São Leonardo navega vagarosamente ao longo da
terra duriense, num antecipado “desengano” do que será o “cais divino” e já
vergado às saudades da terra que vai deixar.
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Tema: o telurismo.
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Estrutura interna
▪ 1.ª parte (1.ª estrofe) – Realidade imaginada.
O sujeito poético imagina S. Leonardo «à proa de
um navio de penedos» (um barco rabelo), a navegar, sem pressas, num «doce mar
de mosto» que o prende à terra, em direção à eternidade», mas já arrependido de
deixar o «cais humano» (a terra duriense), «num antecipado desengano» da vida
que está para lá do «cais divino».
É de salientar o recurso ao presente do
indicativo («ruma», «avança») e à perifrástica («vai sulcando», «a navegar»)
para sugerir a realização gradual / o lento desenrolar da viagem. Essa sugestão
é dada também pelo particípio («ancorado») e pelos advérbios («devagar»,
«lentamente»).
▪ 2.ª parte (2.ª estrofe) –
Razões da lentidão e do desengano do santo.
Na eternidade, não haverá socalcos, vinhedos,
água do Douro e montes.
Na eternidade, só encontrará «charcos de luz /
Envelhecida»; os montes serão todos rasos, estendendo-se os horizontes até se
extinguir a cor da vida.
Nesta estrofe, predomina o futuro do indicativo
(«terá», «serão», «deixarão»), dado que se descreve uma realidade para a qual
se caminha.
▪ 3.ª parte (3.ª estrofe) –
Regresso à imagem descritiva da primeira estrofe.
O santo navega cada vez mais lentamente em
direção à eternidade, aproveitando os últimos momentos de contemplação da
paisagem duriense para sorver o «cheiro a terra e a rosmaninho», isto é, para
que se prolongue a permanência na terra.
Note-se que o sujeito poético imagina o santo a
navegar, na primeira estrofe, não num barco celestial, mas num navio de penedos
(alusão às serranias transmontanas), contudo, na terceira, já desliza num barco
rabelo (embarcação típica do rio Douro que transporta o vinho do Porto).
O poeta volta a usar o presente do indicativo
com o mesmo objetivo da primeira estrofe.
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Notas
1.ª) S.
Leonardo de Galafura é um miradouro que existe no alto da montanha, junto a uma
capelinha, em Galafura, freguesia do concelho da Régua, distrito de Vila Real.
Vista do sopé do monte, dá a imagem de navegar pelo espaço.
2.ª)
Os barcos rabelos são barcos à vela, característicos do rio Douro, usados para
o transporte das pipas de vinho do Porto, do Alto Douro até Vila Nova de Gaia,
onde se situam as principais caves.
3.ª)
Mosto é o sumo de uva, antes da fermentação completa.
4.ª)
Socalcos são porções de terreno nas encostas dos montes, suportadas por muros
de pedra; são característicos da paisagem duriense.
5.ª)
Este poema, como tantos outros, é o testemunho do amor telúrico de Miguel Torga
pela terra duriense, daí o antecipado desengano do santo/Torga, pois ama-a e
vai abandoná-la. Este amor telúrico permite compreender também o pseudónimo que
Adolfo Correia da Rocha adota: a escolha de Miguel é uma homenagem ao escritor
castelhano Miguel de Unamuno (1864-1936), que admirava profundamente, e a
Miguel de Cervantes (1547-1616), outro escritor espanhol, autor de D.
Quixote; Torga é o nome de uma urze transmontana.
6.ª) Como
é característico em Miguel Torga, o poema apresenta uma estrutura circular:
começa com a descrição da viagem vagarosa do santo através do Douro, apresenta
a razão dessa lentidão e do desengano, antecipando o que estará «lá» no final
do caminho (o futuro) e retorna ao presente e à descrição da lenta viagem em
direção à eternidade.
7.ª)
Em suma, as razões que justificam a lentidão do santo são as seguintes:
(A) no «cais divino» não haverá
socalcos, vinhedos, água do Douro e montes;
(B) o santo é feliz na terra, onde moram
a felicidade, a vida e a luz;
(C) a viagem é lenta para que o santo
possa prolongar o prazer de sorver «[…] mais de cheiro / A terra e a
rosmaninho!» (vv. 26-27).
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Estado de espírito do sujeito poético
• sem pressa de abandonar o «cais
humano», a terra duriense;
• feliz no «cais humano»;
• arrependido de deixar o «cais humano»;
• desengano e desiludido antecipadamente
da vida que está para lá do «cais divino»;
• saudoso da terra duriense.
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Caráter alegórico do poema
O sujeito poético estabelece um paralelo entre
terra e céu, o «cais humano» e o «cais divino», duas metáforas que sobrevalorizam
a terra, indício do telurismo de Miguel Torga.
Esse paralelismo atinge foros de heresia, pois o
«cais humano» apresenta características e encantos que se sobrepõem ao «cais divino».
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A irregularidade formal
O poema é constituído por três estrofes. A
primeira é constituída por 11 versos, a segunda por 9 e a terceira por 7.
Este decréscimo de versos de estrofe para
estrofe poderá simbolizar a aproximação da viagem do santo do seu destino, uma
viagem que se vai, portanto, aproximando do seu final.
Relativamente à métrica, também esta é
irregular, alternando verso longos com curtos, o que poderá sugerir a
irregularidade do percurso feito.
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O mito de Anteu
Anteu foi um gigante, filho de Neptuno
(Poseidon) e da Terra (Geia), que habitava na Líbia e que obrigava todos os
viajantes a lutar. Depois de os ter vencido e morto, enfeitava o templo do pai
com os despojos. Enquanto estivesse em contacto com a sua mãe, geia, isto é, a
Terra, Anteu era invulnerável. Um dia enfrentou Hércules e nessa luta
recuperava forças cada vez que tocava no solo e era invencível. Então, Hércules
ergueu-o nos braços e sufocou-o sobre os ombros, conseguindo desta maneira
eliminá-lo.
Fala-se deste mito sempre que alguém estabelece
contactos com a origem das suas ideias ou dos seus sentimentos e recupera
energias físicas ou psicológicas.
Fazendo a apologia deste mito, Miguel Torga valoriza
sobretudo a terra-mãe. Tal como Anteu, o poeta é atacado por forças que o
abatem, mas, à semelhança da personagem mítica, retempera as suas energias na
sua terra natal, S. Martinho de Anta (cf. Diário XI, 20 de setembro de
1968, e XV, 11 de setembro de 1989).
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Recursos expressivos
1. Nível fónico
. Estrofes: três estrofes irregulares (11, 9 e 7 versos).
. Métrica irregular: há versos de 2 a 11 sílabas.
. Rima - versos soltos em todas as estrofes;
- emparelhada e interpolada (primeira e segunda
estrofes), emparelhada e cruzada (última estrofe);
- consoante (“mosto”/”posto”);
- pobre (“mosto”/”posto”)
e rica (“comando”/”sulcando”);
- grave (“mosto”/”posto”).
Todos
estes fatores se conjugam para dar uma ideia de irregularidade do espaço
observado.
. Ritmo
repousado, sobretudo na última estrofe, em harmonia com o andamento moderado da
viagem de São Leonardo.
. Transporte: vv. 3-4, 5-6, 10-11, etc.
. Sons dominantes:
. Aliterações:
-
do fonema /p/: sugere a viagem;
-
do fonema /m/: sugere o apelo à terra duriense.
2.
Nível morfossintático
. Futuro
do indicativo (2.ª parte): exprime a referência à vida eterna para onde o Santo
lentamente se dirige.
. O
número de adjetivos é reduzido e os poucos existentes ligam-se a substantivos
metafóricos: “doce mar de mosto”, “cais humano”, “rasos os montes”.
. Predomínio
da coordenação: desenrolar da viagem de S. Leonardo, lenta e sequente.
. Orações:
- oração conclusiva: estabelece uma relação de
consequência entre o “desengano antecipado” do Santo e a
sua regalada demora ao longo do Douro;
- oração subordinada relativa: “que gasta no
caminho”.
3.
Nível semântico
. A
construção alegórica do poema do poema orienta-se no sentido de
enaltecer os encantos da terra e paisagem duriense, de traduzir o apego à
terra.
. Metáforas:
. Imagens:
- as metáforas da 1.ª estrofe
apresentam-nos a imagem do Santo como o capitão dum “navio de penedos”, olhando saudosamente para trás, ao deixar a
terra duriense em direção à vida eterna, e, simultaneamente, revelam a atração
telúrica de Torga pela terra transmontana, o fulcro da sua inspiração poética;
- a imagem dos três últimos versos da
segunda estrofe deixa antever a eternidade sem montes, o que roubará à vista a
cor dos horizontes.
.
A expressividade dos advérbios “devagar”
e “lentamente” e dos três últimos versos da terceira estrofe:
a morosidade da viagem = o apego de S. Leonardo à terra duriense.
Torga
imagina o Santo a navegar não num barco celestial, como as barcas de Gil
Vicente, mas “num navio de
penedos” (alusão às serranias transmontanas) e,
para melhor se identificar com a terra duriense, na última estrofe, o Santo já
desliza num “barco
rabelo” (embarcação típica do rio Douro, que
servia para o transporte do vinho do Porto).
. Hipálage: “Lá não terá
socalcos nem vinhedos na menina dos olhos deslumbrados” (o deslumbramento com a paisagem é do Santo e
não dos olhos).
. Sinestesia: “é um sorvo [paladar]
a mais de cheiro” [olfato].
Durante
trinta anos, Torga tentou o “retrato poético” do Santo que
sempre se lhe furtava. Mas nesse dia o “instantâneo”
surgiu. Para a figura do Santo está transporta a apetência telúrica de Torga,
pois, mesmo o Santo, a caminho do Paraíso, como um capitão “à proa dum navio de
penedos,/A navegar num doce mar de mosto”
(a paisagem duriense), não tem pressa “de chegar ao seu destino”, porque “feliz no cais humano/É num antecipado
desengano/Que ruma em direção ao cais divino”. E isto porque sabe que lá os seus olhos não se deslumbrarão com os
socalcos e vinhedos do Douro, com os montes, com tudo o que deixa, e tudo o que
vai encontrar “São charcos
de luz/Envelhecida/ (...) Até onde se extinga a cor da vida”. A viagem no rabelo é, pois, lenta para poder
prolongar o prazer de sorver mais um pouco o cheiro da terra e do rosmaninho.