Português: Análise do capítulo XVI de Admirável Mundo Novo

sexta-feira, 30 de agosto de 2019

Análise do capítulo XVI de Admirável Mundo Novo

            A conversa entre Mond e John é o coração intelectual de Admirável Mundo Novo. É aqui que as questões implícitas no resto do romance são explicitadas e discutidas de forma abstrata.
            A lógica que Mond fornece para suprimir o amado Shakespeare de John dá-nos uma chave crucial para entender o remanescente da conversa. O simples facto de Shakespeare ser velho significa que ele não contribui para o comportamento do consumidor. (Huxley, é claro, ignora o facto de as pessoas comprarem novas edições de Shakespeare, dos cursos universitários de Shakespeare, etc.). Embora esse motivo pareça superficial em comparação com os argumentos mais desenvolvidos de Mond, chama a nossa atenção para o fato de o consumismo ser central para o mundo de Admirável Mundo Novo. Como outras distopias, este romance não mostra apenas um mundo diferente do nosso, mostra um mundo que é um espelho nosso, com as piores características do nosso mundo desenhadas e exageradas. Uma das facetas centrais do romance de Huxley é direcionada contra o valor cada vez maior que é atribuído ao consumismo.
            Ao mostrar um mundo que suprime instituições e experiências que são sagradas no nosso próprio mundo, a fim de abrir caminho para o desenvolvimento dos valores do consumidor, Huxley demonstra um conflito de valores que existe na nossa própria sociedade. O "valor" que impulsiona o consumidor é simplesmente a satisfação dos apetites. Em Admirável Mundo Novo, esse valor foi desenvolvido a tal ponto que as pessoas são "adultas durante o horário de trabalho", mas são bebés nos momentos de lazer e nos relacionamentos. Portanto, a primeira crítica de Huxley ao consumismo é que ele é infantil – os adultos devem ser capazes de outras coisas.
            Se o consumo é a "felicidade" a que Mond se refere na sua descrição do Estado Mundial, o outro valor em que a sua sociedade se baseia é a "estabilidade". No pensamento de Mond, felicidade e estabilidade dependem uma da outra. A estabilidade da qual está a falar é a estabilidade económica, o ciclo ininterrupto de produção e consumo. Mas a(s) estabilidade(s) emocional, psicológica e social também são importantes, porque todas elas contribuem para o primeiro tipo de estabilidade.
            O argumento de Mond sobre as coisas que devem ser sacrificadas para criar uma sociedade "estável e feliz" pode ser lido, ironicamente, como um argumento segundo o qual os nossos valores são incompatíveis com o comportamento do consumidor e a estabilidade económica. Esses valores que ele sacrifica podem ser resumidos da seguinte forma:
Sentimentos, paixões, compromissos e relacionamentos. Os cidadãos do Estado Mundial não têm pais, mães, maridos, esposas, filhos ou amantes, porque esses relacionamentos produzem instabilidade emocional (e, portanto, social), contenda e infelicidade. Embora seja fácil pensar em maneiras pelas quais os relacionamentos tornam as pessoas infelizes, pode ser difícil para o leitor entender porque Mond acha que esses relacionamentos criam fundamentalmente instabilidade, quando o bom senso e a tradição ditam exatamente o oposto, que a família é uma das instituições estabilizadoras da nossa sociedade. Uma resposta pode ser encontrada no capítulo 3, na palestra que Mond dirige aos alunos. Aí ele argumenta que a parte mais perigosa dos compromissos amorosos com outras pessoas é a força do sentimento envolvido. Além disso, sustenta que todos os sentimentos e paixões surgem de impulsos presos, como o desejo que se experimenta quando não se pode ter imediatamente o amante que se deseja. Essa é provavelmente a base para sua ideia de que a necessidade de gratificação imediata do consumidor está em desacordo com os compromissos humanos de longo prazo.
Igualdade. Mond é bastante franco sobre o facto de a estabilidade social depender da desigualdade. A maior parte da sociedade terá de executar tarefas desinteressantes na maioria das vezes. Essa característica da sociedade do Estado Mundial não é de modo algum peculiar ao Estado Mundial. De facto, provavelmente é verdade para todas as sociedades que já existiram. Pode até ser possível argumentar que a nossa própria sociedade tem tanta desigualdade quanto o Estado Mundial, e que Mond é apenas mais honesto sobre isso, recusando-se a prestar atenção ao ideal de que todos os seres humanos são criados iguais. No entanto, o completo abandono do ideal de igualdade leva a resultados terríveis. A maioria dos embriões humanos no Estado Mundial é alterada para que o seu potencial de excelência ou crescimento seja atrofiado. Quando a comparação é feita entre o mundo do romance e o nosso, surgem em nós perguntas preocupantes, em vez de conclusões distintas. Dado que a estabilidade económica e social depende de uma distribuição desigual do trabalho, criará isso contradições destrutivas com o nosso ideal democrático de que os indivíduos são iguais? (Este tema está claramente em dívida com os escritos de Karl Marx, cujas ideias fazem parte do contexto intelectual deste romance. Não é por acaso, por exemplo, que o sobrenome do dissidente Bernard seja Marx.).
Verdade. Mond diz que a ciência deve ser suprimida, porque uma sociedade baseada na busca da felicidade também não pode estar comprometida com a verdade. Ele pode querer dizer que a ciência, e a busca da verdade de maneira mais geral, tem uma tendência irresistível para derrubar formas antigas e estabelecidas de encarar as coisas. A autoridade e a sabedoria convencional contribuem ambas para a estabilidade da sociedade e, na busca da verdade, ambas são passíveis de serem interrogadas.
Arte. A arte não é um produto de consumo e a grande arte extrai o seu objeto de sentimentos, paixões, compromissos e relacionamentos, acima discutidos.
▪ Uma última categoria de experiências sacrificadas no Estado Mundial pode ser simplesmente rotulada de "problemas". Huxley pode argumentar que valorizamos os problemas (velhice, morte, dúvida, até sofrimento), porque valorizamos as respostas que elas produzem nos seres humanos. Mond, porém, descarta-os por os considerar a "sobrecompensação para a miséria".
            Uma crítica que se pode dirigir à linha argumentativa de Mond é que os princípios do Estado Mundial o beneficiam, dado que ele está no topo da classe dominante e goza de isenção das leis que faz. Poderíamos facilmente descartar tudo o que ele diz, com base no facto de que o seu verdadeiro interesse é a estabilidade de sua própria posição, e não a estabilidade e a felicidade da sociedade como um todo. Por outro lado, seria um erro simplesmente descartar o seu argumento de imediato, porque ele possui considerável poder e subtileza, desafiando o leitor a contestá-lo nos seus próprios termos.

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