descrição de uma natureza campestre aprazível, apenas possível pela presença da mulher amada; de contrário teria o efeito oposto no sujeito: a natureza entristecê-lo-ia.
 
 
Estrutura interna


 
1.ª parte (vv. 1-12) – Descrição de uma natureza idealizada (campestre e pastoril) ® o sujeito convida Marília a admirar este cenário idílico, bucólico, harmonioso, alegre suave:

                 
 
NOTAS:
 
            1.ª) Trata-se de um quadro que “obedece” às características do locus amoenus clássico, sintetizado nas duas exclamações do verso 12: “Que alegre campo! Que manhã tão clara!”.
            No entanto, esta descrição dinâmica não é neutra, há um clima de sensualidade que percorre toda esta 1.ª parte. Marília é convidada, pelo sujeito poético e em conjunto com ele, a admirar um quadro da Natureza que convida ao amor: “Incitam nossos ósculos ardentes”, “o rouxinol suspira”, “a abelhinha sussurrando”. Os dois amantes deverão integrar-se no ambiente festivo e sensual da Natureza.
 
            2.ª) Por outro lado, trata-se de um quadro bucólico:
. a luminosidade das águas do Tejo deslizando suavemente;
. a brisa leve e acariciadora, graciosamente personificada na imagem mitológica dos Zéfiros a brincar brandamente com as flores;
. as flores, as borboletas, o rouxinol, a abelhinha;
. as flautas dos pastores, cujo som ameno condiz com a simplicidade dos pastores e do cenário campestre;
. as sensações auditivas, visuais e tácteis;
. os Amores com os seus beijos apaixonados;
. a natureza harmoniosa e idílica:
- som das flautas;
- sorrir do Tejo e o brincar dos Zéfiros;
- borboletas de mil cores;
- suspiros do rouxinol e murmúrios da abelhinha;
- a harmonia entre a natureza e o estado de alma do sujeito poético, pelo menos enquanto vir Marília.
 
            3.ª) São vários os recursos expressivos que sustentam a descrição da Natureza:
. sensações:
– visuais: olha, olha, vê;
– auditivas:   as flautas dos pastores soam;
“o rouxinol suspira”;
“nos ares sussurrando”;
– táteis:   “... não sentes / Os Zéfiros brincar...”;
“Vê como ali beijando-se...”;
“Incitam nossos ósculos...”;
. personificação do Tejo, do rouxinol, das borboletas e da abelhinha;. verbos no imperativo (olha, olha, olha, vê) que convidam a “saborear” o espectáculo da Natureza;
. emprego do diminutivo abelhinha marcando a subjectividade do sujeito;
. anáforas (“Olha, Marília...” / “Olha o Tejo...”; “Ora nas folhas (...) / Ora nos ares...”), reforçando o carácter dinâmico da descrição;
. hipérbole:   “As vagas borboletas de mil cores!”;
“Mais tristeza que a morte...”;
. hipérbato:   “Vê como ali beijando-se os Amores”;
. metáfora hiperbólica: “ósculos ardentes” (v. 6);
. substantivação: “as inocentes” (v. 7);
. adjetivação;
. intensificação: “Que”; ”tão”;
. frases elípticas e exclamativas (“Que alegre campo! Que manhã tão clara!”) transmitindo a posição do sujeito poético face ao quadro descrito.
 
 
2.ª parte (vv. 13-14) – O sujeito poético alerta Marília para a tristeza que a Natureza lhe causará se não a vir.
 
Conclusões:
. a presença da amada (Marília) é imprescindível para a felicidade do sujeito poético no meio da Natureza;
. a Natureza é vista como um cenário harmónico, perfeito, denominado locus amoenus, propício à partilha amorosa; a pequena nota romântica é diluída na profusão da amenidade.
 
 
NOTAS:
 
            1.ª) A relação entre a Natureza e o estado de alma do sujeito assenta em alguma incerteza:
            A relação entre o sujeito e a Natureza é sempre múltipla:
– ou a Natureza reflecte, como um espelho, o estado de espírito do sujeito;
– ou contrasta com o sujeito, pois nela ele não encontra a felicidade de outrora, alterada que está a ligação amorosa;
– ou comunga o estado de espírito, partilhando os sentimentos dos amantes.
 
            2.ª) Os sentimentos dominantes no poema são a alegria (1.ª parte) e a tristeza (2.ª parte). Assim sendo, as duas partes do poema articulam-se por uma relação de oposição, marcada pela conjunção adversativa mas: se a amada está presente, tudo é belo; se a amada não está presente, tudo causa tristeza. Essa oposição está exemplificada nos dois últimos versos pelo contraste entre a manhã (luz) e a noite (obscuridade).
 
            3.ª) No que diz respeito aos recursos expressivos, temos:
– o abandono do discurso descritivo, predominante na 1.ª parte;
– o emprego exclusivo dos discursos de 1.ª e 2.ª pessoas, marcando a relação do sujeito com a mulher amada;
– a utilização da interjeição e da exclamação, marcando o carácter subjectivo (romântico) da linguagem;
– o trocadilho: “vês (...) não te vira”;
– a hipérbole e a metáfora: “Mais tristeza que a morte me causara”.
 
            4.ª) Estão presentes no poema “dois tipos de descrição”:
® Clássica:
. vocabulário e construção gramatical utilizada: latinismos cadentes (harmoniosos), Zéfiros (ventos brandos do ocidente), Amores (filhos de Vénus e Marte), ósculos ardentes (beijos intensos), inocentes (inofensivas), vagas (errantes, vagueantes);
. uso do pretérito mais-que-perfeito simples (vira, causara) equivalente ao imperfeito do conjuntivo (se eu não te visse) e ao condicional simples (mais tristeza me causaria).
 
® Romântica:
. pontuação;
. abundância de exclamações (vv. 1-2, 5-6, 6-7, 12, 13);
. interjeição “ah” (v. 13);
. vocabulário próprio da sensibilidade romântica: “o rouxinol suspira” (v. 9), “morte” (v. 14).
 

Características


 
Linguagem e recursos poético-estilísticos
 
            A forma do poema (nível fónico) é nitidamente clássica: um soneto, com versos decassilábicos heróicos, de ritmo binário, combinados com alguns sáficos (vv. 2, 9-12), em que o ritmo surge mais entrecortado; rima interpolada, emparelhada e cruzada, segundo o esquema ABBA / ABBA / CDC / DCD, consoante (“pastores”/”flores”), grave ou feminina (“cadentes”/”sentes”), pobre (“pastores”/”flores”) e rica (“cadentes”/”sentes”). Observem-se também os exemplos de transporte nos versos 3-4, 5-6, e as aliterações em pl (v. 7) a sugerir o voo das borboletas e em s e t no verso 11 a sugerir o ruído do voo da abelha.
 
            A nível morfossintáctico, os verbos encontram-se maioritariamente no presente a traduzir um quadro estático, observado simultaneamente pelo emissor e pelo receptor. Os verbos, no geral intransitivos, revestem-se do aspecto durativo, a traduzir a durabilidade das acções e contrastam com os transitivos dos últimos dois versos a marcar a súbita mudança de sensações. O imperativo (“Olha”, “Vê”) traduz o convite do sujeito poético à amada para contemplar a Natureza harmoniosa, alegre e suave. Neste contexto ainda, a presença do verbo “ver” é muito significativa. Além de conferir visualismo à mensagem do poema, remete para a noção de que o amor nasce da visão e de que a presença da amada é necessária para que a natureza tenha valor para os amantes.
            É notório também um tom coloquial no poema, traduzido pela função fática e apelativa da linguagem veiculadas pelo vocativo (“Marília”), pela frase interrogativa “não sentes?”, pelos imperativos “olha” (repetido três vezes), “vê” e pelo designativo “ei-las”. O tom coloquial é também acentuado pela função expressiva patente nas exclamações. Na realidade, o poema é um monólogo que parece um diálogo. As frases exclamativas/apelativas e interrogativas traduzem também um intimismo afectivo e sensorial entre o sujeito poético que fala e a sua muda interlocutora.
            Os substantivos (o Tejo a sorrir, os ventos brandos, as flores, as abelhas, as flautas e os pastores) e os adjectivos traduzem um quadro bucólico, uma natureza harmoniosa e idílica – “locus amoenus”; “aurea mediocritas”.
            O vocabulário é latinizante (cadentes, ósculos, vagas, Zéfiros), traduzindo a erudição do poeta e a sua formação clássica. A anáfora “Ora (...) / Ora...” evidencia os dois movimentos opostos da abelha; “Olha (...) / Olha” traduz o convite a Marília.
            A conjunção adversativaMas” e a interjeiçãoah” marcam a mudança da 1.ª para a 2.ª parte numa relação de oposição e prenunciam o sofrimento do sujeito lírico perante a ausência da mulher amada.

            A nível semântico, a apóstrofe inicial marca a importância do destinatário da mensagem.  Na descrição da Natureza harmoniosa,  suave,  alegre e idílica,  destacam-se as sensações visuais, tácteis e auditivas, as personificações (Tejo, Zéfiros, Amores), traduzindo a subjectividade do discurso e a sua formação clássica, e outras nos versos 9 e 11, as exclamações a traduzirem a exaltação da alegria festiva da Natureza – a exclamação do verso 13 traduz a situação dolorosa hipotética – e as interrogações, sugerindo o tom coloquial da linguagem.
            O diminutivo abelhinha sugere carinho.
            Realcem-se ainda as hipérboles “borboletas de mil cores”, “ósculos ardentes”, “Mais tristeza que a noite me causara” (comparação); o trocadilho “vês (...) não te vira...” (v. 13).

 
Intertextualidade: “Olha, Marília...” e “A fermosura desta fresca serra” (Camões)
 
Estrutura interna
  
1.ª parte (2 quadras) – Descrição da Natureza, concretizada (através da acumulação de frases nominais) de uma forma mais objectiva que no caso do soneto de Bocage. O quadro aponta também para a Natureza de tipo clássico (“locus amoenus”): beleza, formosura, frescura, verdura, calma.
 
2.ª parte (2 tercetos) – Relação do sujeito com a amada e consequente visão da Natureza: sem a presença dela, o sujeito poético fica insensível à beleza da Natureza.
 
Elementos que compõem a paisagem
 

Olha, Marília, as flautas dos pastores

A fermosura desta fresca serra

Flautas dos pastores
O Tejo
As flores
As plantas
As borboletas
O arbusto
O rouxino
A abelhinha
A serra
Os castanheiros
Os ribeiros
O mar
A terra
O esconder do so
Os gados
As nuvens

locus amoenus

locus amoenus

 

Diferenças entre os sonetos

 

         

                                   

sonetos

 
elementos
 
Bocage
 
Camões

Elementos se-lecionados
. espaço mais restrito
. presença de elementos humanos
. rouxinol  como  elemento  perturbador
 
. espaço mais alargado: presença dos quatro elementos primordiais ® terra, água, ar e fogo
 
Qualidades da natureza
 
. harmoniosa e luminosa: destaque para o convite ao amor
. formosura, calma, variedade e raridade: destaque para a beleza

 
 
Adjectivação
 
 
 
 
. cadentes, ardentes, vagas, alegre, clara
 
. menor quantidade  de adjectivos: destaque para o sentimento do amor
. fresca, verdes, manso, rouco, estranha, derradeiros, brandos, rara, mor
 
. maior quantidade de adjectivos; destaque para as características dos objectos, à maneira petrarquista
 
Pontuação

. exclamações, interrogação: destaque para a subjectividade

. vírgula, ponto e vírgula, ponto final: discurso mais objectivo


Funções da linguagem
. apelativa (predomínio), expressiva e poética: mensagem mais voltada para o destinatário; domínio do sentimento

. poética e emotiva: mensagem mais voltada para a realidade e para o sujeito poético; domínio da razão

 
Semelhanças entre os sonetos
 


sonetos

 
elementos
 
Bocage
 
Camões
 
Construção do quadro
 
. dinâmico, com evidência para as acções das pessoas, dos entes mitológicos e das aves

. estático: frases nominais, substantivação do infinitivo verbal; forte visualismo da serra ao mar

 
Cenário

. locus amoenus e leve presença do locus horrendus (o suspirar do rouxinol)

. locus amoenus e leve presença do locus horrendus (o rouco som do mar)

 


Aliterações

 

. 2.º verso: monossílabos, dissílabos e trissílabos; quase onomatopaico, a sugerir o som próprio das flautas; a repetição dos fonemas /pl/ (v. 7) a sugerir o voo das borboletas; a repetição do fonema /s/ (v. 11) a sugerir o ruído do esvoaçar da abelha

 . a repetição do fonema /f/ (v. 1) a sugerir frescura; repetição do fonema /t/ (v. 4) a sugerir uma afirmação segura

Personificações

. do Tejo, dos Zéfiros, dos Amores e do rouxinol

. animização dos ribeiros e das nuvens

Anáforas

. Olha, Olha; Ora, Ora

. Sem ti. Sem ti

 
Elementos ro-mânticos
. a natureza é um estado de alma
. a pontuação subjectiva e livre
. a  presença do  rouxinol  e da noite
. o amor sensual

. a natureza é um estado de alma

 
Sentimentos
. amor (mais sensual)
. alegria / tristeza
. amor
. tristeza
 
 
Síntese
SEMELHANÇAS
            1. Nível temático
 
. Descrição da Natureza: “locus amoenus”.
. A personificação dos elementos descritos.
. Relação sujeito poético / mulher / Natureza (de influência petrarquista).
 
            2. Nível formal
 
. Uso do soneto e do verso decassilábico.
. Equilíbrio na construção frásica de cariz latinizante.
. O processo antitético.
DIFERENÇAS
            1. Nível temático
 

Bocage

Camões

. Descrição da Natureza apoiada numa valorização da sensualidade e da subjetividade.
. Convite ao amor, evidenciando a sua componente sensual e reforçando o papel ativo do sujeito poético na relação amorosa.
. Descrição objetiva da Natureza.
 
. O sujeito poético é um ser passivo face ao amor, totalmente dependente da amada.
 
            2. Nível formal
 
. Tom oralizante criado através do emprego de:
            – imperativos;
            – exclamações;
            – diminutivos;
            – interrogações.
 
            As características diferenciadoras constituem as marcas românticas da poesia de Bocage.

Análise do poema "Magro, de olhos azuis, carão moreno", de Bocage

Tema: autorretrato do sujeito poético.
 
 
Assunto: descrição física e psicológica que o sujeito lírico faz de si próprio.
 
 
Estrutura interna
 
1.ª parte (2 quadras + 1.º terceto) – Autorretrato 

NOTAS:
 
        1.ª) O autorretrato está construído da seguinte forma:
– 1.ª estrofe ® retrato físico: cara, corpo;
– 2.ª/3.ª estrofes ® retrato psicológico.
 
        2.ª) Nos primeiros quatro versos, deparamos com uma deformação caricatural dos traços característicos do sujeito poético, que confere ao texto um efeito humorístico dado também pelo recurso a vocabulário corrente. É como se Bocage se estivesse a ver ao espelho e se risse de si próprio, do seu aspecto, do seu modo de ser e até dos seus dotes poéticos. Bocage demonstra, assim, a sua predileção por uma estética da espontaneidade, do improviso, da autoconfissão natural. Ao inspirar-se em si próprio, o poeta introduz uma nova temática e torna mais leve e fluente a linguagem, agora mais próxima da oralidade.

        3.ª)Recursos estilísticos:
enumerações;
– lítote: “e não pequeno” (v. 4);
– adjectivação;
– comparação (v. 6);
– metonímia: “furor”, ”ternura” (v. 6);
– hipérbole: ”Mil deidades” (v. 9);
– metáfora e anteposição do adjectivo: ”Devoto incensador” (v. 9);
– reiteração (vv. 9-10).
 
 
 2.ª parte (2.º terceto) – Síntese e designação do retratado:
 
. Identificação do sujeito poético com o próprio poeta: “Eis Bocage...” (v. 12).
 
. Síntese da caracterização do sujeito:

NOTA: Este soneto permite descobrir algumas das razões da infelicidade do poeta:
                – o temperamento irascível;
                – a entrega desmedidade a paixões amorosas, a prazeres mundanos (vida de boémia).


Recursos poético estilísticos
 
            1. Nível fónico
 
            Estamos na presença de um soneto em versos decassílabos constituído por duas quadras e dois tercetos, num total de catorze versos. A rima é emparelhada e interpolada nas quadras (ABBA) e cruzada nos tercetos (CDC / DCD), consoante (“moreno“/“pequeno”), grave ou feminina (“moreno”/“pequeno”), pobre (“moreno”/“pequeno”) e rica (“ternura”/“escura”). O ritmo é predominantemente binário (v. 2), alternando com o ritmo ternário (v. 1). O transporte está exemplificado nos versos 9-10 e 13-14.
 
 
            2. Nível morfossintáctico
 
            Os adjectivos enunciam características físicas e psicológicas referenciadas sempre em substantivos que designam um órgão ou uma parte do corpo. Bocage utiliza um vocabulário corrente que confere um efeito prosaico e humorístico à linguagem e nos transmite a deformação caricatural dos traços físicos e morais.
            Os verbos são escassos, com predomínio do pretérito perfeito, do gerúndio e do presente.
            Destaque também para os advérbios, nomeadamente o advérbio de modo bem a expressar, conjuntamente com o adjectivo servido, a grandeza dos pés; de exclusão somente a denunciar o anticlericalismo de Bocage e de designação eis a anunciar o retratado de forma algo majestosa.

 
            3. Nível semântico
 
            Existem várias perífrases:
– “Bem servido de pés” a significar que tem os pés grandes;
– “Triste de facha”, a expressar a sua fealdade.
– “Incapaz de assistir num só terreno”, denunciadora da sua inconstância amorosa, tal como outra no verso 9:
– “Devoto incensador de mil deidades”.
            Ainda na 1.ª estrofe é de realçar a antítese e a lítote “Nariz alto no meio, e não pequeno”, sugerindo as dimensões caricaturais do nariz.
            A comparação do verso 6 – “Mais propenso ao furor do que à ternura” – aponta para o seu carácter violento, irascível, enquanto as metáforas dos versos 7, 8 e 9 denotam a associação entre o amor e o ciúme, a obsessão da morte (sugerida pelo adjectivo letal) e a inconstância amorosa (v. 9). Destaque ainda para a hipérbole “Devoto incensador de mil deidades”, e para a enumeração das características físicas na 1.ª quadra.

 
Características
 

Neoclássicas

 

Pré-Românticas

 
. Uso do soneto.
. Verso decassilábico.
. Vocabulário alatinado: níveas, letal, deidades.
. Hipérbatos.
 
. Retrato (do herói) romântico:
– aspecto físico estranho;
– inconstância amorosa;
– anticlericalismo;
– egotismo (culto do individualismo).
. Carácter autobiográfico do texto.

 

sexta-feira, 9 de agosto de 2024

A escola do século XIX em imagens - XI


Jean Geoffroy – Aula da escola primária (1889)

    A escola que hoje consideramos tradicional, por vezes mesmo retrógrada e ultrapassada, acompanhou o processo de construção e afirmação da cultura e da civilização ocidentais. Períodos em que o acesso à escolarização aumentou, como a Baixa Idade Média, o Renascimento ou o Iluminismo, foram também épocas de crescimento económico e florescimento cultural. Uma das razões que explica, ainda hoje, o relativo atraso económico da Europa meridional é a persistência, nalguns casos até ao final do século XX, de elevadas taxas de analfabetismo. Sem o contributo da escola tradicional, que hoje se contesta a favor de ensinanças domésticas ou de míticas “comunidades de aprendizagem”, e independentemente das suas transformações presentes e futuras, nunca teríamos alcançado os padrões de vida da sociedade industrial e tecnológica em que hoje vivemos, duplicado ou triplicado a esperança média de vida, afirmado a democracia e as liberdades individuais, massificado o acesso à saúde, à cultura, à arte e ao conhecimento em geral.
    O quadro de Geoffroy reflete uma realidade recente que o pintor testemunhou: a implementação de leis (1882-83) que impuseram a escolaridade obrigatória em França. Foi uma aposta decidida do novo regime republicano – em Portugal também assumida a partir de 1910, embora com resultados bem mais limitados – que trouxe mais crianças às escolas, obrigando a investir na abertura de novas salas e na formação de mais professores. Igualmente importante foi o fomento da rede pública das chamadas escolas maternais, aptas a receber as crianças em idade pré-escolar: um apoio social fundamental que em Portugal, quase 150 anos depois, e com uma baixíssima natalidade, ainda não conseguimos assegurar plenamente a todas as famílias trabalhadoras!
    O objetivo da escolaridade obrigatória era, além do combate ao flagelo do trabalho infantil, criar novas gerações mais qualificadas e instruídas, mais aptas tanto para ingressar no mercado de trabalho cada vez mais exigente como para participar de forma consciente e ativa na vida política democrática. Num tom subtilmente propagandístico, o pintor mostra-nos a sala de aula como um espaço ordenado e organizado quase na perfeição. Distribuídos ao longo de quatro carteiras corridas, vemos alunos atentos e empenhados na realização das tarefas escolares, sob orientação e vigilância da professora. E não se diga que esta é uma escola retrógrada e ultrapassada: o que aqui vemos são pedagogias ativas em plena execução, com os alunos a construírem ativamente o seu próprio saber, aplicando conhecimentos e desenvolvendo competências!…

Análise da cena 2 do ato V de Hamlet

    A cena final de Hamlet é um festival de sangue e morte. São várias as personagens que perdem a vida e de diversas formas: veneno, espada, execução. As causas de tal mortandade radicam no desejo de vingança e de justiça. A obsessão pela vingança faz recair a morte sobre todos os diretamente envolvidos.
    Nos momentos que antecedem o duelo, Hamlet parece em paz. Embora sentindo uma certa tristeza no coração, aparenta estar reconciliado com a ideia da morte e ter afastado os receios relativos ao sobrenatural. Por outro lado, o desejo de ser perdoado por Laertes confirma essa mudança operada no príncipe. Até aqui, vivia centrado em si e na sua família – a morte do pai, a vingança da sua morte, a mãe –, porém agora parece sentir empatia pelos outros. No entanto, acaba por nunca assumir a responsabilidade pela morte de Polónio, mas a morte de Ofélia tê-lo-á levado a refletir e a agir de outra forma.
    Nesta cena derradeira, finalmente consuma a sua vingança e mata Cláudio, porém essa morte não deriva de qualquer plano traçado, mas enquanto reação às palavras acusatórias de Laertes, que o denuncia como o autor do envenenamento da espada e do vinho. Assim sendo, o único ato de vingança praticado por Hamlet resulta de novo momento impulsivo, tal como tinha sucedido com o assassinato de Polónio. Ambos os atos resultam de fúria momentânea, de impulso, o que significa que acaba por nunca superar a sua indecisão e as suas hesitações relativamente ao consumar da vingança. Ele não tem tempo para pensar, antes é empurrado para agir, forçado a responder aos acontecimentos. A decisão de aceitar o desafio de esgrima pode ter sido estratégica, mas também entendida como um ataque ao seu orgulho (afinal, Cláudio aposta na vitória de Laertes), todavia o que é certo é que Hamlet cai na armadilha montada pelo tio e por Laertes. Novamente, o príncipe não age, reage.
    De facto, Hamlet aceita o desafio, mas não sem expressar algumas reticências a Horácio, que o aconselha a desistir, porém o príncipe considera uma desistência um gesto irracional. Nesta sequência, interioriza a possibilidade de morrer, mostrando que está “pronto” para tal. Estes dados significam também que ele está bem ciente da ameaça que o confronto com Laertes representa. Além disso, as suas palavras carregadas de fatalismo e pressagiantes prenunciam a sua morte.
    O relato que faz a Horácio acerca da forma como subverteu os planos de Cláudio mostram que Hamlet é uma pessoa inteligente, astuta e manipuladora. Em simultâneo, no momento em que engana Rosencrantz e Guildenstern, está, na prática, a traí-los e a condená-los à morte, à semelhança do que estes estavam prontos para lhe fazer. Assim sendo, coloca-se ao nível dos antigos amigos, o que mostra que superou o tempo em que considerava que dois erros não faziam um acerto. Por outro lado, tudo isto vem confirmar a ideia de que abandonou grande parte das suas preocupações morais.
    O destino de Gertrudes, como não poderia deixar de ser, é igualmente a morte. Ela é vítima inconsciente dos atos do segundo marido, que não lhe eram dirigidos: sem saber, bebe o vinho envenenado que era destinado a Hamlet, seu filho. Deste modo, estamos perante novo caso de uma mulher que morre por causa da ação dos homens que fazem parte da sua vida e que a dominam. Por outro lado, os acontecimentos indiciam que a rainha não estava ciente do envolvimento de Cláudio no assassinato do rei Hamlet.
    Apesar de esse não envolvimento, morre em consequência da violência e do desejo de vingança dos homens, que parecem mover-se todos com base nesses estados de alma. Por tudo o que a peça foi narrando, parece lícito concluir que as mulheres da época eram seres infelizes que tinham as suas vidas condicionadas por homens imperfeitos e poderosos, em suma, por uma sociedade medieval patriarcal.
    Outra morte é a do próprio Hamlet, que não é heroica nem vergonhosa. Finalmente, obtém a vingança do seu pai, mas apenas conduzido a tal por circunstâncias extremas e macabras: a morte da mãe, causada, ainda que indiretamente, pelo próprio marido. A sociedade em que está inserido valoriza imenso os sentidos da honra e da vingança, porém o desenlace da peça permite questionar esses valores sociais. De facto, Hamlet consegue vingar pessoalmente a morte do pai, mas a que preço? As personagens centrais da obra morrem todas, à exceção de Horácio e mesmo este considera o suicídio, para acompanhar o destino do amigo príncipe, e apenas não o concretiza porque este último lhe pede que viva para contar a sua história ao mundo. Além disso, Hamlet não ascende ao trono e não governa a Dinamarca. Em vez disso, Fortinbras reaparece como um líder político e militar vencedor, racional e sensato, e reclama o trono dinamarquês. Assim sendo, de que valeram os atos e os esforços de Hamlet?
    Quando o duelo entre Hamlet e Laertes chega ao fim, este último revela o plano traiçoeiro de Cláudio, constituindo-se como um momento crucial da peça, pois o príncipe que está prestes a morrer. É também esta perceção que o leva a matar o rei, pois já não tem nada a perder. Além disso, dada a iminência da sua morte, não tem tempo para refletir sobre os seus atos, precisa de agir rapidamente. Por outro lado, as palavras finais de Laertes sugerem que a violência só leva à morte e à destruição e reconhece que ele próprio foi vítima disso e dos seus atos. De facto, ele feriu mortalmente Hamlet com a espada envenenada e acabou por lhe suceder o mesmo quando o príncipe se apossou do seu florete e o atingiu também. Deste modo, Laertes foi derrubado pela sua própria perversidade.
    Cláudio introduziu na Dinamarca a decadência e a corrupção morais, ao assassinar o próprio irmão para obter o poder. Como «prémio» adicional, desposa a antes cunhada. Porém, o modo adotado para combater essa corrupção moral – a violência extrema – acaba por resultar apenas em violência generalizada que acarreta uma sucessão de mortes: violência gera mais violência e morte gera mais morte. Será também por isso que Hamlet hesita tanto em matar Cláudio. No entanto, o desenlace consiste mesmo na morte do rei e o que resulta daí é o desmoronamento da monarquia dinamarquesa e a ascensão ao trono de um rei estrangeiro. Tal como se vê, por exemplo, no filme de animação Rei Leão, é necessário destruir totalmente o que existe, para que algo novo possa emergir. De facto, com a morte de todas as personagens ligadas ao poder, a Dinamarca está livre da corrupção, da ambição desmedida, da violência reinantes até então, pelo que está livre para um recomeço bem diferente. Horácio parece reconhecer a nova situação quando jura fidelidade a Fortinbras. A família real dinamarquesa estava marcada pela corrupção e, por isso, enfraquecida. Pelo contrário, Fortinbras representa um líder forte, carismático e capaz de restaurar a autoridade moral do Estado. Se o consegue ou não, não é assunto da peça. Note-se que o Fortinbras que surge em cena no final da peça não é o mesmo do início: antes limitava-se a agir; presentemente, pensa enquanto age. O tempo e a experiência tornaram-no uma pessoa mais sensata, ponderada e moderada. Ele mostra-se ousado, mas atencioso quando se depara com o salão cheio de corpos. Perante esse cenário, alguém tem de assumir o controlo dos acontecimentos: Fortinbras fá-lo.
    Horácio é o amigo leal de Hamlet, responsável por dar a conhecer a história do príncipe. Começa por narrar a Fortinbras o que aconteceu recentemente, começando por traçar uma visão geral dos eventos e avisa que os ouvintes irão escutar uma história prenhe de atos carnais, sangrentos e não naturais. Ora, estes termos apontam para toda a violência que teve lugar, bem como para o casamento de Gertrudes com o irmão do seu falecido marido, algo que soou aos ouvidos de Hamlet como antinatural e perturbador.
    Horácio alude também a “julgamentos acidentais” e as mortes «casuais», o que corresponde aos dados da peça, como é o caso do assassinato acidental de Polónio às mãos de Hamlet, que pensava estar a liquidar Cláudio. Por outro lado, estas palavras de Horácio têm a intenção de isentar o seu amigo de responsabilidades, o que é compatível com o desejo de o apresentar como um herói. Ou seja, ele tem consciência de que a história de Hamlet está repleta de imperfeições, porém é seu entendimento que, não obstante, merece ser celebrado.
    Curiosamente, Fortinbras, ao exigir que o corpo de Hamlet seja transportado até uma plataforma para que possa ser homenageado, está a trata-lo como um herói militar que merece ser celebrado, mas o contraste entre ambos é evidente: Fortinbras dedicou-se inteiramente à conquista da Polónia, ao passo que Hamlet se mostrou incapaz de vingar a morte do pai até ao momento derradeiro. Assim sendo, é algo irónico e incongruente que se celebre alguém tão inseguro e que duvida da sua própria pessoa como uma figura respeitável. Se Hamlet for efetivamente celebrado, é provável que o seu legado será bastante idealizado, o que quer dizer que o seu verdadeiro ser não será lembrado.
    Uma das temáticas que perpassa a peça é a oposição entre verdade e engano. Toda ela gira em torno do ato primitivo de Cláudio: o assassinato do irmão, a posse da coroa dinamarquesa e da rainha. Curiosamente, esse tema estende-se até à cena final: o rei engendrou novo esquema para garantir o seu poder. A sua morte em consequência de tal dá a sensação do fechamento de um círculo.

Resumo da cena 2 do ato V de Hamlet

    Esta é a cena final da peça e decorre no dia seguinte, no castelo de Elsinore, onde se reúnem todas as personagens centrais. Hamlet conta a Horácio como conseguir fugir do navio que o levava para Inglaterra. Embora não se sentisse um prisioneiro, acha-se confinado e decidiu libertar-se. Assim, certa noite, enquanto Rosencrantz e Guildenstern dormiam, entrou furtivamente na sua cabine e surripiou a documentação que Cláudio lhes entregara. Ao ler as cartas, descobriu que o rei pretendia a sua morte, por isso substituiu a missiva que lhe dizia respeito por outra, redigida por si imitando a caligrafia do tio, ordenando a execução imediata de Rosencrantz e Guildenstern. Depois de a selar com o sinete, colocou-a no local de onde retirara as originais. Durante o diálogo com o amigo, Hamlet lamenta ter hostilizado Laertes, pois reconhece no desejo de vingança da morte do pai do irmão de Ofélia o seu próprio. Horácio aconselha-o a agir rapidamente, pois a notícia da sua atitude relativamente a Guildenstern e a Rosencrantz não tardarão a chegar à corte.
    A conversa é interrompida pela chegada de Orsic, um cortesão tolo, que traz uma mensagem de Cláudio para Hamlet: o príncipe foi convidado para testar as suas habilidades num duelo amigável com Laertes. Orsic elogia profundamente o filho de Polónio e acrescenta que o rei apostou nele para vencer a disputa e pergunta-lhe se aceita o desafio. Apesar dos conselhos de Horácio, Hamlet concorda em lutar, confiando o seu destino a Deus.
    A corte reúne-se no salão. Os dois antagonistas cumprimentam-se, apertando as mãos, e Hamlet pede perdão a Laertes por ter assassinado o seu pai e pela dor que lhe causou e à família, porém acrescenta que as suas ações foram praticadas sob o efeito da loucura, pelo que não lhe poderão ser assacadas. Laertes aprecia o gesto, mas afirma que não o perdoará.
    Orsic entrega os floretes e ambos e Cláudio declara que recompensará o vencedor com vinho fino. O desafio tem início, Hamlet atinge o adversário e o monarca oferece-lhe vinha envenenado, porém o príncipe declina, afirmando que beberá mais tarde. O confronto prossegue e Laertes volta a ser atingido. Gertrudes, exuberante, pega na bebida para celebrar. Cláudio tenta impedi-la de beber, mas não consegue e, assim, sem saber a rainha ingere o veneno. Deste modo, mesmo que acidentalmente, o monarca é o responsável pela morte da esposa.
    Laertes sussurra que ferir o oponente com a espada envenenada é algo que perturba a sua consciência. O terceiro «round» tem início e Laertes acerta no opositor, fazendo sangue. Durante a refrega, ambos deixam cair as espadas e acidentalmente pegam na arma do outro. De seguida, Hamlet fere o adversário com a espada deste.
    A rainha cai no chão. Laertes, percebendo que foi atingido com a sua própria espada, lamenta ter sido vítima da sua própria armadilha. Gertrudes geme que a taça da qual bebeu deveria estar envenenada, chama o filho, diz-lhe que não beba o vinho e morre. Hamlet ordena de imediato que as portas do salão sejam trancadas até que o culpado seja descoberto. Laertes, às portas da morte, diz a Hamlet que a ponta da sua espada estava envenenada e que ambos vão morrer, acrescentando que o rei é o responsável pelo veneno na espada e na taça de vinho. O príncipe, furioso, atinge Cláudio com o florete envenenado e obriga-o a beber o que resta do vinho. O soberano morre. Laertes e Hamlet perdoam-se e o primeiro sucumbe. Horácio conforta o amigo e pega no vinho sobrante para o beber, mas Hamlet impede-o, rogando-lhe que viva e conte a sua história.
    Soam trombetas. Orsic entra na sala e informa o moribundo que Fortinbras regressou vitorioso da Polónia. Antes do último suspiro, Hamlet expressa o desejo de que Fortinbras seja o futuro rei da Dinamarca e morre. O líder vitorioso, acompanhado de embaixadores ingleses, entra no salão, horrorizado com a carnificina em seu redor. Um embaixador anuncia as mortes de Guildenstern e Rosencrantz. Horácio narra aos recém-chegados o que aconteceu. Fortinbras lamenta o estado a que a Dinamarca chegou e revindica para si o trono. Horácio promete-lhe o seu apoio.
    Fortinbras ordena que Hamlet seja tratado com as honras de um soldado: quatro capitães transportam o seu corpo até uma plataforma, dizendo que, se vivesse, teria sido um rei excecional. A finalizar, ordena que os soldados limpem o salão retirando os mortos, observando que a visão dos seus corpos pode ser adequada a um campo de batalha, mas não ao interior de um castelo.
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