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quarta-feira, 25 de dezembro de 2024

Caracterização de Rita Baiana

I. Retrato físico:

    Rita Baiana é uma personagem marcante do romance O Cortiço, de Aluísio Azevedo. Ela é descrita com uma beleza exuberante e sensualidade natural que capturam a atenção de todos ao seu redor.
  • Cabelos: Longos, ondulados e negros como a noite, com um brilho intenso que reflete sua vivacidade, caem como uma cascata sobre os ombros, emoldurando o seu rosto com um toque selvagem e natural. Costuma usá-los soltos ou presos de maneira despretensiosa, como quem não tem tempo a perder com formalidades, o que aumenta seu charme natural.
  • Pele: Morena e luminosa, com um tom dourado característico que reflete suas origens mestiças, exalando saúde e vitalidade. Ela tem um aspeto saudável, com um brilho que lembra o calor tropical, isto é, o brilho do sol num dia de verão.
  • Olhos: Grandes e negros, profundos e expressivos, com um brilho vivaz que transmite paixão ou malícia e ternura ou alegria, duas janelas para a sua alma calorosa e apaixonada. O olhar é magnético, capaz de cativar qualquer pessoa.
  • Corpo: Bem proporcionado, com curvas sensuais, é uma celebração da feminilidade. De facto, a sua figura reflete feminilidade e força, com quadris largos, equilibrados por ombros delicados, e uma postura confiante, formando uma silhueta que atrai olhares por onde passa. Além disso, movimenta-se com a graça de quem está em sintonia com a música do mundo, e cada passo parece uma dança, refletindo a sua ligação com o ritmo e a cultura brasileira.
  • Rosto: Oval e harmonioso, cheio de vida, com maçãs do rosto ligeiramente salientes e lábios carnudos e bem desenhados, de um vermelho natural, muitas vezes curvados formando um sorriso provocante que é, ao mesmo tempo, desafiador e convidativo.
  • Vestuário: Geralmente vestida de forma vibrante e atraente, com roupas coloridas, que refletem sua personalidade alegre e sua ligação com a cultura brasileira. Gosta de usar vestidos leves e coloridos/floridos, que destacam as suas formas e a sua naturalidade. Pequenos adornos, como brincos de argola ou pulseiras de contas, completam o visual, adicionando toques de brilho à sua aparência.
    Em suma, Rita Baiana é a personificação da vivacidade tropical, uma mulher cuja presença ilumina qualquer ambiente. Por outro lado, ela não se preocupa em seguir padrões de beleza impostos, daí que a sua beleza venha da sua autenticidade e da paixão que coloca em tudo o que faz. A presença da personagem  é magnética e envolvente e o seu jeito desinibido e alegre faz dela o centro das atenções, seja ao dançar numa roda de samba ou ao encantar com sua conversa espirituosa. É uma mulher cuja beleza transcende o físico, enraizada na sua energia, liberdade e paixão pela vida.

II. Caracterização social

  1. Origem e cultura: Rita Baiana é uma mulher de origem mestiça, representando o sincretismo cultural brasileiro, especialmente as influências afro-brasileiras. Ela incorpora uma sensualidade e uma alegria de viver que estão profundamente conectadas à cultura popular e ao ambiente tropical do Rio de Janeiro da época. A sua ligação com a música, especialmente o samba e a dança, destaca a importância da cultura afro-brasileira como elemento de resistência e identidade no contexto social do século XIX.
  2. Papel na comunidade do cortiço: Rita é uma figura central no cortiço. A sua casa é frequentemente palco de festas, onde ela canta, dança e atrai as atenções com o seu carisma. Esses momentos de celebração ajudam a solidificar o sentimento de comunidade entre os moradores, ao mesmo tempo que revelam as tensões sociais e económicas presentes no cortiço. Rita simboliza a liberdade e a expressão, mas também é alvo de fofocas e críticas, refletindo o moralismo da sociedade da época.
  3. Relações interpessoais: Rita é uma mulher independente e assertiva, características que fazem com que se destaque num ambiente marcado por relações patriarcais. A relação que mantém com Firmo é caracterizada pela paixão e por conflitos, representando um tipo de ligação intensa e volátil comum entre as camadas populares. Ela também exerce uma influência magnética sobre outros homens no cortiço, como Jerónimo, despertando desejos que acabam por alterar a dinâmica entre as personagens.
  4. Representação social: Enquanto personagem, Baiana é um símbolo da miscigenação brasileira e da tensão entre as diferentes classes e culturas. Ela desafia padrões de comportamento feminino impostos pela sociedade da época ao viver com espontaneidade e autonomia. No entanto, a sua sexualidade e comportamento livre tornam-na alvo de comentários e julgamentos, revelando os preconceitos e a hipocrisia presentes no ambiente do cortiço.
  5. Conexão com o espaço do cortiço: Rita é uma extensão do cortiço e vice-versa. O empreendimento é um espaço de convivência intensa, repleto de conflitos e solidariedade, e Rita reflete essas características com a sua personalidade vibrante e contraditória. Ela tanto é uma mediadora social, conectando pessoas através da festa e da música, quanto um elemento de discórdia, expondo as tensões latentes entre as personagens.
  6. Crítica Social: A figura de Rita Baiana também serve como instrumento de crítica social de Aluísio Azevedo. Através dela, o autor expõe as desigualdades e os preconceitos estruturais da sociedade brasileira do século XIX, ao mesmo tempo que celebra a força e a resistência cultural das classes populares.

                Em suma, Rita Baiana, no plano social, é muito mais do que uma personagem; ela é um microcosmo do Brasil da época. Através da sua alegria, sensualidade e autenticidade, representa a riqueza e a complexidade cultural do país, mas também evidencia as desigualdades e os conflitos sociais que definem o ambiente em que vive.

 

III: Retrato social

 

  1. Espontaneidade e alegria de viver: Rita Baiana é uma mulher espontânea, que vive o momento presente com intensidade. A sua personalidade é marcada por uma alegria vibrante, que contagia todos ao seu redor. Essa atitude despreocupada reflete uma determinada visão de mundo: ela não se prende às convenções sociais ou morais que a maioria dos personagens tenta seguir.
  2. Paixão e intensidade: Uma característica marcante de Rita é a sua natureza apaixonada. Ela vive as emoções de maneira intensa, seja na alegria das festas que organiza, seja nos conflitos que marcam a relação com Firmo. Essa intensidade torna-a magnética, mas também a coloca em situações de tensão e confronto.
  3. Independência e autonomia: Rita é independente no que respeita à sua maneira de pensar e agir. Embora viva num ambiente fortemente patriarcal, não se sujeita às expectativas de submissão ou decoro que a sociedade da época espera das mulheres. Ela age de acordo com os seus desejos e necessidades, mesmo que isso vá contra as normas.
  4. Manipulação e sedução: Com uma personalidade magnética, Rita tem consciência do impacto que exerce sobre os outros, especialmente os homens. Embora isso não a defina como essencialmente manipuladora, sabe usar o seu charme e sensualidade para conseguir o que deseja ou para afirmar a sua posição num espaço onde as mulheres são frequentemente subjugadas.
  5. Impulsividade e falta de reflexão: Se é verdade que a paixão a define, Rita pode ser impulsiva e pouco reflexiva nas suas ações. Essa impulsividade, muitas vezes, coloca-a em situações de conflito e perigo, como a sua relação tumultuada com Firmo e a capacidade de gerar rivalidades entre outras personagens.

Características Morais

  1. Liberdade moral: Rita Baiana não se apega aos padrões morais rígidos da sociedade da época. Para ela, a vida deve ser vivida com liberdade, alegria e prazer, daí que desafie as normas conservadoras, representando uma visão do mundo mais flexível e moderna.
  2. Fidelidade às próprias emoções: Ela age de forma autêntica e não tenta esconder ou reprimir os sentimentos. Se ama, ama intensamente; se odeia, expressa o seu descontentamento sem hesitação. Essa autenticidade pode ser vista como uma virtude moral, mas também a expõe a críticas e conflitos.
  3. Ambiguidade moral: Rita não é um modelo de virtude segundo os padrões tradicionais. Ela provoca rivalidades, não hesita em usar a sua influência e poder de sedução para atingir objetivos, e, em muitos momentos, parece indiferente às consequências dos seus atos. Essa ambiguidade moral torna-a uma personagem realista e humana, cheia de contradições.
  4. Empatia e solidariedade: Apesar da sua postura independente, Rita demonstra empatia e solidariedade com os outros moradores do cortiço, especialmente nas festas e momentos de celebração. É uma figura que une as pessoas, criando laços de convivência num espaço marcado por tensões sociais e económicas.
  5. Desafiante de convenções: Rita é, moralmente, uma rebelde. Enquanto tal, desafia as normas de género e comportamento feminino da época, recusando submeter-se à passividade ou ao silêncio esperado das mulheres, o que lhe vale a admiração de uns e a crítica de outros, acabando por se tornar uma espécie de espelho dos dilemas sociais da época.

                Em suma, Rita Baiana é, ao mesmo tempo, um símbolo de liberdade e um retrato dos conflitos do seu tempo. A sua alegria contrasta com os momentos de tensão e agressividade que pautam as suas relações, especialmente com Firmo. A sua independência é admirável, mas a impulsividade coloca-a em situações problemáticas. A liberdade moral desafia padrões, mas também a torna alvo de julgamento por parte dos outros.

                Rita Baiana é uma personagem psicologicamente rica e moralmente ambígua. Ela representa a força da liberdade e da autenticidade num mundo opressor, especialmente para as mulheres, mas também os desafios e conflitos que acompanham quem vive à margem das expectativas sociais. Aluísio Azevedo constrói-a como uma mulher de paixões intensas e de espírito indomável, cujo retrato psicológico e moral a torna uma das personagens mais marcantes de O Cortiço.

 

IV. Relação com as outras personagens

 

1. Rita Baiana e Firmo

                A relação entre Rita Baiana e Firmo é marcada por uma paixão intensa e conflituosa. Firmo, um capoeirista de espírito violento e possessivo, sente-se ameaçado pela independência e sensualidade de Rita. Apesar disso, ambos compartilham momentos de cumplicidade e desejo ardente, vivendo uma relação carregada de química, mas também de explosões emocionais.

  • Dinâmica de poder: Firmo tenta exercer controle sobre Rita, mas ela constantemente desafia a sua autoridade, o que gera conflitos frequentes, refletindo uma luta entre o machismo e a independência feminina.
  • Paixão destrutiva: Apesar do magnetismo que existe entre os dois, a relação é tumultuosa, pautada por momentos de ciúme, violência e reconciliação, simbolizando a instabilidade das relações amorosas no cortiço.

2. Rita Baiana e Jerónimo

                Jerónimo, um português trabalhador e inicialmente moralista, é profundamente afetado pela presença de Rita Baiana. Ele, que representava os valores europeus de disciplina e recato, é atraído pela sua energia vibrante e pela sensualidade tropical, o que o leva a uma transformação radical.

  • Símbolo de transformação: Rita desperta em Jerónimo uma paixão arrebatadora que desafia os seus valores iniciais, levando-o a abandonar a esposa, Piedade, e a aproximar-se do estilo de vida do cortiço.
  • Conflito gerado: O interesse de Jerónimo por Rita exacerba a rivalidade com Firmo, culminando em tragédias que expõem o lado violento e instintivo das personagens.
  • Impacto psicológico: A relação evidencia o poder de Rita como uma força que transcende padrões culturais e morais, enquanto também reflete o impacto da cultura brasileira sobre os imigrantes.

3. Rita Baiana e Piedade

                A relação entre Rita Baiana e Piedade é marcada pela tensão e contraste. Piedade, a esposa de Jerónimo, representa os valores tradicionais da moralidade europeia e o papel submisso da mulher na sociedade patriarcal.

  • Contraste cultural: Enquanto Rita é livre e desinibida, Piedade é recatada e emocionalmente dependente de Jerónimo. Esse contraste acentua o impacto da relação entre ambos e a crise de identidade de Piedade.
  • Rivalidade implícita: Apesar de não haver confrontos diretos entre as duas, a presença de Rita destrói a estabilidade emocional e a vida conjugal de Piedade, tornando-a uma rival indireta.

4. Rita Baiana e os moradores do cortiço

                Rita Baiana exerce uma influência coletiva sobre os moradores do cortiço: é um ponto de união, mas também de conflito, dependendo das circunstâncias.

  • Figura central nas festas: Rita organiza festas animadas e danças que promovem a integração entre os moradores, criando momentos de alegria e descontração no ambiente tenso do cortiço.
  • Objeto de admiração e mexericos: A sua sensualidade e independência fazem dela uma figura admirada por uns e criticada por outros, especialmente pelas mulheres mais conservadoras, que veem no seu comportamento uma ameaça aos valores tradicionais.
  • Catalisadora de tensões: A sua presença amplifica os conflitos entre personagens masculinas, como Jerónimo e Firmo, e entre as mulheres, que a invejam ou reprovam sua conduta.

5. Rita Baiana e o cortiço (como espaço coletivo)

                Rita Baiana não se relaciona apenas com os indivíduos, mas também com o próprio ambiente do cortiço, sendo uma representação viva da sua essência.

  • Espelho do cortiço: Assim como o cortiço é um espaço de miscigenação cultural, contrastes e conflitos, Rita também encarna essas características. A sua vivacidade, contradições e liberdade refletem a dinâmica caótica e vibrante do lugar.
  • Contribuição para a identidade do espaço: Rita transforma o cortiço num ambiente de celebração cultural, com festas e música, mas também num espaço de tensões, reforçando a narrativa de Aluísio Azevedo sobre as forças sociais em jogo naquele microcosmo.

 

                As relações de Rita Baiana com as outras personagens de O Cortiço não são apenas interações individuais, mas também representações simbólicas de questões sociais, culturais e psicológicas. A sua sensualidade e liberdade de espírito provocam admiração, desejo, inveja e conflito, desestabilizando estruturas tradicionais e expondo as fragilidades das relações humanas. Rita é, ao mesmo tempo, um catalisador de mudança e uma figura de resistência contra as normas impostas, fazendo dela um dos principais motores da trama e uma personagem inesquecível.

 

V. Representatividade social

 

1. Representatividade Cultural

                Rita Baiana é a personificação da cultura afro-brasileira e tropical, contrastando diretamente com os valores europeus representados por personagens como Jerónimo e Piedade.

  • Símbolo da miscigenação: A origem mestiça reflete a realidade do Brasil do século XIX, um país marcado pela convivência (e conflitos) entre diferentes «raças» e culturas.
  • Ligação à cultura popular: Rita está profundamente ligada à música, dança e festas, elementos que representam a riqueza e vitalidade da cultura brasileira, especialmente as influências africanas.
  • Contraste com o estrangeiro: A energia vibrante e a sensualidade contrapõem-se à rigidez e à contenção dos valores europeus, sendo um agente de transformação, como, por exemplo, na mudança de Jerónimo.

2. Representatividade Feminina

                Rita Baiana é uma mulher que desafia os padrões de comportamento feminino impostos pela sociedade patriarcal do século XIX.

  • Mulher independente: Numa época em que se esperava que as mulheres fossem submissas e moralmente irrepreensíveis, Rita age de acordo com os próprios desejos e emoções. Ela não é definida por um homem ou pelo papel numa família.
  • Figura de resistência: Rita desafia o moralismo conservador dos moradores do cortiço, recusando submeter-se às críticas ou aos julgamentos que recebe por causa do seu comportamento livre.
  • Contradição de papéis femininos: Enquanto mulheres como Piedade representam a submissão e a fragilidade emocional, Rita é o oposto: forte, autêntica e disposta a viver conforme as próprias regras.

3. Representatividade Social

                Rita Baiana é uma representação vívida da classe trabalhadora e das camadas populares, inserida no contexto do cortiço como um microcosmo da sociedade brasileira.

  • Figura comunitária: Rita é central na vida social do cortiço, organizando festas e unindo os moradores em momentos de celebração.
  • Crítica social: A sua figura ilustra as tensões e hipocrisias da sociedade da época. Apesar de ser admirada pela beleza e alegria, também é alvo de preconceitos e julgamentos morais, evidenciando as contradições da convivência no cortiço.
  • Símbolo da luta de classes: Enquanto outras personagens, como João Romão, aspiram a subir na escala social, Rita aceita a sua condição, vivendo plenamente dentro da realidade do cortiço, mas sem ser submissa a ela.

4. Representatividade no contexto do Naturalismo

                Dentro da estética naturalista que permeia O Cortiço, Rita Baiana é uma representação do instinto, do desejo e da força vital.

  • Exposição dos instintos humanos: Age impulsivamente, seguindo as suas emoções e desejos, alinhando-se com a visão naturalista de que o ser humano é regido por forças instintivas e biológicas.
  • Personificação do meio: O cortiço é um espaço de exuberância e caos, e Rita reflete essas características, sendo tanto um produto quanto um símbolo do ambiente em que vive.
  • Relação com o Determinismo: Através de Rita, Aluísio Azevedo ilustra o modo como o meio social e cultural influencia o comportamento humano, mostrando que as suas ações são moldadas pelas condições de vida no cortiço.

5. Representatividade como agente de transformação

                Rita Baiana desempenha um papel transformador no romance, especialmente em relação às personagens masculinas, como, por exemplo, Jerónimo.

  • Disrupção cultural: A sua presença provoca uma rutura nos valores tradicionais europeus representados por Jerónimo, levando-o a abandonar a sua postura rígida e a entregar-se à paixão e ao estilo de vida do cortiço.
  • Catalisadora de conflitos: Rita é o centro de tensões emocionais e sociais, como a rivalidade entre Jerónimo e Firmo, o que move a trama e expõe os dilemas morais e sociais das personagens.

6. Representatividade no contexto do Brasil oitocentista

                Rita Baiana, enquanto figura mestiça e representante da cultura popular, é um reflexo das contradições do Brasil do século XIX.

  • Símbolo da brasilidade: Ela encapsula os elementos que definem a identidade nacional – a miscigenação, a alegria, a sensualidade, mas também a precariedade e a marginalização.
  • Crítica às desigualdades: A sua posição no cortiço e a forma como é tratada refletem as desigualdades raciais, de género e de classe que estruturavam (e ainda estruturam) a sociedade brasileira.

 

                Em suma, Rita Baiana transcende a sua condição de personagem para se tornar um símbolo dentro da obra. Ela representa o Brasil mestiço, vibrante e contraditório, mas também as tensões sociais e culturais da época. Como mulher, desafia os padrões impostos, enquanto membro da classe popular, expõe as desigualdades, e, como figura cultural, celebra a riqueza da identidade brasileira. Aluísio Azevedo usa Rita para ilustrar as complexidades da vida no cortiço, tornando-a uma peça central na crítica social e no retrato coletivo do romance.

Caracterização de Miranda

    Miranda, uma das personagens de O Cortiço, é o típico comerciante português cuja descrição física reflete o seu estatuto social, caráter e contexto histórico. Embora Aluísio Azevedo não aprofunde o seu retrato físico, os traços destacados ao longo do romance ajudam a compor a imagem de um homem representativo da burguesia em ascensão na época.

I. Traços Físicos:
 
  1. Estatura Mediana: Miranda é descrito como um homem de porte médio, sem traços que o distingam no que diz respeito à altura ou imponência. A sua presença física está mais ligada à seriedade do que à força ou à beleza.
  2. Fisionomia séria e controlada: Ele apresenta um semblante grave, com feições alinhadas com a sua personalidade rígida e metódica. Aa expressão facial tende a ser severa, indicando preocupação constante com as aparências e o status social.
  3. Traços europeus: Como imigrante português, Miranda possui características típicas da etnia lusitana, como, por exemplo, pele clara e traços que não são descritos como belos, mas sim comuns e adequados ao seu estatuto de comerciante.
  4. Cabelo bem tratado: Embora o romance não se detenha na descrição específica do cabelo, pode deduzir-se que tem uma aparência limpa e cuidada, em consonância com a preocupação com a imagem pública.
  5. Postura rígida e formal: O seu comportamento e a sua postura refletem um homem que valoriza o autocontrole e a disciplina e que tende a exibir uma postura ereta, denotando seriedade e respeito.
  6. Vestuário elegante: Miranda veste-se de forma sóbria e alinhada, utilizando roupas que simbolizam a sua posição social como comerciante burguês, mas sem ostentação. Essa escolha reflete a tentativa de ser reconhecido como um homem respeitável e bem-sucedido.
  7. Físico não atlético: O romance não contém grandes referências a atributos físicos que sugiram vigor ou força, o que indicia que Miranda não é um homem de trabalho físico, mas, sim, um indivíduo dedicado à vida comercial e ao mundo das relações sociais.

                Em suma, a aparência da personagem está intimamente ligada à sua busca por respeitabilidade e ascensão social. Ele é o retrato do português típico da época, que migra para o Brasil em busca de oportunidades e constrói a sua identidade em torno do trabalho e da moral burguesa. Esses traços físicos, embora simples, servem para reforçar a sua personalidade e o contraste com outras personagens do romance, como João Romão, mais brutal e ambicioso. Assim, a sua figura física não é chamativa, mas funcional, coerente com a mensagem naturalista da narrativa, que utiliza o físico das personagens como extensão das suas condições sociais e psicológicas.

 
II. Retrato social

1. Classe social e ocupação profissional:
  • Miranda é um comerciante português bem-sucedido, representante da pequena burguesia. Ele é proprietário de um armazém, o que lhe garante uma posição económica estável e distingue-o socialmente no bairro onde vive.
  • A atividade profissional reflete a figura do imigrante português que enriquece por meio do comércio, um estereótipo frequente na literatura da época.
2. Aspiração à ascensão social:
  • Um dos traços mais marcantes de Miranda é a constante preocupação que manifesta em manter e elevar o seu status social. Assim, procura afastar-se da rusticidade e vulgaridade que percebe nos vizinhos, como João Romão, e almeja ser reconhecido como um homem respeitável e distinto.
  • Para reforçar essa imagem, Miranda valoriza uma vida organizada e pautada pelas normas da sociedade burguesa.
  • No entanto, embora se situe, socialmente, num patamar superior ao dos operários e moradores do cortiço, Miranda não ocupa um lugar elevado na hierarquia social. Ele sente-se desconfortável ao perceber que, mesmo sendo proprietário e comerciante, a sua posição é precária em comparação com os verdadeiros ricos ou com os aristocratas que tenta imitar.
3. Casamento como ferramenta de ascensão social:
  • A relação com Estela, sua esposa, é uma extensão da sua estratégia social. De facto, casou-se com ela por interesse, visando consolidar a sua respeitabilidade, mesmo que o casamento seja infeliz. Estela despreza-o e é infiel, o que reforça o contraste entre a aparência de ordem que Miranda tenta projetar e a realidade do fracasso pessoal.
4. Relação com outras personagens:
  • Miranda tenta diferenciar-se de João Romão, o ambicioso e grosseiro proprietário do cortiço, que representa o oposto da moral e da ordem que procura. Contudo, o contraste entre os dois também evidencia a hipocrisia e as limitações de Miranda, que, apesar da sua pretensão, é prisioneiro da própria mediocridade.
  • A interação com moradores do cortiço e com figuras de status inferior demonstra uma atitude condescendente e a sua tentativa de distanciar-se da vulgaridade.

III. Caracterização psicológico-moral

  1. Rigidez e Formalidade:
    • Miranda é uma pessoa metódica e rígida nas suas ações e decisões, o que se espelha na preocupação excessiva com as normas e os padrões sociais. Ele não suporta a desordem, seja no trabalho ou na vida pessoal, e a rigidez reflete o desejo de controlar a sua realidade.
  2. Insegurança Social:
    • Apesar de seu status enquanto comerciante bem-sucedido, Miranda sente-se constantemente ameaçado pela posição intermediária que ocupa na hierarquia social. Ele teme cair no mesmo nível dos trabalhadores e vizinhos mais humildes e nutre uma ansiedade constante em reafirmar sua superioridade.
  3. Aparência versus realidade:
    • A sua personalidade é marcada por um grande esforço em aparentar decoro e respeitabilidade. No entanto, por trás dessa fachada, mostra-se um homem infeliz, consciente da superficialidade das suas conquistas e da hipocrisia que caracteriza a sua existência, especialmente no que respeita ao casamento.
  4. Passividade e conformismo:
    • Miranda tem uma personalidade passiva, especialmente no âmbito pessoal. Apesar de ser humilhado por Estela, sua esposa, aceita a situação e evita confrontá-la para não comprometer a imagem pública. Essa passividade reflete a incapacidade de enfrentar conflitos emocionais de forma direta.
  5. Orgulho ferido:
    • Internamente, Miranda sofre com o desprezo da esposa e com a consciência de impotência diante de João Romão, cuja ambição e agressividade desafiam a sua postura formal. Ele sente-se diminuído por não ter a mesma determinação brutal para conquistar mais poder e riqueza.
  6. Respeito pelas regras:
    • Psicologicamente, Miranda é moldado por um profundo respeito pelas normas sociais e morais. Ele acredita que o cumprimento das regras é essencial para preservar a sua posição, mesmo que isso implique a repressão de desejos ou emoções.
  1. Moralidade aparente:
    • Miranda tenta projetar uma imagem de homem moralmente correto e íntegro. Defende a ordem, a disciplina e as boas maneiras. Contudo, a sua moralidade é superficial, mais voltada para agradar à sociedade do que para refletir uma verdadeira virtude interna.
  2. Hipocrisia:
    • Moralmente, Miranda é um hipócrita. Embora exija decoro e comportamento exemplar dos outros, ignora os problemas éticos que se manifestam na própria casa, como a infidelidade da esposa. A sua complacência revela a importância maior que dá às aparências do que à ética verdadeira.
  3. Egoísmo social:
    • Apesar de aparentar ser generoso ou justo, as ações são frequentemente motivadas por interesses pessoais. Evita envolver-se em questões que não tragam benefícios diretos para a sua imagem ou status, demonstrando uma visão moral utilitarista.
  4. Falta de coragem moral:
    • Miranda não demonstra força para confrontar situações que coloquem a sua integridade à prova. A aceitação passiva da infelicidade conjugal e a incapacidade para se impor perante João Romão revelam uma fraqueza moral significativa.
  5. Conservadorismo moral:
    • Ele é profundamente conservador, apegado a valores tradicionais que sustentam a estrutura social e hierárquica. Essa moralidade rígida e antiquada impede-o de se adaptar a mudanças ou de lidar com situações fora da sua zona de conforto.
  6.  Mentalidade conservadora e preocupação com as aparências:
o    Miranda é conservador e rígido no que concerne à sua visão do mundo, refletindo os valores tradicionais da burguesia portuguesa. Por isso, valoriza a moralidade pública, mas a sua vida privada, marcada pela infelicidade conjugal, revela um contraste entre a fachada que procura manter e a realidade.
o    Está constantemente preocupado com as aparências, evitando escândalos e procurando manter uma imagem de decência e ordem.
 
IV. Relação com outras personagens
 
Relação com João Romão:
  1. Rivalidade Velada:
    • João Romão é o proprietário do cortiço, um homem ambicioso e brutal que almeja ascender socialmente a qualquer custo. Miranda, embora financeiramente estável, sente-se desconfortável com a ascensão de Romão, vendo-o como uma ameaça à ordem e aos valores que acredita defender.
    • A relação entre os dois é marcada pelo contraste entre a astúcia brutal de João e a formalidade conservadora de Miranda. Apesar de desprezar a sua grosseria, Miranda reconhece e teme a sua capacidade de prosperar e acumular riqueza.
  2. Superioridade Social:
    • Miranda tenta colocar-se como superior a João Romão, enfatizando a sua educação e modos refinados. No entanto, o pragmatismo e a determinação de João muitas vezes fazem Miranda sentir-se inferior e frustrado.

Relação com Estela (a esposa):
  1. Casamento de conveniência:
    • Miranda casou-se com Estela não por amor, mas por interesse social, pois esperava que o matrimónio consolidasse a sua posição como um homem respeitável. Neste cenário, não é de estranhar que a relação seja marcada pela frieza e infelicidade.
  2. Desprezo e Infidelidade:
    • Estela despreza Miranda, considerando-o passivo e medíocre. Trai-o abertamente, demonstrando a sua insatisfação com o casamento. Apesar disso, ele opta por ignorar as infidelidades para preservar a imagem pública.
  3. Passividade de Miranda:
    • Como se depreende do que já foi dito, evita confrontar Estela ou resolver os problemas conjugais, preferindo manter as aparências. Assim, a relação entre ambos reflete a hipocrisia e a falta de coragem moral de Miranda, que prioriza a reputação acima da felicidade pessoal.

Relação com os moradores do cortiço:
  1. Distanciamento social:
    • Miranda tenta manter distância dos moradores do cortiço, que representam a classe trabalhadora e a "vulgaridade" que ele despreza. Ele vê essas pessoas como inferiores, um retrato de tudo a que não deseja estar associado.
  2. Apatia e desprezo:
    • Por outro lado, não demonstra interesse genuíno pelos problemas dos habitantes do cortiço e interage com eles apenas quando necessário, reforçando a barreira social que os separa socialmente.

Relação com Firmo e Léonie:
  1. Indiferença e Condescendência:
    • Miranda, embora não se envolva diretamente com essas personagens, considera figuras como Firmo (um capoeirista) e Léonie (uma prostituta) como representações da decadência e vulgaridade que procura evitar.

Relação com outros burgueses:
  1. Tentativa de aceitação:
    • Miranda procura ser aceite pelos membros da alta burguesia e aristocracia, tentando imitar os seus modos e valores. No entanto, frequentemente é olhado como um aspirante sem o refinamento ou a origem necessária para ser totalmente integrado.
  2. Falta de identificação:
    • Apesar das suas aspirações, Miranda não consegue sentir-se confortável entre as classes superiores, demonstrando a sua posição incómoda entre o cortiço e a elite.

V. Representatividade social

1. Representação da burguesia em ascensão:
  • Miranda é o arquétipo do pequeno burguês, típico do Brasil do século XIX, que procura firmar-se como respeitável e distinto, mas que, ao mesmo tempo, enfrenta as limitações impostas pela sua origem humilde e pela sua posição intermediária na hierarquia social.
  • Ele reflete os valores da burguesia emergente: o apego às aparências, o conservadorismo moral e o desejo de se distanciar das classes populares enquanto almeja ser aceite pela elite.

2. Contraponto à ascensão bruta de João Romão:
  • Miranda é o oposto de João Romão, cuja ascensão está baseada na ambição desmedida, no trabalho incansável e na falta de escrúpulos.
    • Enquanto Miranda tenta preservar uma imagem de decoro e civilidade, João Romão é movido por pragmatismo e brutalidade.
    • Essa oposição ilustra duas faces da ascensão social no Brasil do período: a tentativa de manter uma moralidade (ainda que hipócrita) e a conquista sem limites éticos.

3. Crítica à hipocrisia social:
  • Miranda simboliza a hipocrisia da sociedade burguesa, que valoriza mais as aparências do que a verdadeira moralidade:
    • Ele mantém um casamento de conveniência com Estela, ignorando a sua infidelidade para não comprometer a imagem pública.
    • Finge desprezar João Romão, mas teme a sua capacidade de o superar economicamente.
    • Vive uma vida de aparente ordem, mas internamente é inseguro, infeliz e cobarde.

4. Mediação entre classes:
  • Miranda situa-se entre o cortiço (classe trabalhadora) e a aristocracia (classe alta), simbolizando uma classe intermediária que aspira à nobreza, mas teme ser confundida com os pobres.
    • Ele tenta distanciar-se dos moradores do cortiço, mas, ao mesmo tempo, a sua origem e posição tornam-no vulnerável às críticas da elite.

5. Função crítica no romance:
  • Através da figura de Miranda, Aluísio Azevedo critica:
    • A superficialidade das aspirações burguesas: o desejo de Miranda por respeitabilidade não o torna mais feliz ou virtuoso, apenas reforça a sua hipocrisia.
    • A ineficácia da rigidez moral: a tentativa de se alinhar com os valores da alta sociedade fracassa, evidenciando a fragilidade da sua posição.
    • A ilusão da ascensão social pacífica: Enquanto João Romão usa métodos brutais para subir na vida, Miranda, que adota uma abordagem passiva, é engolido pelas circunstâncias e limitado pelas suas inseguranças.

6. Representatividade no contexto do Naturalismo:
  • No contexto do Naturalismo, Miranda é uma figura que ilustra como o meio social e as condições históricas moldam o indivíduo. Ele é tanto produto quanto prisioneiro da sua classe social, incapaz de transcender os limites impostos pela hierarquia e pelos valores do seu tempo.
  • A sua posição social e as suas ações revelam como as forças externas (como a economia e a moralidade burguesa) influenciam comportamentos e relações.

Conclusão:

                Miranda representa a mediocridade e a fragilidade da burguesia média em O Cortiço. A sua existência é marcada pela busca incessante por respeitabilidade e por uma rigidez que não consegue sustentar internamente. Ele é uma peça-chave para a crítica social de Aluísio Azevedo, expondo as contradições e os conflitos de uma classe que tenta ascender sem ter a força de caráter ou os recursos da elite, e que teme profundamente ser confundida com os trabalhadores.

terça-feira, 24 de dezembro de 2024

A primeira árvore de Natal


A rainha Vitória, o príncipe Alberto e os filhos
reúnem-se à volta de uma árvore de Natal, em Dezembro de 1848.
Museu Webster. Domínio público

    O primeiro registo escrito de uma árvore de Natal decorada vem de Riga, na Letónia, em 1510. Os homens do grémio dos comerciantes locais decoraram uma árvore com rosas artificiais, dançaram à volta dela no mercado e depois atearam-lhe fogo. A rosa foi utilizada durante muitos anos e é considerada um símbolo da Virgem Maria.
    Há outra lenda que diz que foi Martinho Lutero, o reformador religioso alemão, quem inventou a árvore de Natal. Segundo a história, numa noite de inverno de 1536, Lutero passeava por um pinhal perto da sua casa em Wittenberg quando, de repente, olhou para cima e viu milhares de estrelas a brilhar como jóias entre os ramos das árvores. Esta visão maravilhosa inspirou-o a montar um abeto à luz de velas em sua casa nesse Natal, para lembrar aos seus filhos o céu estrelado de onde veio o seu Salvador.
    Em 1605, as árvores de Natal decoradas já tinham aparecido no Sul da Alemanha. Nesse ano, um escritor anónimo escreveu que, no Natal, os habitantes de Estrasburgo “montavam pinheiros nas salas de estar (...) e penduravam neles rosas cortadas em papel de várias cores, maçãs, bolachas, papel dourado, doces, etc.”.
    Noutras partes da Alemanha, os buxos ou os teixos eram levados para dentro de casa no Natal, em vez dos abetos. E no ducado de Mecklenburg-Strelitz, onde a Rainha Charlotte cresceu, era costume enfeitar um único ramo de teixo. 
    O poeta Samuel Taylor Coleridge (1772-1834) visitou Mecklenburg-Strelitz em dezembro de 1798, e ficou muito impressionado com a cerimónia do ramo de teixo que aí presenciou, cujo relato seguinte escreveu numa carta à sua mulher, datada de 23 de abril de 1799: 
Na véspera do dia de Natal, uma das salas, na qual os pais não podem entrar, é iluminada pelas crianças; um grande ramo de teixo é fixado sobre uma mesa a uma pequena distância da parede, uma multidão de pequenas velas é fixada no ramo ... e papel colorido, etc., pende e esvoaça dos ramos. Sob este ramo, as crianças colocam os presentes que pretendem oferecer aos pais, escondendo ainda nos bolsos os que pretendem oferecer uns aos outros. Depois, os pais são apresentados e cada um apresenta o seu presentinho; em seguida, tiram os restantes presentes dos bolsos, um a um e entregam-nos com beijos e abraços.
    Quando a jovem Charlotte deixou Mecklenburg-Strelitz em 1761 e foi para Inglaterra para casar com o Rei George III, levou consigo muitos dos costumes que tinha praticado em criança, incluindo o ramo de teixo no Natal. No entanto, na corte inglesa, a Rainha transformou o ritual essencialmente privado do ramo de teixo da sua terra natal numa celebração mais pública que podia ser desfrutada pela sua família, pelos seus amigos e por todos os membros da Casa Real.
    A Rainha Charlotte colocou o seu ramo de teixo não numa pequena sala de estar, mas numa das maiores salas do Palácio de Kew ou do Castelo de Windsor. Assistida pelas suas damas de companhia, foi ela própria a vestir o ramo. E quando todas as velas de cera estavam acesas, toda a corte se juntava e cantava canções de Natal. A festa terminou com a distribuição de presentes do ramo, que incluía artigos como roupas, jóias, pratos, brinquedos e doces.
    Estes ramos de teixo reais causaram grande alarido entre a nobreza, que nunca tinha visto nada do género. Mas não foi nada comparado com a sensação criada em 1800, quando a primeira verdadeira árvore de Natal inglesa apareceu na corte.
    Nesse ano, a Rainha Charlotte planeou organizar uma grande festa de Natal para as crianças de todas as famílias principais de Windsor. E, pensando num mimo especial para oferecer aos mais novos, decidiu subitamente que, em vez do habitual ramo de teixo, iria envasar um teixo inteiro, cobri-lo com enfeites e frutos, enchê-lo de presentes e colocá-lo no meio do chão da sala de visitas do Queen's Lodge. Uma árvore assim, pensou ela, daria um espetáculo encantador para os mais pequenos contemplarem. E foi o que aconteceu. 
    Quando as crianças chegaram à casa, na noite do dia de Natal, e viram aquela árvore mágica, toda enfeitada com enfeites e vidros, acreditaram que tinham sido transportadas diretamente para o país das fadas e a sua felicidade não tinha limites.
    O Dr. John Watkins, um dos biógrafos da Rainha Charlotte, que assistiu à festa, fornece-nos uma descrição vívida desta árvore cativante “dos ramos da qual pendiam cachos de doces, amêndoas e passas em papéis, frutas e brinquedos, dispostos com muito bom gosto; tudo iluminado por pequenas velas de cera”. Acrescenta ainda que “depois de a companhia ter passeado e admirado a árvore, cada criança recebeu uma porção dos doces que ela continha, juntamente com um brinquedo, e todos regressaram a casa muito satisfeitos”.
    As árvores de Natal passaram a ser o centro das atenções nos círculos da classe alta inglesa, onde constituíam o ponto focal de inúmeras reuniões de crianças. Tal como na Alemanha, qualquer árvore de folha perene podia ser arrancada para o efeito: teixos, buxo, pinheiros ou abetos. Mas eram invariavelmente iluminadas por velas, adornadas com bugigangas e rodeadas por pilhas de presentes. As árvores colocadas em cima das mesas tinham também, normalmente, uma Arca de Noé ou uma quinta modelo e numerosos animais de madeira pintados a dourado dispostos entre os presentes, por baixo dos ramos, para dar um encanto suplementar ao cenário. 
    Aquando da morte da Rainha Charlotte, em 1818, a tradição da árvore de Natal estava firmemente estabelecida na sociedade e continuou a florescer durante as décadas de 1820 e 30. A descrição mais completa destas primeiras árvores de Natal inglesas encontra-se no diário de Charles Greville, o espirituoso e culto funcionário do Conselho Privado, que em 1829 passou as férias de Natal em Panshanger, Hertfordshire, casa de Peter, 5º Conde Cowper, e da sua mulher Lady Emily.
    Quando, em dezembro de 1840, o Príncipe Alberto importou vários abetos de Coburgo, a sua terra natal, estes não eram, portanto, uma novidade para a aristocracia. Mas foi só quando periódicos como o Illustrated London News, Cassell's Magazine e The Graphic começaram a retratar e a descrever minuciosamente as árvores de Natal reais todos os anos, de 1845 até ao final da década de 1850, que o costume de montar tais árvores nas suas próprias casas se generalizou em Inglaterra.
    Em 1860, porém, não havia praticamente nenhuma família abastada no país que não ostentasse uma árvore de Natal na sala de estar ou no salão. E todas as festas de Dezembro organizadas para crianças pobres nesta data tinham como principal atração as árvores de Natal carregadas de presentes. O abeto era agora geralmente aceite como a árvore festiva por excelência, mas os ramos destes abetos já não eram cortados em camadas artificiais, como na Alemanha, mas podiam permanecer intactos, com velas e ornamentos dispostos aleatoriamente sobre eles, como atualmente. 

    A primeira árvore de Natal em Portugal foi instalada no Paço Real das Necessidades, em Lisboa, por D. Fernando II, duque de Saxe-Coburgo-Gotha, o marido de D. Maria II, em meados do século XIX, para recordar a tradição de Natal da sua infância passada na Alemanha. Por volta de 1844, o monarca, nascido em Viena, na Áustria, colocou, no Paço Real das Necessidades, em Lisboa, uma árvore e enfeitou-a para festejar com os sete filhos e com a rainha, D. Maria II, com quem casou a 9 de abril de 1836.
    Originalmente, a árvore era decorada com rosas feitas a partir de papel colorido, maçãs e fios prateados. Já desde o séc. XVIII que a árvore era decorada com velas. As maçãs representavam o episódio bíblico de Adão e Eva. Hoje em dia, as maçãs foram substituídas pelas bolas coloridas, as velas foram trocadas pelas luzes. Só os fios prateados se mantêm.
    O abeto, que era colocado numa sala privada da família real no Palácio das Necessidades, era decorado com velas, laços e bolas de vidro transparente. Também era comum colocar guloseimas na árvore já decorada, como frutas cristalizadas e chocolates. O marido de D. Maria II chegava mesmo a vestir-se de verde e a imitar São Nicolau, o santo que deu origem ao Pai Natal, para entreter os seus sete filhos. O rei consorte entrava na sala com um saco às costas e distribuía presentes pelos príncipes e outras crianças do palácio.
    A árvore de Natal original era mais bonita e mágica que a actual. Tinha os pequenos presentinhos pendurados nos próprios ramos ao lado das velinhas. Nos dias de hoje, como todos os dias são Natal em termos de consumo e presentes, a magia da árvore de Natal decorada com doces e presentes perdeu-se muito.

Análise do poema "Cinco galinhas e meia", de Camões

    Este poema breve de tom irónico, da autoria de Luís Vaz de Camões, escrito em redondilha maior, com características de repentismo, nas palavras da professora Rita Marnoto, é, de acordo com a epígrafe inicial, dirigido a D. António, Senhor de Cascais. Convém recordar que, por vezes, as epígrafes eram acrescentadas a um poema por um copista que sentia necessidade de o contextualizar. Trata-se, por outro lado, de uma quadra em redondilha maior, na esteira da Corrente Tradicional, precedida de uma epígrafe, e com um esquema rimático abab, ou seja, rima cruzada. As duas rimas, em -eia e -ais, contém uma aliteração em /i/, que nos versos 1 e 3 se estende ao interior do verso. Além disso, a rima em /a/ é reforçada pela repetição da primeira palavra rimante no interior do terceiro verso – «meia». Relativamente ao ritmo, este é rápido, tendo em conta o uso do verso curto, e ganha vivacidade com a divisão de cada um em dous segmentos paralelos, ligados através do encavalgamento. O primeiro apresenta a situação, enquanto o segundo a comenta e explicita.
    O D. António, senhor de Cascais, referido na epígrafe e no segundo verso, é D. António de Castro, um aristocrata muito poderoso, filho primogénito de D. Luís de Castro e D. Violante de Ataíde. Casou com D. Inês Pimentel, uma senhora que era aparentada com os Távora, e foi IV Conde de Monsanto por designação de Filipe II de Espanha em carta datada de 23 de outubro de 1582. O seu nome esteve envolvido na agitada vida que caracterizou a época que assistiu aos derradeiros anos de vida de Camões. Em 1572, ano da primeira edição de Os Lusíadas, D. Luís de Ataíde, vice-rei da Índia, regressou do Oriente envolto em triunfos e glória, ao mesmo tempo que a forte e dispendiosa armada formada para apoiar a liga entre o Papado, a Espanha e a França contra o inimigo turco não passava a barra do Tejo, em virtude de a aliança ter sido dificultada por diversas convulsões políticas. Em agosto desse ano, D. Sebastião ordenou a prisão de D. António de Castro nos subterrâneos do Castelo de Lisboa, enquanto a sua família e os seus criados foram encarcerados na prisão do Limoeiro. A razão para tal relacionava-se com a acusação de que tinha sido alvo por parte de um criado de apoiar os luteranos e de estar a organizar a entrega do Forte de São João da Barra aos franceses. No entanto, a denúncia era falsa, pelo que todos foram libertados. Posteriormente, D. António de Castro apoiou Filipe II de Espanha aquando da união dos tronos de Portugal e Castela, tendo ordenado o arvorar da bandeira castelhana no Castelo de São Jorge, no entanto acabou por ser vítima de nova acusação, desta vez de se preparar para entregar Cascais a D. António Prior do Crato, por isso foi desterrado para Espanha, juntamente com a família.
    Poderá parecer estranho, à primeira vista, que um poeta que cultiva um estilo elevado e que escreve uma obra monumental como Os Lusíadas aborde, nesta quadra humorística, uma questão menor como a alimentação, mas a verdade é que o tema da alimentação remonta às origens da literatura europeia, desde logo por se tratar de um bem essencial à sobrevivência dos seres vivos. Uma das estratégias indutoras doo cómico num texto é o contraste entre a superioridade de um sujeito em relação a uma vítima e a desilusão das suas expectativas. Neste caso, as duas figuras que preenchem a composição prestam-se ao referido contraste: de um lado, temos um destinatário de estatuto elevado, o poderoso D. António de Castro, enquanto no outro encontramos um poeta simples e modesto que se diminui fazendo uma cópia. A vida do primeiro caracteriza-se pelo bem-estar, ao passo que o segundo vive ansioso por confortar o seu estômago e satisfazer o seu palato. À promessa de seis galinhas feita pelo homem todo poderoso, segue-se a desilusão do poeta humilde pela receção de mera meia galinha, o que equivale a dizer que, novamente nas palavras da professora Rita Marnoto, “Às expectativas geradas pela plenitude de um delicioso recheio, corresponde uma ausência, como se a pulsão do corpo fosse remetida para o vazio material da concavidade da meia ave.”
    Retornando à análise da epígrafe, ficamos a saber que D. António, um homem poderoso, prometeu a Camões seis galinhas recheadas como pagamento por uma cópia que este lhe fizera, porém apenas lhe enviara meia. Note-se que, semanticamente, a meia dúzia é uma quantidade ligada à banalização, à indeterminação e até à escassez nos seus vários planos. Por sua vez, o verso inicial da quadra enuncia uma quantidade, a do débito, como se de um deficit se tratasse, que mensura uma substância alimentar: a galinha. As cinco galinhas e meia são antecipadas e postas em relevo pelo anacoluto, pois há uma inversão da ordem dos seus elementos, que seria “O senhor de Cascais deve cinco galinhas e meia”. O segundo verso identifica o débito (“deve” cinco galinhas e meia) e a figura histórica que corresponde ao devedor: D. António de Castro. Feita a substração, resta o que Camões efetivamente recebeu: meia galinha (“e a meia”), que vem cheia (adjetivo que se liga a outro – “recheadas” –, presente na epígrafe, por paronomásia a partir do mesmo étimo). Estamos perante uma espécie de eufemismo que aponta para o oposto daquilo a que se está a aludir: uma ausência. O registo das quantidades numéricas processa-se em decréscimo: de seis galinhas (epígrafe), passa-se a cinco galinhas e meia (v. 1), a seguir a meia (v. 3) e daí ao vazio (v. 4). Deste modo, é possível concluir que o adjetivo que aponta para a plenitude (“cheia”, do latim “plena”, que sugere exatamente a noção de plenitude) indicia, afinal, uma sucessão de faltas: do Senhor de Cascais, ao prometido; de comida, para o poeta; do recheio da meia galinha (sugerido pela ironia). Outra conclusão a que se pode chegar é que a “diminuição do quantitativo (em galinhas) é inversamente proporcional ao aumento dos apetites. (v. 4)”.
    O último verso assenta num jogo de palavras: o que preenche a galinha não corresponde à substância material do recheio, mas, por oposição, um apetite não satisfeito., o que, metaforicamente, pode ser interpretado como o vazio que se apodera do poeta. As suas expectativas foram traídas e a concavidade da meia galinha (personificada, ao ser dotada de apetites – não satisfeitos – a satisfazer) simboliza o seu desejo de comer. Deste modo, os apetites do poeta são transferidos para a meia galinha por hipálage. A metade do animal que Camões recebeu carrega consigo não um recheio material, mas o vazio onde se aloja o desejo em toda a sua plenitude, simbolicamente: é lá que se nutrem todos os anseios, todas as esperanças e todas as promessas que simbolizam “quanto de insaciável carrega a existência e com ela a escrita.” Note-se, por último, que, seguindo a tradição segundo a qual a redondilha deve apresentar uma estrutura circular, esta composição poética obedece a esse preceito, pois o último verso retoma o primeiro: “Cinco galinhas e meia” (v. 1); “de apetites para as mais” [cinco galinhas e meia].

Análise da cantiga "A la fé, Deus, se nom por Vossa Madre"

    Esta cantiga satírica de mestria, constituída por quatro sextilhas e uma finda de quatro versos, abre com uma imprecação contra Deus (“A la fé, Deus” – apóstrofe), apresentado como um rival do trovador, pois rouba para si as mulheres jovens e belas, deixando apenas as velhas e feias, e obriga-as a andar mal vestidas e mal governadas nos conventos onde as encerra. Tendo em conta estes dados, como pode considerar-se Deus uma figura bondosa e misericordiosa?
    O «eu» poético afirma que, se não fosse pela sua mãe, Nossa Senhora, que é “mui bõa”, ou seja, uma figura bondosa, santa, generosa, teria causado sofrimento a Deus (“fezera-vos eu pesar”), porque Ele lhe roubou (“filhastes”) a “mia [sua] senhor” (atente-se na linguagem característica da cantiga de amor), isto é, a mulher amada, seja por meio da morte, por exemplo, ou de forma figurada. Deste modo, a figura divina é caracterizada como injusta, causadora de sofrimento e dor no trovador, cruel até, já que lhe roubou o bem mias precioso que possuía.
    Através do encavalgamento, o trovador continua a mensagem da primeira cobla na segunda, neste caso pondo em dúvida a paternidade de Jesus (São José ou Deus Pai?). Deste modo, o «eu», em virtude de o nascimento e o progenitor de Deus-Jesus não serem muito claros, só não O ataca por causa do respeito que nutre pela mãe, Santa Maria. O sujeito poético prossegue a sua crítica, afirmando que estaria disposto a morrer, se, dessa forma O responsabilizasse publicamente, isto é, o desse como culpado aos olhos de todos, por lhe ter tirado a sua «senhor»: “se lhi nom pesasse, / morrera eu, se vos acõomiasse / a mia senhor, que mi vos tolhestes.”. O trovador prossegue a sua queixa e recriminação, interrogando Deus acerca do motivo por que o perdeu, isto é, porque o abandonou, porque o tratou de forma tão injusta, se o «eu» era Dele, Lhe pertencia, acreditava Nele. A resposta surge no último verso da segunda cobla: “Nom queríades que eu mais valesse.”, ou seja, Deus não queria que o trovador valesse mais do que Ele aos olhos da «senhor».
    No primeiro verso da terceira estrofe, o «eu» interpela de novo a figura divina, desafiando-O a dizer-lhe que “bem” lhe fez, que benefício lhe trouxe, para que pudesse acreditar Nele ou O servisse, além de uma grande ofensa e soberba (leia-se “filhar-lhe” a “senhor”). A explicação (“Ca” = “pois”) surge de seguida: Deus tem a mulher em Seu poder forçada, ou seja, contra a vontade dela, quando o trovador nunca Lhe “filhou” nada nem recebeu Dele desde que nasceu: “e nunca vos eu do vosso filhei nada / des que fui nado, nem vós nom mi o destes”. Assim sendo, Deus é retratado como uma figura injusta e ingrata.
    A terceira cobla clarifica a acusação e o motivo do desagrado do trovador: Deus tomou por esposas as mulheres belas (“fremosas”) e jovens (“mancebas”), deixando apenas as “velhas feas”. Ora, o que significa Deus tomar por esposa uma mulher? A metáfora, neste caso, refere-se às mulheres que, contra a sua vontade, davam entrada nos conventos para O servir. Esta situação ocorre com inúmeras mulheres, o que sugere o número gigantesco das que eram forçadas a recolher a um convento pelas mais diversas razões, num mundo, numa sociedade e numa época que as castrava e limitava as suas liberdades, como é o caso da religiosa, nesta cantiga. Isto tem uma consequência: para o trovador, não resta qualquer mulher jovem e formosa (“E a mi nunca mi nenhua dades: / assi partides migo quant’havedes.” – observe-se a ironia, bem como a alusão ao princípio bíblico que estabelece a repartição das riquezas.
    Assim, chegamos à finda, cujo verso inicial constitui uma referência ao serviço que o trovador devia à sua «senhor», que incluía o seu louvor nas cantigas de amor: “Nen’as servides vós, nen’as loades”. A acusação prossegue e torna-se, agora, completamente clara: Deus obriga-as também a andar mal vestidas e mal governadas (“vestide-las mui mal e governades”), nos conventos em que as encerra (“e metedes-no-las trá-las paredes.”).
    Em suma, a cantiga visa a forma como as mulheres eram sujeitas na época medieval, vivendo num mundo em que não possuíam liberdade. Neste caso, é questionada a ausência de liberdade religiosa: muitas eram obrigadas a enterrar-se em conventos contra a sua vontade. As razões eram variadas. A primeira era religiosa: múltiplas mulheres eram confinadas à vida conventual, nomeadamente em famílias nobres, para evitar, por exemplo, disputas ou a fragmentação de heranças, isto é, para preservar o património da família. A segunda era por uma questão de honra: diversas famílias nobres enviavam as filhas para proteger a sua honra, nomeadamente as que não se casavam, evitando assim escândalos e garantindo que não violavam as normas sociais da época, que promovia ideais de pureza e castidade femininas. A terceira prendia-se com a busca de um refúgio ou de uma alternativa à vida mundana: o convento constituía uma alternativa à vida doméstica e às obrigações do casamento, optando por uma existência mais espiritual. Uma quarta remetia para uma forma de castigo ou punição, sendo as mulheres encerradas num convento, à força, para punir comportamentos tidos como socialmente inapropriados, como, por exemplo, o adultério ou a rejeição de casamentos arranjados. Repare-se que, 500 ou 600 anos depois, encontramos a novela Amor de Perdição e Teresa Albuquerque, uma jovem que é obrigada a entrada num convento por recusar casar com o primo Baltazar Coutinho, um casamento arranjado pelas famílias.

sábado, 21 de dezembro de 2024

Análise da cantiga "Afons’ Afonses, batiçar queredes", de Afonso Sanches

    Só uma estrofe desta cantiga de Afonso Sanches nos chegou, a qual satiriza um indivíduo chamado Afonso Afonses, a propósito do batismo de um seu criado. Tudo indica, no entanto, que o poema se basearia num equívoco sobre quem é que nunca teria sido batizado – e que seria o próprio Afonso Afonses, pelo que se depreende do verso 6.
    Concretamente no que diz respeito a essa figura, não sabemos exatamente quem é este Afonso Afonses, o qual deseja batizar um criado (“Afons’ Afonses, batiçar queredes / vosso criad’”), porém não tem padre para presidir à cerimónia (“e cura nom havedes / que chamem clérig’”). Nestes versos, encontramos um jogo com a palavra «cura» no duplo sentido de “curar, tratar de” e “ter um padre”. Os últimos versos, nomeadamente o derradeiro, permite questionar quem é que, efetivamente, nunca tinha sido batizado, indiciando que se tratava do próprio Afonso Afonses: “como haverdes, / Afonso Afonses, nunca batiçado?”.

quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

Caracterização de Bertoleza

1. Origem e Condição Social

  • Bertoleza é uma mulher negra e escravizada, descendente direta de africanos escravizados, que simboliza a opressão e a exploração do sistema escravocrata.
  • A sua trajetória como escrava é marcada pelo trabalho árduo, desumanização e falta de acesso a qualquer direito básico
  • Enganada com a promessa de liberdade, acredita poder comprar a sua alforria com o dinheiro acumulado após anos de trabalho, com o apoio de João Romão, mas descobre mais tarde que ainda é legalmente escrava e que foi intencionalmente ludibriada por ele.
  • A sua condição social é caracterizada pelos seguintes traços:

·         Subalternidade e exploração:

·         Bertoleza vive numa situação de extrema subalternidade, tanto no âmbito social quanto nas relações pessoais, sendo retratada como uma figura subalterna, vítima de exploração contínua, seja como escrava de direito ou como trabalhadora livre de facto.

·         Apesar de acreditar ter conquistado algum grau de independência, permanece submetida à opressão de João Romão, que usufrui do seu trabalho sem oferecer contrapartidas justas.

·         Trabalho excessivo: a sua trajetória é marcada pelo trabalho exaustivo, nomeadamente como cozinheira e responsável por diversas atividades que sustentam os empreendimentos do amante.

·         Ausência de direitos:

·         A personagem acredita ser livre, porém, na realidade, não possui autonomia real nem proteção social, pois depende de João Romão, o que a coloca numa posição de vulnerabilidade extrema, tanto emocional como material.

·         Relação com o sistema escravocrata e o racismo estrutural:

·         Formalmente, a escravatura está próxima do seu fim, todavia a sociedade perpetua a marginalização de pessoas negras como Bertoleza, que continuam sujeitas a relações de trabalho similares à escravidão.

·         Na prática, ela é duplamente explorada – como mulher e como negra –, sendo excluída do progresso que ajuda a construir.

·         Desamparo social:

·         Bertoleza não encontra qualquer suporte em nenhuma estrutura da sociedade: não tem familiares ou membros da comunidade que se preocupem com ela e a protejam; o sistema legal apenas reforça a sua condição de mulher explorada, permitindo que João Romão a denuncie como escrava fugitiva.

  • Vive numa situação de extrema subalternidade, tanto no âmbito social quanto nas relações pessoais.

2. Aparência Física

  • Cor da pele:
    • Bertoleza é descrita como uma mulher negra, o que, no contexto da obra, indicia a sua origem e condição social marginalizada.
  • Constituição física:
    • É uma mulher robusta e corpulenta, com um corpo moldado pelo trabalho árduo e constante.
    • A sua força física constitui um reflexo das tarefas pesadas que desempenha diariamente, como cozinhar, transportar pesos e tratar do cortiço.
  • Marcas do trabalho:
    • As suas mãos são grossas e calejadas, evidenciando anos de serviço braçal.
    • A pele apresenta cicatrizes e rugosidades, sinais claros da vida de esforço incessante e de privação.
  • Traços faciais:
    • Os seus eus traços são descritos como ásperos e marcantes, espelhando o sofrimento que pauta a sua vida.
    • Os olhos, cansados e fundos, transmitem um misto de resignação e dureza, resultado das dificuldades enfrentadas.
  • Vestuário:
    • Bertoleza geralmente aparece vestida com roupas simples, pobres e gastas, adequadas à sua condição social e às funções que exerce no dia a dia.
    • As roupas, frequentemente, estão sujas ou marcadas pelo trabalho na cozinha, reforçando a sua associação com o esforço físico constante.
  • Postura:
    • A sua postura demonstra cansaço crónico, refletindo o peso literal e figurativo que marca a sua existência.
    • Apesar disso, há na sua figura uma energia prática, característica de quem está habituada a viver para o trabalho.
  • Cabelos:
    • Os cabelos são crespos, frequentemente presos de maneira funcional, sem qualquer preocupação estética, dado o foco da sua vida ser a sobrevivência e o trabalho.
  • Idade aparente:
    • Apesar de não ser idosa, Bertoleza aparenta ser mais velha do que realmente é, pois o trabalho exaustivo e as condições adversas a que sempre esteve sujeita desgastaram-lhe a aparência.
    • A expressão do rosto evidencia uma vida de privações e sacrifícios.
  • Em suma, o retrato físico de Bertoleza não é apenas um momento descritivo do romance, mas também uma forma de simbolismo naturalista, visto que o seu corpo é apresentado como uma extensão da sua condição social: uma ferramenta explorada até ao limite. Cada detalhe físico reforça a ideia de que atua como representante da classe trabalhadora e do grupo social marginalizado pela sociedade escravocrata e patriarcal da época

3. Caracterização psicológica

1. Trabalhadora e abnegada: É um símbolo da classe trabalhadora, sendo incansável nas suas funções e no seu apoio ao desenvolvimento do cortiço.


2. Resignada e submissa

·         Bertoleza é profundamente resignada ao seu destino, aceitando sem resistência explícita as adversidades e opressões que enfrenta. Por outro lado, aceita passivamente as circunstâncias da sua relação com João Romão, deixando-se explorar tanto como companheira quanto como trabalhadora.

·         Sua submissão está enraizada no condicionamento social e histórico, típico de uma sociedade escravocrata que negava a agência de pessoas como ela.

·         Confia cegamente em João Romão, mesmo quando ele a explora e manipula, evidenciando sua falta de perspetivas de autonomia emocional.


3. Forte e resiliente

·        Apesar de ser submissa, Bertoleza demonstra uma força interior marcante, enfrentando com coragem as dificuldades da vida e aceitando sua condição sem revoltas explícitas.

·        A sua capacidade de suportar o trabalho árduo, os maus-tratos e a exclusão social é um testemunho de sua resiliência psicológica.

·        Essa força, no entanto, é muitas vezes canalizada para o trabalho incessante e não para questionar ou resistir à exploração.


4. Ingénua e vulnerável

·         Bertoleza é apresentada como uma personagem ingénua, especialmente na sua relação com João Romão, em quem confia, mesmo sendo vítima da sua ambição desmedida.

·         Acredita ter alcançado a liberdade e vê no companheiro um protetor, sem perceber que ele a explora para alcançar os seus próprios objetivos.

·         A sua vulnerabilidade emocional impede-a de ver a traição iminente e a manipulação contínua de que é vítima por parte de João Romão.


5. Dedicada e com espírito de sacrifício

·         Bertoleza é extremamente dedicada ao trabalho e à relação com João Romão, muitas vezes em detrimento de si mesma.

·         O sacrifício pessoal é uma característica central da sua personalidade, pois entrega-se completamente ao objetivo de ajudar João Romão a prosperar.

·         Essa dedicação cega faz dela uma personagem trágica, pois tudo o que constrói acaba sendo usado contra si.


6. Solitária e Carente Afetivamente

·         A vida de Bertoleza é marcada pela solidão, dado que não tem família ou apoio comunitário, o que a torna emocionalmente dependente de João Romão.

·         A sua carência afetiva é evidente na maneira como se agarra à relação com ele, vendo-o como sua única fonte de estabilidade e segurança.


7. Grata

·         Bertoleza nutre um sentimento de gratidão ilusória em relação a João Romão, acreditando que ele a ajudou a conquistar sua liberdade.

·         Essa gratidão é manipulada pelo companheiro para a manter submissa, alimentando um ciclo de exploração emocional e material.


8. Medrosa e Desamparada

·         Ao longo da narrativa, Bertoleza demonstra um medo profundo de perder o pouco que acredita ter conquistado, como, por exemplo, a sua liberdade e a relação com João Romão.

·         Esse medo deixa-a desamparada, especialmente quando descobre que foi enganada sobre a sua alforria.


9. Digna: dignidade Trágica

·         Mesmo sujeita à submissão e ao sofrimento, Bertoleza mantém uma certa dignidade trágica, especialmente na sua decisão final de tirar a própria vida.

·         O suicídio é um ato de desespero, mas também de resistência, pois ela recusa-se a ser recapturada como escrava e a perder sua humanidade.


10. Alienada e sem Consciência Crítica

·         Bertoleza é alienada em relação à própria condição de exploração, não desenvolvendo uma consciência crítica sobre a sua situação.

·         Essa alienação reflete o sistema opressor em que vive, que não oferece meios ou possibilidades para que questione o seu lugar na sociedade.


11. Simbolismo Psicológico

·         Psicologicamente, Bertoleza representa o arquétipo da mulher negra escravizada e explorada, cuja força e sacrifício são usados por outros para prosperarem.

·         A sua trajetória psicológica reflete a crítica naturalista à sociedade brasileira, mostrando como os indivíduos mais vulneráveis eram esmagados por um sistema opressor e desumano.


Em suma, Bertoleza é uma mulher forte, porém aprisionada pelas circunstâncias históricas e sociais. Alguns traços, como a submissão, a dedicação e a ingenuidade tornam-na uma personagem profundamente trágica, enquanto a força e a dignidade perante o sofrimento a transformam num símbolo da exploração e resistência das classes oprimidas.


4. Relação com João Romão

1. Início da Relação

·         A relação de Bertoleza com João Romão começa de forma utilitária:

    • João Romão oferece ajuda a Bertoleza para comprar a sua suposta alforria, consolidando um vínculo que se baseia na dependência emocional e material.
    • Para Bertoleza, João Romão representa inicialmente uma possibilidade de liberdade e estabilidade, o que faz com que confie nele cegamente.

·         Já para o amante, Bertoleza é um instrumento de trabalho e um meio para alcançar os seus objetivos económicos.


2. Dependência e Submissão

·         Submissão de Bertoleza:

    • Bertoleza submete-se completamente a João Romão, tanto emocional quanto fisicamente, tornando-se sua companheira e trabalhadora incansável.
    • Acredita que deve lealdade a João Romão por ter "comprado" a sua liberdade, mesmo que isso a mantenha num estado de constante exploração.

·         Dependência emocional:

    • A solidão de Bertoleza leva a que crie uma relação afetiva com João Romão, mesmo que ele não demonstre reciprocidade.
    • O homem torna-se o centro da sua vida, consolidando a sua dependência emocional em relação a ele.

3. Exploração e Desequilíbrio de Poder

·         João Romão vê Bertoleza como uma ferramenta de trabalho, explorando a sua força e dedicação para expandir o seu património. Ela trabalha sem descanso, seja na cozinha, no comércio ou na manutenção do cortiço, contribuindo diretamente para o enriquecimento de João Romão.

·         Há um desequilíbrio extremo de poder na relação: João Romão detém o controle económico, emocional e até legal sobre Bertoleza, manipulando-a sem oferecer qualquer contrapartida justa.


4. Ausência de Amor Verdadeiro

·         A relação não é baseada em amor ou afeto recíproco:

    • Bertoleza nutre sentimentos de gratidão e apego emocional, acreditando num vínculo afetivo com João Romão.
    • João Romão, por outro lado, nunca demonstra amor ou cuidado genuíno por ela, tratando-a como um recurso útil para atingir os seus objetivos materiais.

5. Traição e Abandono Final

·         A traição de João Romão é o clímax da relação:

    • Quando toma consciência de que Bertoleza representa um obstáculo para as suas ambições de ascensão social, denuncia-a às autoridades como escrava fugitiva, para se livrar dela e consolidar um casamento com Zulmira, que lhe garante entrada na elite social.
    • A traição revela a natureza calculista e desumana de João Romão, que descarta Bertoleza quando deixa de ser útil para os seus planos.

6. Papel Simbólico da Relação

·         Simbolismo de exploração:

    • A relação entre os dois é uma metáfora das dinâmicas de exploração de classe, raça e género.
    • João Romão representa o capitalista ambicioso, enquanto Bertoleza simboliza a classe trabalhadora e as mulheres negras exploradas no Brasil do século XIX.

·         Crítica à hipocrisia social:

    • A relação expõe a hipocrisia de uma sociedade que permite a ascensão económica de João Romão, mas às custas da exploração e do sofrimento de pessoas como Bertoleza.

Em suma, a relação entre Bertoleza e João Romão é profundamente desigual, marcada pela exploração, submissão e ausência de reciprocidade emocional. Para João Romão, a escrava é apenas um meio para satisfazer as suas ambições, enquanto, para ela, ele representa segurança e uma esperança ilusória. O desfecho trágico da relação ressalta as injustiças sociais e raciais da época, alinhando-se com a crítica naturalista presente em O Cortiço.


5. Papel no Desenvolvimento do Cortiço

1. Trabalhadora

a.       Trabalho físico e incansável:

a.    Bertoleza é a principal força de trabalho na vida de João Romão, desempenhando tarefas essenciais como cozinhar, lavar, limpar e cuidar da organização geral.

b.   Ela assume também responsabilidades na manutenção do comércio que abastece o cortiço, garantindo o sustento e o lucro que permitem a João Romão expandir os seus negócios.

b.      Instrumento de acumulação de capital:

a.    O trabalho árduo e praticamente gratuito de Bertoleza é uma das bases da prosperidade de João Romão.

b.   Ela representa a classe trabalhadora explorada, cujo esforço e sacrifício alimentam o crescimento do patrimônio alheio.

  1. Estímulo para a ambição de João Romão

a.    Bertoleza, ao unir-se a João Romão, contribui diretamente para que ele concentre a energia e ambição no desenvolvimento do cortiço.

b.    O seu trabalho permite que João Romão poupe recursos e os invista na expansão do cortiço, como a construção de novas casas para arrendar e a ampliação dos negócios.

c.    Figura que facilita o empreendedorismo de João Romão: enquanto Bertoleza se ocupa com as tarefas quotidianas, ele pode dedicar-se exclusivamente à acumulação de riqueza.

3.         Símbolo de continuidade e estabilidade do cortiço

a.    Bertoleza é um dos pilares do funcionamento cotidiano do cortiço. Por um lado, a sua presença garante a alimentação dos trabalhadores e moradores, fortalecendo a dinâmica de produção e sobrevivência no espaço. Por outro, representa a força constante que sustenta a vida no cortiço, mesmo no meio às adversidades e à pobreza.

b.    Estabilidade invisível: embora seja fundamental no desenrolar da narrativa, Bertoleza permanece invisível para o público, sendo entendida apenas como uma peça funcional no mecanismo do cortiço.

4.       Papel no contexto social do cortiço

a.    Bertoleza, como mulher negra e subalterna, simboliza o elo entre a base explorada e os interesses dominantes.

b.    A sua presença reforça a crítica social de O Cortiço, mostrando como a ascensão econômica de figuras como João Romão depende da exploração de trabalhadores como Bertoleza.

  1. Desencadeadora do desfecho da narrativa

a.    O papel de Bertoleza não se limita ao crescimento inicial do cortiço, mas também influencia o desfecho trágico da narrativa. Por um lado, quando João Romão decide traí-la, entregando-a às autoridades como escrava fugitiva, a atitude dele reflete a dinâmica de exploração levada ao extremo. Por outro, esta atitude, que culmina no suicídio de Bertoleza, simboliza o caráter predatório do sistema social e econômico do cortiço.

6.       Simbolismo de classe e raça no desenvolvimento do cortiço

a.    Bertoleza é um símbolo da mão de obra explorada, que sustenta tanto o crescimento material do cortiço quanto a crítica social naturalista de Aluísio Azevedo.

b.    Representa também a confluência das opressões de raça, género e classe, sendo a figura que trabalha incessantemente para um sistema que a descarta quando deixa de ser útil.

c.    A relação entre Bertoleza e o cortiço é uma analogia direta com o funcionamento do capitalismo nascente no Brasil: a riqueza de poucos é construída sobre o trabalho e o sacrifício dos mais pobres.

7.       Impacto final no cortiço

a.    O suicídio de Bertoleza tem um impacto simbólico no cortiço:

                                           i.          marca o ponto culminante da denúncia social de Aluísio Azevedo, evidenciando o custo humano do progresso material;

                                         ii.         o seu sacrifício final expõe as injustiças do sistema social e encerra a trajetória de uma personagem que deu tudo, mas não recebeu nada em troca.

Em suma, o papel de Bertoleza no desenvolvimento do cortiço é essencial tanto do ponto de vista prático quanto simbólico. Ela é a força invisível que sustenta a prosperidade económica de João Romão e a estrutura quotidiana do cortiço. No entanto, a sua trajetória também denuncia a exploração de classe, raça e género, expondo as desigualdades sociais e económicas que marcam o romance. A sua presença reforça a crítica naturalista ao sistema opressor que subjuga os mais vulneráveis para alimentar o progresso de poucos.


6. Simbolismo

a) Símbolo de exploração

·         Bertoleza é um símbolo vivo da exploração:

    • Trabalha incansavelmente sem receber benefícios proporcionais ao seu esforço.
    • A sua dependência emocional e económica de João Romão mantém-na numa situação de servidão disfarçada.

·         Representa o sistema socioeconómico desigual que caracteriza a sociedade brasileira da época, onde a riqueza de poucos é construída sobre o trabalho de muitos.

·         É uma metáfora para a opressão das classes mais baixas, destacando a desigualdade social e racial da época

b) Figura de sacrifício

·         A sua vida é marcada pelo sacrifício constante: sacrifica a liberdade, a saúde e, finalmente, a vida em benefício de João Romão e do sistema que ele representa.

·         O suicídio de Bertoleza é um ato final de resistência e tragédia, destacando a ausência de alternativas reais para os oprimidos.

c) Símbolo da Transição Histórica

·         Bertoleza reflete a transição histórica entre o sistema escravocrata e o trabalho assalariado precário no Brasil:

    • Embora formalmente livre, continua a viver como escrava, subordinada a um sistema que perpetua a desigualdade racial e económica.
    • A sua figura denuncia o facto de a abolição da escravatura não ter trazido mudanças imediatas para a população negra e trabalhadora.
    • A sua trajetória reflete a realidade das mulheres negras escravizadas no Brasil do século XIX.

7. Representatividade social

a) Representação da mulher negra e escravizada

·         Bertoleza simboliza a condição das mulheres negras no Brasil pós-escravidão, ainda profundamente marcadas pela exploração e pela marginalização.

·         Apesar de acreditar estar livre, a sua vida reflete uma escravidão velada, onde o trabalho incessante e a submissão continuam a definir a sua existência.

·         Constitui uma síntese das opressões cruzadas de raça, género e classe, sendo relegada para o papel de servidora e trabalhadora incansável, sem direitos ou reconhecimento.

b) Retrato da classe trabalhadora

·         Como parte da classe trabalhadora explorada, Bertoleza é o motor que impulsiona o desenvolvimento do cortiço e a ascensão económica de João Romão.

·         Representa a massa de trabalhadores anónimos que sustentam o progresso material da sociedade, mas que são descartados quando deixam de ser úteis, recordando, por exemplo, a figura de Bailote em Aparição, romance de Virgílio Ferreira.

c) Exclusão social e invisibilidade

·         Bertoleza vive à margem da sociedade, sem acesso a qualquer suporte institucional ou comunitário.

·         A sua condição reflete a exclusão estrutural de mulheres negras, que, mesmo após o fim da escravidão formal, continuam presas a relações de trabalho abusivas e desiguais.

d) Crítica social:

i) Crítica ao racismo estrutural

·         Bertoleza é um símbolo do racismo estrutural:

o    A sociedade retratada no romance é construída sobre a desumanização, a exploração e a exclusão de pessoas negras.

o    A exploração e traição final de Bertoleza reforçam a ideia de que as relações raciais permanecem baseadas na opressão e na desigualdade.

ii) Desigualdade de género

·         Além de ser negra e pobre, Bertoleza é uma mulher, o que a coloca em uma posição de vulnerabilidade ainda maior.

·         A sua relação com João Romão é marcada pela dependência e pelo abuso, refletindo as dinâmicas de género características de uma sociedade patriarcal.

iii) Representação da exclusão económica

·         A personagem simboliza a classe trabalhadora que vive em condições miseráveis, enquanto os frutos de seu trabalho enriquecem uma elite económica, como João Romão.

·         A sua exploração reflete a crítica naturalista ao capitalismo nascente, onde os mais pobres são reduzidos a ferramentas para o lucro.


8. Desfecho trágico

1. Contexto do suicídio

·         O suicídio de Bertoleza ocorre após João Romão, na sua busca desenfreada por ascensão social, decidir entregá-la às autoridades como escrava fugitiva.

·         Ao perceber que será capturada e devolvida à condição formal de escrava, Bertoleza opta por se suicidar.

·         A cena final é carregada de dramatismo e extremamente simbólica, refletindo o fim de uma existência marcada pela exploração e desamparo.

2. Significado imediato do suicídio

a) Resistência final

·         O ato de suicídio pode ser interpretado como a última forma de resistência de Bertoleza:

o   Ao cometer suicídio, ela recusa submeter-se novamente à condição de escrava, preservando a dignidade frente à brutalidade do sistema opressor.

o   Por outro lado, o suicídio configura um gesto de desespero, mas também de afirmação da sua humanidade diante de uma sociedade que a reduzia a uma mercadoria.

b) Desamparo Absoluto

·         O suicídio evidencia o desamparo total de Bertoleza, que, ao longo da narrativa, é explorada e traída por aqueles em quem confia.

·         Sem família, comunidade ou apoio social, encontra-se completamente isolada, sem alternativas para escapar ao seu destino trágico.

3. Simbolismo social do suicídio

a) Denúncia da exploração

·         A morte de Bertoleza é o culminar da crítica social do romance, simbolizando os custos humanos da exploração.

·         Ela é o retrato do trabalhador que, após ter a sua força física e emocional explorada até o limite, é descartado quando deixa de ser útil.

b) Reflexo do Racismo e da Escravidão

·         O suicídio de Bertoleza escancara a permanência do sistema escravocrata, mesmo após a sua abolição formal: a morte simboliza como as estruturas racistas e opressoras ainda aprisionam as pessoas negras, negando-lhes qualquer possibilidade de liberdade ou dignidade.

·         É um ato de denúncia contra a desumanização promovida pelo racismo estrutural da época.

c) Crítica ao individualismo e à ganância

·         O desfecho também reflete a crítica ao individualismo e à ganância, personificados em João Romão:

o   Ele ascende e enriquece à custa de Bertoleza e, no final, não hesita em a sacrificar para atingir os seus objetivos sociais e económicos.

o   O suicídio expõe a brutalidade das relações humanas no contexto de um sistema marcado pela ambição desmedida e pela falta de solidariedade.

4. Relação com o Naturalismo

a) Determinismo e Tragédia

·         O suicídio de Bertoleza é coerente com a perspectiva naturalista do romance:

o   A personagem é apresentada como vítima das forças sociais e históricas que determinam o seu destino, como o racismo, o machismo e a exploração económica.

o   A sua morte é inevitável dentro desse contexto, reforçando a ideia de que os indivíduos mais vulneráveis não têm escapatória no sistema opressor.

b) Animalização e Desumanização

·         Ao longo do romance, Bertoleza é frequentemente descrita de forma desumanizada, quase como uma extensão das máquinas e do trabalho.

·         O seu suicídio marca a rutura final com essa lógica: ao tirar a própria vida, ela recupera uma dimensão humana, recusando-se a continuar a ser tratada como um objeto.

5. Impacto narrativo e simbólico

a) Clímax da tragédia

·         O suicídio de Bertoleza é o ponto culminante da tragédia do romance, encerrando a sua trajetória com um gesto de forte impacto emocional.

·         Serve como uma espécie de grito silencioso contra a injustiça, denunciando as condições desumanas impostas aos mais vulneráveis.

b) Reflexão sobre a sociedade

·         A morte de Bertoleza força o leitor a confrontar as desigualdades e violência estruturais que permeiam a sociedade retratada na obra.

·         Ela é uma metáfora do sistema que destrói aqueles que mais contribuem para o seu funcionamento, mas que nunca recebem o devido reconhecimento ou justiça.

Em suma, o suicídio de Bertoleza é uma das cenas mais poderosas e simbólicas de O Cortiço. Ele representa a denúncia final de Aluísio Azevedo contra o racismo, a exploração económica e a desumanização das classes trabalhadoras, bem como o desamparo total dos oprimidos na sociedade da época. Para Bertoleza, é tanto um ato de desespero quanto de resistência, marcando o desfecho inevitável de uma vida de opressão. A sua morte destaca a injustiça de um sistema que a explorou até o limite e, finalmente, a descartou.

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