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terça-feira, 17 de dezembro de 2024

Análise da cantiga "Orraca López vi doente um dia", de Afonso Anes do Cotom

    Nesta cantiga, a velhice é concetualizada como doença. O trovador começa por dizer que viu Orraca López doente e, logo de seguida, a própria revela a sua doença: a velhice.
    Ao vê-la doente, o trovador pergunta se ela guareceria (se curaria) e a mulher responde em tom de brincadeira (jograria) que é velha e cuida (pensa) em se cuidar. Como resposta, ele diz que ela pensa grande folia (loucura), pois disso (da velhice) mais vê ele as velhas morrerem.
    Note-se que, na época, os conhecimentos de medicina eram muito limitados. Por exemplo, nos locais afastados das cidades, as doenças eram tratadas por curandeiros e ervas medicinais. Nos meios urbanos, muitos médicos eram judeus, ao passo que, no ambiente rural, persistiam aquelas figuras a quem era atribuída uma competência tradicional e das quais se dizia possuírem duas especiais: velhas, que usavam ervas, e parteiras, que tinham ganho experiência com a prática. Assim, é evidente que a prática da medicina era escassa, sendo algumas doenças encaradas como um castigo divino, o que era agravado pela ocorrência de doenças até então desconhecidas e de pestes que dizimavam a população. Em muitas cidades, os doentes eram colocados em lugares afastados das restantes pessoas para evitar contágios e mais mortes. A lepra é, ao longo dos séculos, um bom exemplo desta prática. Nos Congrés d’Arras, dois trovadores leprosos descrevem o momento em que se despediram dos amigos antes de partirem para a leprosaria.
    Até ao final da Idade Média, a velhice está associada a uma imagem negativa. A mulher velha, só e pobre, situa-se no ponto mais baixo da escala social e é frequentemente equiparada às forças do Mal.
    Esta cantiga assenta no jogo pergunta-resposta, para lhe imprimir vivacidade, assenta na contradição da deixa, da própria figura feminina, “sõo velha e cuid’a guarecer”.
    Note-se que a velhice, no caso dos homens, assume outros contornos, sendo associada à sabedoria e à experiência, à conservação da memória dos ancestrais, obtendo valor social como conselheiros das gerações mais novas. Por seu turno, a mulher velha, se prudente e virtuosa, poderia servir de exemplo às outras, além de ensinar e corrigir as mais jovens. Por outro lado, muitas velhas consideradas anciãs viviam uma vida pecaminosa, isto é, gostavam de tagarelar, escondiam o corpo deformado e amolecido pela idade / velhice com roupas e cosméticos, buscavam com enganos os prazeres da carne a que deveriam ter renunciado há muito. A esta figura da velha arrebicada e pintada, sobrepõe-se a da mulher alcoviteira que se insinua nas casas alheias como mensageira insidiosa, junto das mulheres, das lisonjas dos amantes, e da “vetula” feiticeira que engana por dinheiro, através de adivinhações e sortilégios, mulheres simples que a consultavam.

Análise da obra O Cortiço, de Aluísio de Azevedo

 I. Biografia de Aluísio de Azevedo


II. Obras de Aluísio de Azevedo


III. Período literário


IV. Ação

        . Resumo

        . Capítulos

            . Capítulo I

            . Capítulo II

            . Capítulo III

            . Capítulo IV

            . Capítulo V

            . Capítulo VI

            . Capítulo VII

            . Capítulo VIII

            . Capítulo IX

            . Capítulo X

            . Capítulo XI

            . Capítulo XII

            . Capítulo XIII

            . Capítulo XIV

            . Capítulo XV

            . Capítulo XVI

            . Capítulo XVII

            . Capítulo XVIII

            . Capítulo XIX

            . Capítulo XX

            . Capítulo XXI

            . Capítulo XXII

            . Capítulo XXIII


V. Personagens

        1. João Romão

        2. 


VI. Conclusões

        a) Forma

        b) Conteúdo


Conclusões sobre O Cortiço: Conteúdo

    1. Reação dos habitantes do cortiço para com Leonie e depois para com Pombinha mostra a ingenuidade estúpida e cínica de quem adora algo nefasto.

    2. É um romance de tese: como influem as circunstâncias, o ambiente e os acontecimentos na modificação do caráter. Existe entre estes aspetos e as personagens uma relação de causa-efeito. Tanto o comportamento humano como as relações sociais se sujeitam à mesma inevitabilidade científica de causa-efeito.

    3. Evolução cíclica, ideia que fica não só em relação ao espaço (cortiço), mas também em relação às personagens.

    4. O romance visa a análise do elemento negro na sociedade do Brasil. O olhar romântico do negro ficara para trás; agora há um novo olhar: o negro já não se revolta; aceita e submete-se (ex.: Rita, Bertoleza). Esta submissão do negro advém do facto de o branco ser considerado uma raça superior, da qual há de resultar o melhoramento da raça negra.

    5. Bertoleza mantém-se sempre fiel, até a essência dessa fidelidade ser destruída (com a traição). Há uma certa mitificação do elemento negro, porque ele submete-se, mas também é capaz da coragem no mais alto grau.
    Mas em relação ao negro, há ainda um duplo preconceito:
        . Rita e Bertoleza aproximam-se do branco como forma de ascensão social: preconceito da parte do negro;
        . O branco vê o elemento negro como fonte de prazer e sensualidade ou como fonte de outras potencialidades em relação ao trabalho: preconceito da parte do branco.

    6. A mulher: podemos estabelecer alguns grupos:
            = Leonie e Pombinha (e Senhorinha)
            = D. Isabel e Piedade
            = Rita e Bertoleza
    Estes são grupos diferentes, com motivações e destinos diferentes, mas nenhum deles consegue resistir à influência do ambiente. O elemento mais íntegro acaba por ser Bertoleza. Também Rita acaba por perder a sua força inicial quando se adapta a um novo tipo de vida.

    7. Ironia: evidencia-se no final, mas existe ao longo de todo o romance de modo refinado e subtil e, por isso, é mais significativa.
    A visão fatalista do amor que víramos em Machado de Assis mantém-se em A. de Azevedo: a sociedade está destinada a uma constante degradação, a uma degradação inevitável, em que os principais meios de influência são o meio e a raça.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

Caracterização de João Romão, de O Cortiço

1. Caracterização social

  • Origem humilde: João Romão é um português imigrante no Brasil que chega sem grandes posses ou prestígio social.
  • Ascensão pela ambição: Representa o imigrante trabalhador e ambicioso que, por através do esforço e da exploração do seu semelhante, procura ascender social e economicamente.

2. Características Psicológicas

  • Ambição desmedida: João Romão é movido por uma obsessão em enriquecer a qualquer custo, colocando o lucro acima de valores éticos. Ele é descrito como alguém que trabalha incansavelmente, quase de forma irracional e desumana. Não descansa, economiza cada centavo e dedica toda a sua energia ao objetivo de enriquecer. A sua comparação a um animal de carga ou a um escravo enfatiza a sua entrega física ao trabalho, desprezando o tempo para o lazer ou para o amor.
  • Avarento e materialista: Ele é descrito como extremamente avarento, economizando até nos mínimos detalhes para acumular riqueza. Romão é comparado a um animal faminto por causa da sua avareza. A sua obsessão pela riqueza, pelo dinheiro e pela acumulação de bens reflete uma obsessão instintiva, quase visceral. Há um momento em que o narrador o descreve como alguém que «comia restos de comida» e guardava tudo o que podia, recusando-se a gastar dinheiro com qualquer coisa que fosse além do indispensável. Esta postura de «acumulador» faz lembrar o instinto de certos animais que acumulam recursos, precavendo-se para tempos de necessidade (basta recordar a fábula da formiga e da cigarra).
  • Frieza e pragmatismo: A sua capacidade de tomar decisões é quase sempre guiada por interesses financeiros, sem considerar o impacto emocional ou moral. Esta personagem é ocasionalmente descrita como «selvagem», sugerindo a sua falta de civilidade, de humanidade e de domínio da razão. A justificação para isto encontra-se no facto de nortear a sua existência por instintos primários de sobrevivência e prosperidade material, como se se tratasse de um animal no topo da cadeia alimentar, indiferente aos que lhe se situam abaixo de si.

3. Características Físicas

  • Descrição modesta: A aparência física de João Romão não é especialmente destacada na obra, refletindo a sua origem humilde e o facto de o foco do narrador se centrar nas suas ações e atitudes. Não obstante, é destacado como alguém simples e descuidado com a sua aparência. Tal explica-se pelo facto de a sua prioridade exclusiva ser o trabalho e a acumulação de riqueza, o que leva a que negligencie por completo questões como a higiene, o vestuário, entre outras. Este descuido e falta de cuidado consigo mesmo e vaidade traduz o seu apego extremo ao dinheiro e a sua avareza, visto que evita qualquer tipo de dispêndio financeiro, inclusive consigo mesmo. A adjetivação como «magro» e «encardido» é exemplificativa destes traços.
  • Figura vulgar: A sua simplicidade física contrasta com a ambição grandiosa.
  • Magreza e vigor: João Romão é frequentemente descrito como magro, o que é consequência direta de sua vida austera e extenuante. Ele trabalha incessantemente, muitas vezes privando-se de uma alimentação adequada, não por falta de recursos, mas por sua obsessão em economizar. Apesar de magro, possui força e vigor físico, típicos de alguém que está habituado ao trabalho manual. Essa força é uma marca da sua origem humilde e do esforço físico que emprega para acumular riqueza.
  • Resistência física: João Romão é uma figura quase incansável: trabalha dia e noite, cuidando d sua venda e da construção do cortiço, o que evidencia uma capacidade física impressionante, mas também o coloca como alguém "animalizado", regido pela sobrevivência.
  • Vestuário: As roupas de João Romão são práticas, simples, baratas e muitas vezes remendadas, dado o seu desgaste, refletindo a sua avareza e o desinteresse em exibir status social. Mesmo quando começa a acumular riqueza, mantém o hábito de se vestir como um homem pobre, o que simboliza o seu apego à austeridade. Por outro lado, estes dados mostram igualmente que, apesar de enriquecer, João Romão ainda carrega traços das suas origens humildes e não procura ostentar o que possui, pelo menos até ascender socialmente.
  • Simbolismo: o retrato físico de João Romão reflete a sua personalidade mesquinha, bem como a sua obsessão pelo trabalho e falta de sofisticação. Essa descrição, enquadrada no contexto do Naturalismo, reforça a crítica social de Aluísio Azevedo, mostrando como o meio e os valores materialistas moldam o ser humano.

4. Trajetória e Conflitos

  • Início como comerciante: João Romão começa a sua trajetória como dono de uma pequena venda (mercearia), onde já demonstra a sua ganância e o caráter manipulador. João Romão começa como dono de uma pequena venda (mercearia), situada num terreno próximo, no qual posteriormente erguerá o cortiço. Esse espaço humilde é o ponto de partida da sua jornada para a acumulação de riqueza. A sua dedicação exclusiva ao trabalho é evidente: ele próprio faz todo o trabalho: atende os fregueses, administra as finanças e limpa o espaço, numa dedicação obsessiva que reflete a sua determinação de economizar e enriquecer a qualquer custo, evitando contratar ajuda para poupar despesas. João Romão vive em condições precárias, economizando de forma quase desumana para acumular capital, pelo que não é surpreendente que seja descrito como alguém que:

§  Come restos de comida que encontra na venda.

§  Dorme no chão, ao lado do balcão, sem gastar com móveis ou conforto.

§  Usa roupas simples e remendadas, recusando-se a investir em itens desnecessários.

Esta avareza é uma marca da sua personalidade e um reflexo da sua visão utilitarista, na qual cada centavo é poupado e investido para expandir os negócios. João Romão trabalha desde o amanhecer até altas horas da noite, movido pela ambição de enriquecer, sendo descrito como alguém que não se permite descanso ou lazer, dedicando toda a energia ao progresso financeiro. A rotina incansável é um dos primeiros sinais de sua transformação quase animalesca, guiada por um instinto de sobrevivência e pelo desejo de ascensão social.

Um marco importante do seu início como comerciante é a relação com Bertoleza, uma escrava fugida que se torna sua parceira de trabalho e vida. João Romão engana-a desde o início, pois promete ajudá-la a comprar a alforria, mas, na realidade, utiliza a sua força de trabalho para economizar custos e expandir os negócios. Deste modo, Bertoleza trabalha incansavelmente na venda, cozinhando, limpando e auxiliando João Romão, tornando-se essencial para a acumulação de seus primeiros lucros. A exploração desta figura feminina é um exemplo claro do caráter explorador e antiético de João Romão desde o início da sua trajetória.

O início da personagem como comerciante reflete a sua essência: ele é o símbolo do homem que se faz sozinho, mas à custa de trabalho incessante, economia obsessiva e exploração dos outros. A pequena venda é o núcleo da sua trajetória, marcando o ponto de partida para a sua ascensão.

O início de João Romão como comerciante em O Cortiço ilustra como ele utiliza as ferramentas disponíveis – trabalho duro, avareza e exploração – para superar a sua condição de pobreza. Esse momento é essencial para compreender a sua personalidade: é um homem pragmático, inescrupuloso e completamente focado na acumulação de riqueza, mesmo que isso signifique sacrificar a dignidade própria e alheia.

  • Construção do cortiço: Com o tempo, ele expande os seus negócios, investindo na construção de um cortiço, símbolo da sua ascensão económica e da degradação social ao seu redor. O empreendimento reflete não apenas o seu caráter, mas também o seu papel simbólico na narrativa. O cortiço é uma extensão da personalidade do protagonista e materializa os seus valores, ambições e métodos.

Desde logo, convém notar que a construção do convento mostra que a personagem principal de O Cortiço possui uma visão de longo prazo. De facto, João Romão percebe o potencial económico do terreno baldio que existe ao lado da sua venda, inicialmente utilizado como depósito de lixo. Imagina o local como uma oportunidade de gerar lucro por meio da construção e posterior aluguer de habitações populares, dando origem ao cortiço. Deste modo, dedica-se obsessivamente à construção do empreendimento (ele próprio conduzia pedras, areia e tijolos, como se fosse um operário), atuando diretamente nas obras. Trabalha dia e noite, economizando ao máximo e utilizando materiais baratos para erguer as moradias.

Por outro lado, a construção do cortiço reflete a sua avareza extrema. Ele economiza em tudo, incluindo no ser humano: emprega Bertoleza como força de trabalho gratuita, aproveitando-se da sua condição de escrava fugida; usa materiais baratos e mão de obra simples para economizar ao máximo, indiferente às condições precárias que isso criará para os futuros moradores.

Face ao exposto, podemos concluir que o cortiço é uma metáfora da própria ambição e do caráter de João Romão, caracterizando-se pela desorganização e instinto de sobrevivência (tal como o protagonista é movido por instintos básicos de acumulação, o cortiço também se torna um espaço caótico, onde a luta pela sobrevivência prevalece), pela animalização (o cortiço é descrito como um "formigueiro humano" ou uma "colmeia", metáforas que evidenciam a degradação dos seus habitantes; João Romão, como criador desse ambiente, é implicitamente comparado a um animal predador, que manipula e explora os mais fracos para prosperar) e pelo foco no lucro (a forma como administra o cortiço reflete a sua frieza e o seu pragmatismo: não se importa com o bem-estar dos moradores, apenas com as rendas que recebe).

  • Exploração da mão de obra: Romão explora trabalhadores, como Bertoleza, e aproveita-se da vulnerabilidade alheia para enriquecer, desde logo porque perceciona o cortiço como não um espaço de convivência humana, mas como uma máquina fazedora de dinheiro, não se eximindo a explorar os moradores, cobrando rendas elevadas e a pessoas que vivem em situação de miséria.
  • Relação com Bertoleza: Ele engana Bertoleza, uma escrava fugida que trabalha para si em regime quase de escravidão, prometendo ajudá-la a comprar a alforria, promessa que nunca cumprirá.
  • Conflito social: João Romão representa o confronto entre o capital e as classes trabalhadoras, sendo um retrato crítico do capitalismo nascente no Brasil na época.

5. Relação com a temática do Naturalismo

  • Instinto e Determinismo Social: A personagem é retratada como guiada por instintos de sobrevivência e ambição, características marcantes do determinismo social e biológico.
  • Animalização e degradação: A sua busca incessante pelo lucro é muitas vezes associada a comportamentos animalescos, refletindo a visão naturalista de que o ambiente molda o comportamento humano.
  • Crítica social: João Romão personifica a exploração capitalista e a desigualdade, sendo um reflexo das transformações sociais e econômicas do Brasil no século XIX.

6. Relação com outras personagens

  • Bertoleza: A sua relação com ela é marcada pela exploração e hipocrisia, já que a utiliza como mão de obra gratuita e, no final, trai-a ao denunciá-la como escrava fugida. Romão explora-a de forma brutal, reduzindo-a a uma espécie de máquina de trabalho, tratando-a como um mero objeto, o que reflete o seu comportamento e a sua ação desumanizados. Estes traços acentuam-se quando percebe que Bertoleza se tornou um obstáculo ao seu desejo de ascensão social, acabando por a trair e entregando-a às autoridades como escrava fugitiva, sem qualquer remorso, consideração humana ou princípio ético. A frieza com que age evidencia o seu instinto quase predatório, característico de quem não olha a meios para atingir os seus fins, afastando do seu trajeto todos os obstáculos para sobreviver ou prosperar.
  • Miranda: João Romão inveja Miranda, um comerciante que representa o "burguês" estabelecido. A relação entre os dois simboliza a rivalidade entre diferentes estratos sociais. As duas figuras representam diferentes facetas da sociedade brasileira do século XIX: o primeiro é o tipo do imigrante português ambicioso que procura ascender socialmente através do trabalho  da exploração dos mais fracos, enquanto o segundo é o símbolo do burguês e do privilégio. De facto, o protagonista é o típico self-made man, o indivíduo que sai da pobreza e enriquece através do seu trabalho, da sua ambição e do seu pragmatismo, bem como à custa da avareza e da exploração. Por outro lado, Romão representa o tipo social do novo rico que se torna rico, todavia não possui a sofisticação da elite tradicional. Por seu turno, Miranda é o burguês conservador, o sujeito que, ao nascer, já detém uma posição de privilégio económico e social. Ele simboliza a elite local, que adota comportamentos refinados, mas, em contraste, caracterizados pela hipocrisia e pela superficialidade. João Romão, em simultâneo, admira e inveja Miranda, vendo nele o modelo de prestígio e respeitabilidade que almeja.

Os dois são vizinhos e as suas propriedades refletem as suas posições sociais. Assim, o cortiço é um espaço de miséria que contrasta com a casa bem organizada e a loja respeitável de Miranda, que despreza o cortiço e o vê como uma ameaça ao «bom tom» da vizinhança, enquanto o protagonista vislumbra no seu empreendimento a possibilidade de ascensão económica. Neste contexto, Romão sente-se inferior em comparação com a posição social do oponente e ambiciona igualar-se a ele, quer económica quer socialmente. O seu projeto de se equiparar e até superar Miranda passa por comprar propriedades e se casar com Zulmira, a sua filha, mesmo sem a amar, pois vê no casamento uma oportunidade única de ascender socialmente e se distanciar do estigma de «dono do cortiço». Este comportamento evidencia a sua visão pragmática das relações humanas, sociais, sempre orientada para o lucro, o dinheiro, a riqueza.

Curiosamente, no início da obra, o protagonista comporta-se de forma quase subserviente em relação a Miranda, tratando-o com deferência e respeito, o que mostra que o reconhece como superior socialmente, daí que não seja de admirar que o procure imitar. Porém, à medida que vai enriquecendo, torna-se mais competitivo, passando a olhar para Miranda como um obstáculo e/ou um rival. Por seu turno, este olha para o protagonista apenas como um vizinho incómodo e vulgar que, conjuntamente com o cortiço, representa uma ameaça à sua posição e reputação. Ao longo da obra, conserva sempre uma postura de superioridade relativamente ao vizinho, nunca o vendo como seu igual, mesmo quando tenta imiscuir-se na elite.

O casamento com Zulmira é um momento fundamental da relação entre João Romão e Miranda. Para este último, o matrimónio é uma forma de resolver problemas financeiros, em virtude de a sua situação económica estar em declínio, e manter aparências. Por sua vez, o protagonista olha para o casamento como a oportunidade ideal para ascender socialmente, permitindo-lhe alcançar o lugar que tanto ambiciona no seio da sociedade burguesa. Além disso, essa união matrimonial espelha a hipocrisia das relações sociais e a fragilidade das diferenças entre as classes sociais.

Já o cortiço, o grande empreendimento de João Romão, é o principal foco de conflito entre as duas personagens: para o protagonista, ele simboliza a sua conquista e riqueza, enquanto para Miranda constitui um símbolo de degradação, um espaço que mancha a reputação da vizinhança. O seu desprezo pelo cortiço e pelos seus moradores evidencia a visão elitista, enquanto a defesa que Romão faz do empreendimento reflete o seu orgulho como criador e explorador. No fundo, o que está aqui em causa é um conflito social: de um lado, temos Romão a representar a ascensão do capitalismo selvagem e das classes emergentes que, embora economicamente poderosa, lutam por reconhecimento social; do outro, encontramos Miranda, símbolo da elite tradicional, a qual procura preservar os seus privilégios e evitar misturar-se com os «novos ricos».

  • Habitantes do cortiço: Embora João Romão seja o criador e explorador do cortiço, distancia-se das pessoas que nele vivem, mostrando a sua aspiração por um status social superior. Ele tem do cortiço uma visão utilitarista, olhando para os moradores como meras fontes de rendimento: cobra rendas elevadas, tendo em conta as condições decrépitas das habitações, e não investe no restauro ou manutenção do espaço. De facto, os habitantes são pessoas de baixos rendimentos, vivendo vários deles em situação de miséria, e o protagonista aproveita-se desse facto para manter as rendas, tendo plena consciência de que muitos não têm outra opção para morar. Por outro lado, estes dados mostram que Romão é indiferente às condições precárias de vida dos moradores do cortiço, que têm de conviver com a sobrelotação do espaço, a falta de higiene e salubridade e a degradação, confrontados com a total indiferença do protagonista relativamente ao impacto que essas condições têm na saúde e dignidade das pessoas. A sua única preocupação é evitar despesas que afetem o seu rendimento, mesmo que isso signifique abandonar os habitantes à sua sorte e miséria.

João Romão controla o cortiço e os moradores por completo, exercendo o seu poder através da cobrança de rendas e da manipulação das suas condições de vida. Curiosamente, o protagonista possui origens humildes, como os habitantes do cortiço que erigiu. Não obstante, ele distancia-se deles, vendo-se superior a eles. Ele procura ascender socialmente e rejeita qualquer associação às pessoas que vivem no espaço que administra. Nesse contexto, Bertoleza simboliza a exploração de João Romão: ela trabalha incansavelmente, acredita que está a juntar dinheiro para comprar a sua alforria, contudo o protagonista nunca teve a intenção de cumprir  sua promessa. Deste modo, quando Bertoleza se torna um problema para os seus planos de ascensão social, não hesita em a entregar às autoridades como escrava fugida, o que desagua no suicídio dela.

O cortiço é descrito como um organismo vivo, um «formigueiro humano» ou uma «colmeia», repleto de pessoas que lutam pela sua sobrevivência no meio da miséria que os afoga. Romão é o criador do empreendimento, sendo o responsável direto pelas condições que promovem a degradação social e moral. A relação entre ambos reflete a dinâmica do capitalismo selvagem, em que o lucro de um depende da exploração de muitos. Por outro lado, os moradores do espaço são frequentemente comparados a animais, tendo em conta as condições desumanas em que vivem. Essa animalização dos moradores é um reflexo da própria animalidade de João Romão, que, qual animal, age por instinto.

Além disso, o protagonista evita a todo o custo qualquer envolvimento direto com os problemas e conflitos que estalam no cortiço. A violência, as lutas e os escândalos são o pão nosso de cada dia, porém Romão nunca se envolve nem interfere, desde que esses acontecimentos não afetem o pagamento das rendas, mantendo, pois, uma constante postura de distanciamento e superioridade, como se não tivesse qualquer responsabilidade pelas condições que fomentam esses conflitos. Como já foi referido anteriormente, Romão, apesar das suas origens humildes, não demonstra qualquer solidariedade com os habitantes do cortiço; pelo contrário, ele afasta-se cada vez mais das suas origens sociais, procurando associar-se à elite burguesa e desprezando os habitantes do espaço que ele próprio criou. Este distanciamento reflete a sua alienação social e moral, evidenciando o vazio que a sua ambição acarreta: enriqueceu à custa de outros, contudo permanece isolado e desumanizado.

Simbolicamente, a relação entre João Romão e os habitantes do cortiço configura uma crítica à exploração das camadas mais desfavorecidas pela ambição desmedida e pelo capitalismo selvagem emergente. Deste modo, o narrador denuncia as desigualdades sociais e as condições de vida degradantes resultantes da indiferença, da ambição desmedida e da procura desenfreada da riqueza. João Romão representa o capitalista que vê as pessoas como meio para alcançar os seus objetivos.


7. Símbolos Associados a João Romão

  • O Cortiço: João Romão é o criador e principal beneficiário do cortiço, que funciona como uma extensão de sua personalidade: degradado, explorador e movido pela ambição. O empreendimento simboliza o capitalismo emergente na sociedade brasileira do século XIX, sendo que o protagonista personifica esse sistema.
  • Figura do explorador capitalista: Simboliza a ascensão do capitalismo no Brasil, com todas as suas contradições e desigualdades. Romão acumula riqueza à custa da exploração dos mais desfavorecidos que habitam no cortiço, aumentando, assim, as desigualdades sociais. Para ele, os moradores não passam de meras ferramentas usadas para aumentar o seu património e, de forma desumana e indiferente, não hesita em explorar a sua pobreza.

8. Transformação ao Longo da Narrativa

  • Mudança superficial: Embora João Romão alcance seu objetivo de ascender socialmente, comprando propriedades e estabelecendo-se como "respeitável", ele nunca abandona a sua essência exploradora e gananciosa. Ao longo da obra, vai-se transformando, evoluindo de um comerciante simples e humilde para um trabalhador obcecado e infatigável, um capitalista ganancioso, desumano e explorador que procura desesperadamente a ascensão social.

No início, o protagonista é apresentado como alguém de origens humildes, um imigrante português simples e pobre que inicia a sua jornada rumo à riqueza e a outro estatuto social como dono de uma pequena venda. Nesta fase, apresenta-se como alguém trabalhador, avaro e obcecado pelo dinheiro e pela acumulação de riqueza, mostrando-se disposto a sacrificar o conforto, a ética e a humanidade para poupar o vil metal, daí não ser de estranhar que o vejamos a comer restos ou a dormir no chão, tudo para economizar até ao último cêntimo, usando como referência o atual euro. Nesta fase da sua vida, usa Bertoleza como mão de obra gratuita, prometendo-lhe uma alforria que jamais tem a intenção de cumprir.

Posteriormente, Romão começa a investir no terreno localizado ao lado da sua venda, até o transformar num espaço de moradias populares: o cortiço. Esse empreendimento reflete os traços de caráter que já se adivinhavam na fase inicial: usa materiais e mão de obra barata durante a construção, ignorando os reflexos que tal terá nos moradores. Em última análise, o cortiço torna-se uma fonte constante de lucro, consolidando o seu estatuto de homem de negócios, mas sempre à custa da exploração do seu semelhante. Neste contexto, apesar dessa riqueza que o cortiço lhe proporciona, distancia-se, emocional e socialmente, dos seus habitantes, vendo-os somente como meras fontes de rendimento.

À medida que o empreendimento cresce e se consolida, com o aumento dos alugueres, João Romão acumula riqueza. Nessa acumulação constante, compra outras terras e propriedades, diversificando os seus negócios e investimentos e consolidando a sua fortuna. Em simultâneo, cresce igualmente a indiferença e a insensibilidade perante o sofrimento e as necessidades humanas, não revelando qualquer empatia pelos moradores do cortiço, nem por Bertoleza, que tanto o ajudou na sua ascensão social. Neste passo da narrativa, Romão está totalmente consumido pela ganância, agindo de forma desumana, cruel e calculista, traindo Bertoleza ao entrega-la às autoridades como escrava fugitiva, a partir do momento em que se torna um obstáculo aos seus planos.

  • Busca por status: No final, tenta inserir-se na elite, casando com Zulmira, filha de Miranda, mas essa tentativa de ascensão revela a sua alienação e o desejo de reconhecimento social. Como sucede frequentemente com estas personagens, a riqueza não garante só por si a ascensão social e a aceitação pelas camadas mais altas da sociedade. João Romão percebe também isso, tendo de lidar com o desprezo que a burguesia lhe dedica. Para superar este facto, deseja casar-se com Zulmira, filha do vizinho burguês, Miranda, não por amor, mas como estratégia para se integrar na elite. Quando o consegue, esforça-se ao máximo para se adaptar aos padrões burgueses, abandonando algumas atitudes de avareza e procurando mostrar-se uma pessoa respeitável, no entanto, na realidade, essa mudança é apenas superficial, pois, na essência, continua a ser uma figura mesquinha e ganancioso.

Quando o final do romance nos bate à porta, constatamos que o protagonista atingiu os seus objetivos, tanto o do enriquecimento como a ascensão social, mas fê-lo graças a uma postura de alienação e desumanização que atinge o clímax no mento em que trai Bertoleza e a denuncia às autoridades para se casar com Zulmira. O suicídio desta personagem constitui uma espécie de preço moral que Romão tem de pagar pelo seu trajeto alienante. Deste modo, no desfecho de O Cortiço, João Romão não passa de um homem muito rico, mas totalmente desumanizado e sem qualquer vínculo afetivo com os outros, símbolo do capitalista que tudo sacrifica pelo lucro, mas permanece moralmente pobre.


9. Representatividade no contexto do Naturalismo

  • Representante do capitalismo selvagem:

·         João Romão simboliza o modelo capitalista emergente no Brasil, no século XIX, em que o lucro e a acumulação de riqueza se sobrepõem a qualquer valor ético ou humano.

·         Exploração como base do sucesso: Ele usa o trabalho de Bertoleza como mão de obra gratuita e explora os moradores do cortiço, cobrando rendas elevadas em condições precárias.

·         Acumulação e desigualdade: João Romão representa a figura do empreendedor que enriquece à custa da exploração de classes sociais mais vulneráveis, ilustrando as desigualdades inerentes ao capitalismo.

  • Símbolo do imigrante no Brasil:

·         Como português imigrante, João Romão reflete o papel histórico de muitos imigrantes no Brasil, que chegaram à procura de melhores condições de vida e acabaram a desempenhar papéis de comerciantes, pequenos proprietários e empreendedores.

·         Ascensão económica: Ele personifica o estereótipo do "imigrante trabalhador" que, através de muito esforço e poupança, consegue enriquecer.

·         Contraste cultural: A sua ambição e frieza contrastam, frequentemente, com valores mais "tradicionais" e "moralistas" da sociedade brasileira da época, como os representados por Miranda.

  • Símbolo do novo-rico:

·         João Romão é representativo da figura do "novo-rico", que acumula riqueza material, mas luta por reconhecimento social.

·         Ele aspira a integrar a elite tradicional (representada por Miranda) e utiliza o casamento com Zulmira como estratégia para obter prestígio, mas a sua origem humilde e os métodos desumanos de enriquecimento que emprega continuam a constituir barreiras à sua plena aceitação.

  • Metáfora da desumanização e da animalização;

·         A evolução de João Romão reflete o processo de desumanização provocado pela ambição desmedida. Ele é frequentemente descrito de forma animalesca, guiado por instintos básicos, como sobrevivência, acumulação de riqueza e poder.

·         Animalização naturalista: Esta característica reforça a visão naturalista segundo a qual os seres humanos são moldados pelos seus instintos e pelo ambiente social. João Romão é uma criatura do seu meio, explorando e sendo explorado pelas dinâmicas sociais e económicas.

  • Espelho da ascensão social e das suas contradições:

·         João Romão é um exemplo de como a ascensão social pode ser conquistada por meio de trabalho duro, mas também por exploração e desumanização.

·         Ambiguidade moral: Ele é, ao mesmo tempo, admirado pela sua perseverança e criticado pelos seus métodos antiéticos.

·         Falta de integração: Mesmo ao alcançar a riqueza e o status ambicionados, João Romão nunca se encaixa completamente na elite, o que evidencia a dificuldade de transição entre as classes sociais no contexto da sociedade brasileira da época.

  • Crítica ao materialismo:

·   João Romão é um símbolo da obsessão pelo materialismo. A sua procura incessante por riqueza leva à perda da humanidade e à destruição de relações interpessoais, como a traição de Bertoleza exemplifica.

·       Vazio moral: Apesar de alcançar sucesso financeiro, João Romão, no final do romance, está só e isolado, desprovido de vínculos afetivos e sem qualquer satisfação emocional ou ética.

  • Símbolo da luta pela sobrevivência: João Romão é um exemplo clássico da influência do meio sobre o indivíduo, tema central do Naturalismo.
  • Figura antiética: Embora sua trajetória pareça de sucesso, a crítica do autor expõe os custos humanos e sociais dessa ascensão.

João Romão é uma figura central em O Cortiço, representando a ganância e a exploração na sociedade brasileira do século XIX, e serve como uma crítica contundente à desigualdade social e à moralidade da época.

Enredo / Ação de O Cortiço

A. A Ascensão de João Romão

João Romão é um português pobre e ambicioso que, por meio de trabalho árduo e métodos desonestos, constrói um cortiço em um subúrbio do Rio de Janeiro. Ele rouba materiais de construção, explora trabalhadores e guarda dinheiro de forma obsessiva. Sua companheira, Bertoleza, é uma escravizada que foge acreditando estar livre, mas vive em regime de quase escravidão sob João Romão.

João Romão começa o cortiço como uma pequena habitação coletiva. Com o tempo, o local cresce e se torna uma representação da pobreza e da degradação social, abrigando dezenas de famílias que vivem em condições precárias.

 

B. A Vida no Cortiço

O cortiço é um microcosmo da sociedade brasileira. Ele abriga personagens de diferentes origens, que compartilham as dificuldades da vida cotidiana. Os moradores vivem em um ambiente insalubre, marcado por brigas, festas, promiscuidade e luta pela sobrevivência. Entre os moradores destacam-se:

  • Rita Baiana, uma mulher sensual e cheia de vida que simboliza a força dos instintos.
  • Pombinha, uma jovem inicialmente inocente, que acaba se entregando à prostituição.
  • Jerônimo, um operário português que se apaixona por Rita Baiana, abandonando sua esposa.

O cortiço é descrito como uma entidade viva, quase um personagem, que influencia o comportamento de seus habitantes. O local é frequentemente associado a imagens de calor, fermentação e animalização.

 

C. O Conflito entre João Romão e Miranda

Miranda, um comerciante rico e vizinho de João Romão, representa a elite brasileira. Embora seja economicamente superior, Miranda é um homem hipócrita, que despreza o cortiço, mas também age de forma corrupta para manter seu status. João Romão inveja o prestígio social de Miranda e tenta se aproximar dele, buscando ascender à classe burguesa.

João Romão, com seu desejo incessante de riqueza e respeito social, decide ampliar seus negócios e transformar sua imagem. Ele planeja casar-se com Zulmira, filha de Miranda, para se integrar à elite, mesmo que isso signifique trair Bertoleza.

 

D. A Queda de Bertoleza

No final da obra, João Romão denuncia Bertoleza às autoridades, revelando que ela ainda é legalmente escrava. A traição é motivada pelo desejo de se livrar dela e se casar com Zulmira. Ao perceber que será recapturada, Bertoleza, em um ato desesperado, comete suicídio, esfaqueando-se diante dos policiais.

O destino de Bertoleza simboliza a opressão dos mais pobres e a desumanidade de João Romão, que sacrifica tudo – inclusive suas relações pessoais – em nome da ascensão social.

Conclusões sobre O Cortiço: Forma

    1. Descrição dos elementos imprescindíveis de todo o romance. Através da descrição, as personagens surgem inseridas na vida do dia a dia. A descrição é feita, por vezes, através de metáforas, sobretudo do âmbito da zoologia.

    2. Apresentação de determinado tipo de episódios, quase sempre sórdidos e de temática sexual. A principal característica destes episódios é a total ausência de valores, a animalidade e a violência.

    3. Construção e estruturação de modo mais denso e rico. A preocupação pela forma é muito intensa em A. de Azevedo, pois há sempre indícios que se realizam. Esta preocupação orienta a narrativa para um determinado sentido, o que implica uma maior organização dos elementos.

    4. Uso de analepses: são várias e a sua função é a explicação de factos e a caracterização de personagens.

    5. As personagens raramente existem como elementos individuais: elas inserem-se num coletivo. Há algumas vivências de individualidade, mas apenas com as personagens principais.

    6. Em termos de intriga, há três elementos que despoletam a ação:
            - chegada dos portugueses: Jerónimo e Piedade
            - chegada de Rita
            - ascensão de Miranda ao baronato
    Estes factos são também importantes, porque vão influenciar a mudança das personagens. Por exemplo, é a chegada de Rita que vai conduzir à degradação de Piedade e é a ascensão de Miranda que provoca a ascensão de João Romão.

Análise do capítulo XXIII de O Cortiço

    O início deste capítulo contrasta com o fim do capítulo anterior: ambiente de riqueza e novos costumes de João Romão, que age como um novo rico, exagerando em tudo. É um capítulo mais alegre, mais urbano, onde João Romão tem a oportunidade de ostentar a sua riqueza e novos hábitos.
    Surge, então, Botelho, que anuncia a ida do dono de Bertoleza a casa de J. Romão para a buscar. Seguem depois para casa do último e, entretanto, há duas referências importantes:
        . Passagem de Pombinha, agora prostituta, com Henrique. Esta referência não é inocente.
        . Referência a um cúmplice, palavra do campo semântico do crime. O emprego desta palavra é intencional e não inocente. Há uma relação de cumplicidade entre Botelho e J. Romão, como se de um crime se tratasse.
    O final do romance, tal como o seu início, é sórdido. João Romão, apesar de ter mudado exteriormente, revela que íntima e moralmente é o mesmo.
    Bertoleza, pelo contrário, logo que vê o filho do seu antigo dono, apercebe-se de tudo e ganha plena consciência da sua situação. Podemos estabelecer um paralelo entre a situação de Bertoleza e a de Pombinha, depois do que aconteceu com Léonie: ambas ficam lúcidas e conscientes da sua verdadeira realidade. E a única solução para Bertoleza é a morte e as condições desta morte contrapõem-se ao seu caráter corajoso. De facto, morre num ambiente extremamente sórdido.
    Podemos estabelecer um confronto entre o caráter firme de Bertoleza e sordidez de João Romão:
           
            Bertoleza                            João Romão

            interior   +                            interior   -

            exterior   -                             exterior   +

    João Romão apenas evolui exteriormente, pois mantém o seu caráter de sempre, ao contrário de Bertoleza, que se mantém fisicamente degradada, mas com um caráter positivo. Com a sua morte, afasta-se o último elemento do cortiço que não se modificara. De facto, se o cortiço degradado desaparecera, a única solução para ela era a morte.
    Bertoleza e Rita Baiana eram as únicas personagens femininas dotadas de um forte caráter positivo; no final, o de Bertoleza ainda mais se eleva, enquanto o de Rita decai.
    Uma última chamada de atenção para a ironia com que o romance termina: uma comissão de abolicionistas vem trazer o título de sócio a J. Romão, o qual acabara de entregar uma antiga escrava (Bertoleza).

Análise do capítulo XXII de O Cortiço

    Referência ainda a Bertoleza e ao medo que começa a sentir, pois sabe que não é desejada.
    Romão, entretanto, consegue tudo o que quer e torna-se um grande capitalista; a sua venda transforma-se num grande armazém, com um grande movimento de empregados e clientes.
    Refere-se também o novo cortiço, agora Avenida, habitado por um estrato social diferente do cortiço anterior, pautado por um espírito coletivo, que se concretizava na festa de domingo. Agora não há esta cumplicidade entre as personagens, que passa para o "Cabeça-de-Gato", para onde vão os resíduos do cortiço de João Romão.
    Há ainda uma referência a Pombinha: o seu casamento não resultou e tornou-se prostituta. Não era mulher para cumprir todas as convenções inerentes ao casamento. D. Isabel continua na sua apatia estúpida. Esta é a mesma atitude do cortiço e Pombinha tona Senhorinha como protegida. É um ciclo que se repete. Apesar da mudança exterior, o cortiço continua a aceitar as coisas sem reconhecer o que é bom ou mau.
    Termina com a referência a Piedade e à extrema degradação do cortiço "Cabeça-de-Gato". Ela já nem chora, nem se lamenta, o que significa que atingiu o "fundo do poço". Esta descrição corresponde à descrição do inicial cortiço de João Romão.

Análise do capítulo XXI de O Cortiço

     Referência às aspirações de J. Romão, particularmente em relação à mulher, que agora é um obstáculo à sua ascensão social, ou seja, ao seu casamento com Zulmirinha. Bertoleza era um "ponto negro" às suas ambições. Começa a haver a urgência de se desfazer dela:
        = "E se ela morresse?"
        = "E se eu a matasse?"
        = "E se eu a esmagasse aqui mesmo?"
    Esta gradação mostra essa urgência e a intensidade da ambição de J. Romão.
    Temos depois o episódio da morte do filho da Machona: Agostinho. Mas o mais importante é a reação de Romão, que nunca fora humanitário e agora vê despertar-se-lhe uma certa sensibilidade. Mas este sentimento é hipócrita, porque não é verdadeiro.
    Surge Botelho, que vai ajudar Romão a realizar as suas ambições. Este recurso a Botelho para que fizesse o trabalho sujo, mostra uma certa falta de vigor em Romão, que sempre fizera tudo, legal ou ilegalmente. É este trabalho sujo que vai resolver o problema de Romão: entrega de Bertoleza ao seu dono, pois, ao contrário do que ela pensava, nunca deixou de ser escrava. Bertoleza apercebe-se de tudo e sente que merece ser tratada com mais respeito: é um grito de justiça perante a ambição de João Romão.

Análise do capítulo XX de O Cortiço

    Modificação do espaço e também dos seus habitantes.
    Piedade acaba por ser o último indício do que era antes o cortiço ao atingir os últimos graus de degradação. O que antes caracterizava o cortiço de J. Romão passa agora a caracterizar o outro cortiço, o "Cabeça-de-Gato": um organismo vivo com uma enorme sensibilidade.
    O novo cortiço de Romão é agora uma espécie de pensão, onde habitam já pessoas de uma claase social mais alta e não apenas lavadeiras e trabalhadores. As pessoas passam a ser vistas individualmente e já não se verifica o espírito de grupo.
    O capítulo termina com a degradação que atingiu Piedade e estabelece o contraste com a outra Piedade, que fora casada com Jerónimo. Mostra-se a influência do meio e da raça. Obviamente, isto vai refletir-se também no comportamento de Senhorinha. É todo um ciclo que se repete.

Análise do capítulo XIX de O Cortiço

     A vida no cortiço prossegue: as obras começaram e os moradores adaptar-se da melhor forma possível. Bertoleza sente-se presa na rotina e na monotonia e sente-se triste por sentir que João Romão a trata de modo diferente. Agora, não passa de um estorvo no caminho do homem, que pretende pedir a mão de Zulmira.
    Enquanto isso, Jerónimo e Rita procuram aproveitar a nova vida: ele tinha posto de lado os seus sonhos portugueses (de onde vinha) e tornara-se quase um legítimo brasileiro, com os mesmos hábitos e vícios. Piedade, por seu turno, recuperada da luta com Rita, começa a beber. A sua filha com Jerónimo, que passava a semana no colégio, no centro da cidade, consola a mãe aos fins de semana. Durante algum tempo, o pai deixa de pagar o colégio, pois até o pão ao padeiro deve. Num contacto posterior com Piedade, durante o qual ele se encontra bêbedo, ambos brigam e o homem confessa que deixaria de pagar a escola da filha.

Análise do capítulo XVIII de O Cortiço

     Volta-se ao incêndio, a Libório e à sua relação com João Romão. Este episódio serve para caracterizar moralmente o taberneiro, que se aproveita da situação e rouba o dinheiro ao velho, deixando-o morrer.
    Temos depois a referência ao cortiço depois do incêndio: ficam os destroços do espaço e das pessoas. A destruição deste cortiço e a ambição de J. Romão levam-no a construir outro cortiço. Aproxima-se mais de Miranda.
    Romão conta o tesouro de Libório, mas desanima quando vê que grande parte do dinheiro já não tem validade. Porém, ele é muito prático em relação ao dinheiro: a culpa não é da sua ambição, mas de Libório, que o guardou, e do governo, que limita os prazos de validade.
    As mudanças do cortiço não se verificam apenas ao nível do espaço, mas também das personagens. J. Romão continua a ver Bertoleza como obstáculo às suas ambições. Ela, apesar de o seu futuro ser estreito e sombrio, continua a adorar o amigo.
    Temos ainda a referência a Rita e Jerónimo, que já não apresenta nenhuma das características que faziam dele português, nem os seus hábitos de trabalho. Jerónimo abrasileirou-se de todo: preguiçoso, extravagante, luxurioso, ciumento; sem fazer economia, entregue apenas aos prazeres com a mulata.
    Pelo contrário, Piedade vivia num progressivo decadentismo, afundado na bebida e para quem o único prazer era a visita da filha, que vem desempenhar no cortiço o papel que antes era da responsabilidade de Pombinha. São duas personagens a quem foi dado um estatuto superior: Pombinha e Senhorinha, que também vão ter uma relação como a de Pombinha e Léonie.
    O capítulo termina com a visita de Piedade a Jerónimo e num ambiente de degradação.

domingo, 15 de dezembro de 2024

Análise da cantiga "A vós, Dona abadessa", de Fernando Esquio

    Esta cantiga de escárnio e maldizer de mestria, da autoria de Fernando Esquio, mais uma vez em linguagem crua, tem como alvo uma abadessa, a quem o trovador alegadamente lhe envia um conjunto de “objetos de consolação” (“caralhos franceses”), ricamente adornados. A composição poética toma maliciosamente a forma de um bilhete cortês que acompanha a oferta, com o nome do “servidor” logo no segundo verso. Ou seja, o poema aborda o tema da masturbação feminina.
    O trovador dirige-se à abadessa através de uma apóstrofe (“A vós, Dona abadessa”), para lhe declarar que lhe vai enviar um presente (“de mim, Dom Fernand’ Esquio, / estas doas vos envio” – vv. 2-3), porque sabe que o merece: “quatro caralhos franceses” para ela e dois para a prioresa. O que é posto aqui em questão é a condição celibatária, isto é, a falta de atividade sexual, dos religiosos. O trovador acha-se no direito de oferecer um consolo (o que designaríamos hoje por vibrador) à abadessa, para que esta experimente, ainda que indiretamente, o membro viril de um homem. Desta forma, denuncia-se que as religiosas, por não poderem possuir parceiros sexuais, tinham a possibilidade de se satisfazer sexualmente com consolos (“caralhos franceses”).
    Ironicamente, o trovador chama-se amiga, mas é por causa dessa relação de amizade que não olha a despesas (“nom quer’ a custa catar”) para lhe oferecer o mais depressa possível (“ca nom tenho al tam aginha”, quer dizer, não tenho nada rápido) “quatro caralhos de mesa” (aparentemente, os consolos adornavam os tocadores das damas). Dito de outra forma, o presente foi caro, mas o trovador não quer fazer conta dele (v. 9), pois a religiosa (a abadessa) é sua amiga. De seguida, o «eu» poético, no que diz respeito à procedência, assegura que os obteve através de uma burguesa (“que me deu ua burguesa”), e enviar-lhos-á em saquinhos próprios, cada um contendo dois.
    O presente agradará à abadessa (“Mui bem vos semelharam”), pois possuem traços especiais: têm cordões (“ca sequer levam cordões”), são descomunalmente grandes (“quatro caralhos asnaes”) e possuem um manípulo que facilita o seu manuseio (“enmanguados em coraes / com que calhedes a mam.”). Assim sendo, o trovador destaca quatro aspetos dos consolos: a origem, a qualidade, o tamanho e a praticidade.
    Em primeiro lugar, ele deixa bem claro que os caralhos são franceses (origem), o que implica que haveria outros tipos de caralhos no mercado além daqueles. Dito isto, tendo em conta que as práticas sexuais femininas eram fortemente reguladas pela Igreja, como poderiam as mulheres aceder a brinquedos sexuais? Parece evidente que a esmagadora maioria não teria acesso aos mesmos, desde logo porque não seria fácil encontra-los. Seja como for, a cantiga parece fornecer uma solução para a questão, quando refere a figura de uma burguesa (a qual teria fornecido os consolos), o que quererá dizer que eles seriam encontrados num ambiente urbano. Por outro lado, a referência à burguesa e ao seu papel de «fornecedora» dos objetos significará que se trata de um assunto exclusivamente feminino, tratado entre mulheres.
    Em segundo lugar, temos a qualidade do produto. O «eu» poético descreve os “caralhos franceses” e dá conta que são ornados de coral (v. 20), o que aponta para o facto de haver o cuidado de os enfeitar e embelezar, desde logo porque, além da função sexual que cumpriam, eram igualmente um artefacto de mesa (“quatro caralhos de mesa” – v. 12), adornos. Claramente, estamos na presença de uma ironia.
    Em terceiro lugar, é abordada a questão do tamanho, que, de acordo com o verso 19 (“asnaes”), evidencia a qualidade do produto. Por outro lado, esta referência ao tamanho descomunal indicia que havia variedade de tamanhos à escolha. Na cantiga, o trovador, porque é amigo dela, faz questão de enviar à abadessa os melhores / maiores possíveis, para lhe provar o sentimento que nutre pela mulher e porque esta merece.
    Em quarto e último lugar, a praticidade é sugerida pelo facto de os “caralhos” possuírem um manípulo que facilitava o seu manuseio. Ou seja, os instrumentos eram de grandes dimensões e fáceis de manusear, pelo que certamente proporcionariam prazer a quem os usasse.
    A cantiga dá testemunho da existência de brinquedos eróticos na Península Ibérica medieval, de origens variadas, aspetos, tamanhos e materiais. O acesso, quase de certeza, seria bastante restrito, e itens mais paramentados – como os referenciados à abadessa – deveriam ter um custo elevado. Note-se que, de acordo com o verso 15 (“Muito bem vos semelharam”, ou seja, me lembram de vós), não seria a primeira vez que a abadessa possuiria esse tipo de objeto.
    Por outro lado, se havia outros tipos de instrumentos e com outras imagens, estes talvez fossem mais acessíveis a outras mulheres interessadas. Seja como for, esta cantiga alude, por um lado, a uma temática diferente no contexto da poesia trovadoresca – a masturbação feminina – e, por outro, traduz práticas dissidentes das regulamentadas pela Igreja. O sexo – ou, como é o caso desta composição poética, a sua simulação – podia consumar-se de modo diverso do regulamentado e permitido pela união matrimonial. Se uma abadessa conseguia ter acesso a um instrumento de prazer como este, o que impedia que uma mulher casasa também o pudesse?

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