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segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

Pink Panther: episódio 8

Fernando Pessoa, o ortónimo


Análise de "Que escada de Jacob?", de Ana Luísa Amaral

             O título do poema de Ana Luísa Amaral relaciona-se com a escada mencionada no livro do Génesis e que constitui o meio de que os anjos se servem para subir e descer do céu. De acordo com o texto bíblico, foi criada por Jacob nos seus sonhos, depois de se ter confrontado com o seu irmão Esaú.
            Relacionando o conteúdo do texto do Génesis com este poema, podemos afirmar que a escada sonhada por Jacob representaria a possibilidade de contactarmos com os anjos e os entes mortos queridos, sempre presentes na nossa memória saudosa, uma espécie de ponte entre a vida e a morte.
            Ora, tendo em conta a dedicatória que abre a composição, a ideia da morte e da ausência (neste caso, do pai do «eu») estão presentes no texto desde o seu início. Note-se, por outro lado, que a dedicatória está datada: 23 de dezembro de 2002, a antevéspera de Natal, a efeméride que celebra o nacimento de Cristo, cuja morte, por outro lado, está na base da fundação da religião católica, cujo princípio essencial será, provavelmente, o amor e a fraternidade.
            O verso inicial do poema alude à noite em que o ser humano pisou a Lua pela primeira vez, o culminar da corrida espacial que Estados Unidos e União Soviética travaram durante anos, que teve o seu marco inicial em 1957, com o lançamento do Sputnik 1. Outra data marcante é o dia 12 de abril de 1961, quando o cosmonauta russo Yuri Gagarin se tornou o primeiro homem a ir para o espaço.
            Voltando ao poema, o verso 2 remete para outra realidade: a televisão ainda a preto e branco (portanto, nos primórdios do seu surgimento), através da qual o «eu» e o seu pai assistiram a esse momento extraordinário da história humana. Segue-se-lhe uma referência aos escafandros (elemento que ressurge no texto), que estabelecem uma analogia entre o vestuário dos astronautas que pisam a Lua e a roupa dos mergulhadores. Qual o sentido desta analogia? O Homem, quando mergulha nas profundezas do mar, necessita de fatos especiais para poder sobreviver debaixo de água; o mesmo acontece quando abandona a atmosfera terrestre e voa para o espaço.
            Na primeira estrofe ainda, o «eu» refere os vários momentos e aspetos que caracterizaram a imagem que os espectadores tiveram da chegada à Lua: a escada que desce do veículo que transportou os astronautas até à superfície, o pó que foi levantado quando aqueles pisaram o solo lunar, a ausência de gravidade. Além disso, o sujeito poético – feminino – localiza os acontecimentos no tempo (duas horas da manhã) e afirma a presença do seu pai (“estavas comigo” – v. 7), assistindo ambos ao feito histórico.
            A segunda estrofe do poema coloca-nos num cenário preciso: o lar onde morava com a sua família, associado a e caracterizado por vários elementos: o lar em sim, a casa, a família, o passado, nomeadamente o da infância, a sala com televisão a preto e branco, o prato de sopa comido às quatro horas da manhã. E o «eu» recorda os vários objetos presentes na sala onde assistiu à chegada à Lua: a mesa ao fundo e o sofá grande. Ele [ela] tinha 11 anos e tudo ficou gravado na sua memória, que agora é recordado, à distância de muitos anos, com nostalgia. Apesar da sua tenra idade, nesse dia sentiu-se «grande», porque o pai assim a fez sentir. O crescimento do «eu» é, simultaneamente, testemunhado e fomentado pelo seu progenitor, como se fosse quase um deus que está sempre presente. Note-se que os dois versos finais desta estrofe associam todo este ambiente à ideia da condição humana. De facto, o ser humano, ao concretizar tal façanha, tinha-se libertado da sua prisão na Terra, onde tinha estado confinado até aí. Observe-se, no entanto, que a questão da condição humana não se esgota nesse passo, dado que a composição poética foca outras questões, como o nascimento, a vida e a morte. Mais: a questão do nascimento deixa de ser um acontecimento meramente fisiológico, de cariz eminentemente feminino e restrito à esfera privada (atente-se no facto de a poeta ter nascido na década de 50 do século passado), e é apresentado sob a forma de um símbolo da iniciativa e da esperança.
            A terceira estrofe situa-nos no dia de verão em que o sujeito poético realizou o seu exame, pelas três horas da tarde, vivido com angústia, desde logo porque estava consciente da sua «ignorância» em matéria de ciências: “eu sem saber o grau das equações, que incógnitas havia a resolver”. Mas lá estava, mais uma vez, o seu pai, sempre presente e próximo dela (“sentado atrás de mim, na carteira de trás”), também ele nervoso enquanto progenitor face à «prova» da filha, mas terno e carinhoso como era seu timbre. Essa presença afetuosa certamente constituía um porto de abrigo e um mar de tranquilidade e segurança que acalmava o «eu».
            Apesar da «ignorância», o sujeito poético superou o exame (“Passei”), o que deixou, naturalmente, o pai feliz (“E eu vejo ainda o teu sorriso”). Tinha 15 anos, ou seja, quatro se tinham passado desde a primeira estrofe, isto é, a chegada do Homem à Lua, em 1969. Esse foi mais um passo no seu crescimento; “a sentir-me grande”.
            A estrofe seguinte abre com a alusão a outro momento importante da vida do «eu», este marcado pela dor, uma dor tipicamente feminina (a do parto). Atente-se na expressividade do adjetivo “nova” a qualificar a “dor”. Ora, se esta é uma “nova” dor, tal significa que houve outras antes. Quais? A da primeira menstruação e a da iniciação sexual, por exemplo, todas elas femininas e essencialmente uterinas. Esse dia, em que o «eu» deu à luz, marcou também o nascimento da poeta e da mãe, o que emociona profundamente os eu pai (“e tu, a soluçar baixinho, retalhado entre amor/e alegria”), sempre presente nos momentos importantes da vida da filha. Pelas segunda e terceira vezes, surgem os escafandros, uma alusão, provavelmente, aos médicos e/ou enfermeiros, que “utilizam batas como escafandros” e que tentam sossegar o pai do sujeito poético. A imagem dos escafandros remeterá, certamente, para as batas do pessoal médico, constituindo um modo de despersonalizar essas pessoas, já que, envergando, de facto, um escafandro, o indivíduo não possui traços distintivos ou fisionomia visíveis. Foi, em suma, um dia longo, “tão longo em que o sol caminhou até ao fim”, mas esse fim do dia marcou, por contraste, o nascimento de um novo ser.
            A penúltima estrofe anuncia a morte do pai, “Na noite em que a lua te deixou”, marcada pela ausência do «eu», da filha, algo que a perturba e deixa ressentida: “eu não estava contigo”. O pai, que parecia omnipresente, porque sempre estivera presente em todos os momentos importantes da filha, passou a estar ausente, tal como ela está no momento da morte do pai, marcando-se, assim, um contraste entre presença e ausência. A mesma Lua que assiste a um nascimento, de uma “outra” condição humana, é associada agora a uma partida, a uma morte, o que enfatiza um outro lado da condição humana: a da fragilidade do Homem, da sua finitude e mortalidade. Segue-se nova menção aos escafandros “cinzentos”, bem como a referência à “noite dos fantasmas”. Neste passo, os escafandros, à semelhança do que sucedia antes, anunciarão provavelmente algo novo; o momento da morte do pai. Esta interpretação da figura do escafandro como o anunciador de algo novo pode fazer-se também relativamente aos outros passos do poema em que surge: da primeira vez associa-se à chegada do ser humano à Lua; da segunda, ao nascimento do(a) filho(a) da poeta.
            Por outro lado, com a morte do pai, o sujeito poético parece ganhar consciência da finitude do ser humano, de que todos iremos um dia morrer. Nesse momento de partida, ressalta a impotência do «eu» para o impedir, desde logo porque estava ausente, mas esse momento serviu igualmente como o despoletar da recordação dos eventos mais importantes vividos por pai e filha, “como s só depois da morte do pai, diante da solidão, e da memória, às vésperas do dia de Natal, fosse possível perceber a dimensão daquela figura no decorrer da sua própria vida. A ausência da figura paterna agora (ele, que estivera sempre presente na vida dela) une-se à ausência da filha (que tivera a companhia/presença dele nos eventos mais importantes da sua existência) no momento da sua morte.
            O dístico com que a composição encerra é constituído por duas interrogações: “A que sabia a sopa que comemos? / Que escada de Jacob?” A primeira interrogação parece sugerir que o pai sabia de algo que a menina de outrora – aquela que a comera na noite da chegada à Lua – desconhecia. A segunda questionará a existência da tal escada que liga a Terra ao Céu, através da qual o «eu» poderia/irá subir um dia e reencontrar o seu pai?

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