Português

terça-feira, 8 de outubro de 2019

Análise do capítulo II de Sermão de Santo António aos Peixes

      No segundo capítulo, inicia-se a Exposição, com uma interrogação retórica que identifica o destinatário aparente do sermão (os peixes) e mostra algum desalento do pregador: “Enfim, que havemos de pregar hoje aos peixes?”. Nele, predominam a ironia e a alegoria, por exemplo quando Vieira afirma que se dirige aos peixes, quando, na realidade, quer visar os homens, nomeadamente os habitantes do Maranhão que não se deixam converter. A resposta a essa pergunta é profundamente irónica, ao afirmar que os peixes são o “pior auditório” (= os homens), precisamente porque são “gente (…) que se não há de converter”.
            Neste parágrafo ainda, inicia-se a Propositio (Proposição), que terminará em “E onde há bons, e maus, há que louvar e que repreender”.
            De seguida, enumera duas qualidades dos peixes em geral: ouvem e não falam, qualidades essas que contrastam com um defeito: não se convertem. Este primeiro parágrafo introduz a oposição entre os peixes e os homens (bons / maus ouvintes) e inicia a crítica ao comportamento destes últimos pela sua ausência de conversão. No entanto, essa insensibilidade à palavra de Deus é tão costumeira, tão habitual (“Mas esta dor é tão ordinária”), que o orador quase não a sente (“já pelo costume quase se não sente.”). Por isso, não falará “em Céu nem Inferno”, o que tornará menos triste o sermão, comparativamente aos que costuma pregar aos homens, facto que constitui nova ironia, pois os peixes são uma alegoria daqueles, como sabemos.
            Em suma:

            Em todo o lado, há bons e maus, tal como sucede com os peixes: os primeiros devem ser louvados e os segundos censurados, como afirmaram São Basílio [“Não há só que notar (…) e que repreender nos peixes, senão também que imitar, e louvar.”] e o próprio Jesus Cristo (“… diz que os pescadores recolheram os peixes bons, e lançaram fora os maus…”), que comparou a sua igreja a uma rede de pesca, da qual os pescadores recolhiam os peixes bons e lançavam fora os maus, o que leva Vieira a concluir que “há que louvar e que repreender”.
            Note-se que o orador trata os peixes como “irmãos” (apóstrofe), estabelecendo assim a ligação com os homens, que são, na verdade, o alvo do seu sermão, o seu auditório e quem ele pretende atingir.
            Daqui, o padre Vieira parte para a divisão/a estrutura/a apresentação do plano do sermão: no primeiro momento, procederá ao louvor das virtudes dos peixes (caps. II – em geral – e III – em particular) e, no segundo, procederá à repreensão dos seus vícios (caps. IV – em geral – e V – em particular): “Suposto isto, para que procedamos com clareza, dividirei, peixes, o vosso sermão em dois pontos: no primeiro louvar-vos-ei as vossas atitudes, no segundo repreender-vos-ei os vossos vícios”. A alegoria é evidente: os peixes funcionam como metáfora dos homens e as suas virtudes são, por contraste, a metáfora dos vícios dos homens, enquanto os vícios dos peixes são, por semelhança, a metáfora dos vícios dos homens. Este é um método adotado pelo orador que possibilita que os ouvintes possam seguir melhor as suas palavras e o seu raciocínio.
            Em suma, tal como o sal apresenta duas propriedades, também o seu sermão se organizará em dois momentos:


            O terceiro parágrafo dá-nos a conhecer os louvores/as qualidades gerais dos peixes:

▪ foram as primeiras criaturas que Deus criou (“primeiro que as aves do ar, (…) aos animais da terra, e a vós primeiro que ao mesmo homem”);

▪ foram os primeiros animais a serem nomeados quando Deus atribuiu ao Homem o poder sobre todas as criaturas;

▪ são os animais mais numerosos e os maiores (“Entre todos os animais do mundo, os peixes são os mais e os peixes os maiores”).

            Como de costume, socorre-se das palavras de figuras (como Moisés) ou passagens bíblicas como argumentos de veracidade e autoridade. Por outro lado, no final do excerto critica os homens pela sua vaidade e adulação: “mas isto é lá para os homens, que se deixam levar destas vaidades, e é também para os lugares em que tem lugar a adulação, e não para o púlpito.”.
            O quarto parágrafo contém novo louvor dos peixes: são bons ouvintes e obedientes, atentos e devotos (“é aquela obediência, com que chamados acudistes todos pela honra de vosso Criador e Senhor, e aquela ordem, quietação e atenção com que ouvistes a palavra de Deus da boca de seu servo António”.
            Em cada uma destas virtudes, lemos uma crítica aos homens por contraste, visto que se realça assim que elas estão ausentes neles.
            Esta virtude dos peixes é enunciada a partir da referência ao episódio vivido por Santo António em Arimino, cujos habitantes o perseguiram, descontentes com as suas críticas, e o quiseram expulsar da terra ou até matá-lo, o que o levou a mudar o local e o destinatário da pregação, dirigindo-se então ao mar e passando a pregar aos peixes. Vieira compara o comportamento dos homens com o dos peixes, pois, se estes não o escutavam e o perseguiram, os peixes acorreram à pregação e escutaram-na com grande obediência, ordem, quietação e atenção “o que não entendiam”. O contraste é evidente: “Os homens perseguindo a António, querendo-o lançar da terra e ainda do mundo…” / “… os peixes em inumerável concurso acudindo à sua voz, atentos e suspensos às suas palavras, escutando em silêncio e com sinais de admiração e assenso…”; “… na terra os homens tão furiosos e obstinados e no mar os peixes tão quietos e tão devotos…”.
            O comportamento de homens e peixes é tão díspar e contrário ao que seria de esperar que o padre Vieira conclui: “Aos homens deu Deus uso de razão, e não aos peixes: mas neste caso os homens tinham a razão sem o uso, e os peixes o uso sem a razão…”. Ou seja, através deste quiasmo pretende destacar a forma como os animais se comportavam como se possuíssem razão (que Deus não lhes tinha dado) – ouvindo atentamente o pregador –, enquanto os homens, a quem tinha sido dado o entendimento racional, se comportavam como seres irracionais, perseguindo e maltratando Santo António: “Poderia cuidar que os peixes irracionais se tinham convertido em homens, e os homens não em peixes, mas em feras…”.
            Mais uma vez fica clara a relação de contraste entre seres humanos e peixes: a vaidade daqueles versus a modéstia destes; a atitude perante a pregação do santo: perseguição por parte dos primeiros versus a devoção por parte dos segundos; os racionais comportam-se como irracionais e vice-versa.
            É curioso o facto de Vieira se referir, neste parágrafo, simplesmente a «António», não explicitando com clareza que se trata do santo, o que permite ler esta passagem do capítulo como referindo-se a si próprio, em virtude das semelhanças existentes entre a situação vivida por Santo António em Itália e a que ele enfrentava no Brasil, salientando, assim, a incompreensão de que também é vítima.
            Algo semelhante sucedeu a Jonas, que foi miraculosamente salvo por uma baleia após ter sido atirado ao mar pelos homens. Viajando aquele num navio, durante uma tempestade foi atirado ao mar pelos homens, para ser comido pelos peixes. No entanto, uma baleia engoliu-o e conduziu-o até à cidade de Ninive para pregar aos habitantes locais (os assírios). Esta disparidade de atitudes leva o orador a interrogar-se: “É possível que os peixes ajudam à salvação dos homens, e os homens lançam ao mar os ministros da salvação?”. E, de imediato, através de uma apóstrofe conclui que os peixes são melhores que os homens. Em suma, “Os homens tiveram entranhas [= tiveram coragem] para deitar Jonas ao mar, e o peixe recolheu nas entranhas (= sentido literal do nome) a Jonas para o levar vivo à terra.” (trocadilho). De novo, procura realçar-se “o contraste entre a brutalidade daqueles que deviam ter compaixão – os homens – e a compaixão daqueles que deviam revelar brutalidade – os animais.” (PINTO Alexandre Dias, Entre Nós e as Palavras 11, Santillana).
            O quinto parágrafo refere-se às “virtudes naturais e próprias dos peixes”, abrindo com a referência às palavras de Aristóteles (repita-se que estas citações servem para reforçar e credibilizar a argumentação do orador). A virtude agora mencionada é a liberdade e a indomesticabilidade dos peixes: “Falando dos peixes, Aristóteles diz que só eles entre todos os animais se não domam nem domesticam.”. Tal sucede porque vivem afastados dos homens, em retiro, arguta e sensatamente: “Peixes, quanto mais longe dos homens, tanto melhor…”. Vieira enumera, de forma gradativa, os animais que se domam ou domesticam, em contraste com os peixes:
Terrestres                                                            Do ar
. “o cão é tao doméstico”                           . “o papagaio nos fala”
. “o cavalo tão sujeito”                               . “o rouxinol nos canta”
. “o boi tão serviçal”                                    . “o açor nos ajuda e recreia”
. “o bugio tão amigo e lisonjeiro”             . “grandes aves de rapina (…)
. “até os leões e tigres (…) se                       recebem o sustento”
amansam”
Peixes
. “lá se vivem nos seus mares e rios”
. “lá se mergulham nos seus pegos”
. “lá se escondem nas suas grutas”
            Atente-se no uso do advérbio com valor temporal «lá», que traduz a distância que os peixes mantêm dos homens, e do determinante possessivo («seus», «suas»), que clarifica que o espaço onde habitam em harmonia não só é longínquo como lhes pertence.
            Por outro lado, a liberdade que caracteriza a existência dos peixes é contraposta ao cativeiro em que vivem os restantes animais:
. “Cante-lhe (…) o rouxinol”
. “diga-lhes ditos o papagaio”
. “vá com eles (…) o açor”
. “faça-lhe bofonerias o bugio”
. “contente-se o cão (…) roer o osso”
. “preze-se o boi (…) formoso e fidalgo”
. “glorie-se o cavalo mastigar freios dourados”
. “tigres e leões comem carne”
MAS
. “na sua gaiola”
. “na sua cadeia”
. “nas suas pioses”
. “no seu cepo”
. “levado (…) pela trela”
. “com o jugo sobre a cerviz puxando pelo arado e pelo carro”
. “debaixo da vara e espora”
. “presos e encerrados”

            Face ao exposto, prudentemente os peixes devem manter-se afastados dos homens, para evitarem o cativeiro. Se agissem de forma diferente, poderiam obter algumas vantagens, como comida, por exemplo, mas pagariam um preço elevado: o cativeiro.
            Este passo do sermão relaciona-se diretamente com o objetivo global da obra, que era a defesa dos índios do Maranhão, explorados e escravizados pelos colonos portugueses. Por analogia, pode concluir-se que também aqueles deveriam viver afastados dos segundos. Por outro lado, o padre Vieira, ao enumerar os vícios, pretende que os ouvintes tomem consciência deles e os corrijam. É a moralização dos costumes que o orador procura, em suma.
            De seguida, no sexto parágrafo, Vieira socorre-se de dois argumentos de autoridade para comprovar a sua pregação. O primeiro é a referência ao dilúvio, ao qual sobreviveram todos os peixes, ao contrário dos demais animais, cuja sobrevivência se restringiu a um casal de cada espécie. Além de todos terem escapado, os peixes “ficaram muito mais largos que dantes, porque a terra e o mar tudo era mar.”. E por que razão não sofreram eles esse “universal castigo”? Porque eram os únicos animais que viviam afastados dos homens e, por consequência, dos seus pecados, daí não terem sido castigados, como o comprovam as palavras de S. Ambrósio. O dilúvio era, pois, “um castigo universal que Deus dava aos homens por seus pecados, (…) para que o mesmo mundo visse que da companhia dos homens que lhe viera todo o mal e que por isso os animais que viviam mais perto deles foram também castigados e os que andavam longe ficaram livres.”.
            O outro argumento de autoridade prende-se com Santo António, o qual, para se aproximar de Deus, se afastou dos homens, abandonando a casa dos seus pais e recolhendo-se numa religião que professava a clausura, na medida em que a sua existência se encontrava contaminada pelo pecado. “E, porque nem aqui o deixavam os que ele tinha deixado…”, abandonou Lisboa, depois Coimbra e, por fim, Portugal. Mas o santo não se ficou por aí, tendo também mudado o hábito, o nome, ocultado a sua sabedoria, até se ter isolado num ermo, de modo que “tanto mais unido com Deus, quanto mais apartado dos homens.”. Como afirmam Auxília Ramos e Zaida Braga (Sermão de Santo António aos Peixes. Porto Editora. 2010 – p. 29), “O capítulo termina com um novo apelo aos peixes para que sigam o exemplo de Santo António que tudo deixou, a sua cidade e até o seu país, alterando a sua própria identidade, o seu saber (“Para fugir e se esconder dos homens, mudou o hábito, mudou o nome, e até a si mesmo se mudou, ocultando a sua grande sabedoria debaixo da opinião de idiota”). Esta atitude radical foi a forma que encontrou para se afastar da maldade dos homens e se encontrar com Deus, optando por uma vida solitária, afastado do convívio com os homens.

            Em suma, neste capítulo, o padre António Vieira enumera as virtudes gerais dos peixes:
▪ foram as primeiras criaturas que Deus criou;
▪ são os animais mais numerosos e os maiores;
▪ são bons ouvintes e obedientes;
▪ são livres e não se deixam domar nem domesticar;
▪ são sensatos e prudentes (“Não condeno, antes louvo muito aos peixes este seu retiro, e me parece que se não fora natureza, era grande prudência”).

            Por outro lado, ao longo do capítulo, de forma implícita ou explícita, o padre Vieira aponta os vícios/defeitos dos homens:
▪ a vaidade e o deslumbramento face à adulação (“isto é lá para os homens, que se deixam levar destas vaidades, e é também para os lugares em que tem lugar a adulação”);
▪ a insolência e a presunção (“Os homens perseguindo a António, querendo-o lançar da terra e ainda do mundo”);
▪ a violência e a obstinação (“os homens tão furiosos e obstinados”);
▪ a crueldade irracional (“os peixes irracionais se tinham convertido em homens, e os homens não em peixes, mas em feras”);
▪ o exibicionismo (“longe dos homens e fora dessas cortesanias”).

  
            Por outro lado, este capítulo do sermão mostra, com total clareza, a forma como o padre Vieira estrutura o seu discurso e, sistematicamente, o demonstra e comprova com argumentos. Observemos:

1.º argumento: a passagem da vida de Santo António, que decidiu pregar aos peixes, tendo os peixes ocorrido, obedientemente, a ouvir a palavra de Deus.

Peixes
. ouviram a palavra de Deus pela boca de Santo António
comportamento racional
Homens
. perseguiram Santo António porque este os criticava
comportamento irracional


2.º argumento: o exemplo de Jonas, que foi lançado ao mar de um barco, durante uma tempestade, pelos homens, e engolido por uma boleia, que o manteve vivo e conduziu até à praia.

Peixes
salvam

o peixe recolheu Jonas nas suas entranhas e salvou-o
Homens
matam

tiveram entranhas para atirar Jonas ao mar

3.º argumento (de autoridade): segundo Aristóteles, dentre todos os animais só os peixes “se não domam nem domesticam” e vivem em liberdade porque vivem afastados dos homens.

Animais da terra e do ar

vivem perto do homem, agradam, ajudam-no, mas amansados, presos
Peixes

vivem afastados, longe dos homens, e livres

4.º argumento: o episódio bíblico do dilúvio, a que unicamente os peixes sobreviveram na totalidade.

Outros animais
. salvaram-se dois de cada espécie
. sofreram o castigo divino por viverem perto do homem
Peixes
. salvaram-se todos
. foram poupados do castigo divino por viverem em retiro

Bibliografia:
. Andreia Sousa e Regina Carvalho, Sermão de Santo António (aos Peixes);
. Auxília Ramos e Zaida Braga, Sermão de Santo António aos Peixes;
. Francisco Martins, Para Compreender Padre António Vieira;
. Cidália Fernandes, Argumentar é fácil;
. Margarida Martins, Análise de Textos;
. Hernâni Cidade, Padre António Vieira;
. Margarida Vieira Mendes, A Oratória Barroca de Vieira;
. António José Saraiva, O Discurso Engenhoso – Estudos sobre Vieira.

sábado, 5 de outubro de 2019

Análise do Capítulo I do Sermão de Santo António aos Peixes


            O Exórdio consiste na exposição do plano a desenvolver e das ideias a defender, sendo constituído por cinco parágrafos, iniciando-se pelo conceito predicável e terminando com a invocação a Maria.
            O primeiro período do primeiro parágrafo, ou incipit, (que é constituído por dois períodos) começa com o conceito predicável (“Vos estis sal terrae”) e termina com uma interrogação retórica: “qual será, ou qual pode ser a causa desta corrupção?”. O padre Vieira não segue os cânones retóricos, visto que não começa propriamente pelo Exórdio. De facto, o sermão começa com Vieira informando os ouvintes, suportado na frase bíblica acima referida, da natureza do assunto que vai tratar.

                O conceito predicável (“Vos estis sal terrae” = Vós sois o sal da terra) é uma frase escrita em latim, retirada da Bíblia (mais concretamente do Evangelho de São Mateus), que funciona como a confirmação, através de textos da Escritura, do tema inicial. Chama-se, pois, conceito predicável ao texto bíblico que serve de tema e que irá ser desenvolvido de acordo com a intenção e o objetivo do autor. A sua decifração far-se-á a partir da leitura dos dois primeiros parágrafos.


            A alegoria que aqui se começa a desenhar está já presente no texto bíblico: os discípulos de Jesus Cristo são o sal da terra; a terra são os ouvintes.
            O efeito do sal é impedir a corrupção. É sobre e contra essa corrupção que Vieira quer falar, é a base da sua argumentação e há de demonstrá-la no decorrer do sermão, sobretudo quando passar em revista os defeitos dos peixes. Como veremos, os defeitos, em rigor, nem chegam a ser defeitos dos peixes, porque se trata da natureza dos mesmos. E o que é natural é natural. E há de confirmar a base da sua argumentação: de facto, realmente, os colonizadores, os colonos, possuem os defeitos que Vieira lhes criticará.
            O valor simbólico do sal aparece aqui associado ao poder regenerador e purificador da Palavra de Deus.
            Note-se, por outro lado, que o sal tem duas valências: impedir a corrupção dos alimentos (valência que surge em S. Mateus) e dar sabor, temperar os alimentos (São Lucas). No entanto, o padre Vieira faz uso apenas da primeira – a de impedir a corrupção –, pois era a que se adequava à natureza do assunto que vai desenvolver.
            A partir daqui, quando o auditório já conhece que «sal» é uma metáfora de doutrina ou mensagem evangélica, o jesuíta atribui novos significados aos termos «terra» e «corrupção»: “… mas quando a terra [isto é, a sociedade] se vê tão corrupta como está a nossa [a cidade de S. Luís do Maranhão], havendo tantos nela que têm ofício de sal, qual será, ou qual pode ser a causa dessa corrupção?”. O pronome possessivo «nossa» e o determinante demonstrativo «desta» não deixam dúvidas acerca do local onde existe a corrupção. Por outro lado, o vocábulo «corrupção» surge duas vezes, bem como o adjetivo «corrupta» (uma vez explícita, outra implicitamente). A alguém restarão ainda dúvidas sobre a temática em questão?

segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Por gentileza, faleça!


A teorização do sermão (“Alegoria da Árvore”, in Sermão da Sexagésima)


Estrutura do sermão

            Conforme os preceitos retóricos clássicos, oriundos principalmente de Aristóteles, Quintiliano e Horácio, o discurso oratório devia apresentar determinada estrutura. Discrepantes, contudo, eram as opiniões acerca das partes que a integrariam, admitindo uma escala de variação entre duas a sete:

Método da oratória

            No Sermão da Sexagésima, o Padre António Vieira expôs o método que adotava na construção da sua oratória:
1. Definir a matéria;
2. Reparti-la;
3. Confirmá-la com a Escritura;
4. Confirmá-la com a Razão;
5. Amplificá-la, dando exemplos e respondendo às objeções, aos “argumentos contrários” (contra-argumentar);
6. Tirar uma conclusão e persuadir, exortar.


            Dito de forma mais simples:


O sermão no século XVII

            Durante o século XVII, o sermão foi o género literário predominante e a base da mais importante cerimónia social: a pregação.
            O púlpito constituía o último bastião da liberdade de expressão, nomeadamente durante os sessenta anos de domínio filipino em Portugal. De facto, nesse período apenas alguns sacerdotes se permitiam falar livremente, por exemplo, contra a opressão espanhola. Com a dominação filipina e consequente repressão de qualquer tipo de oposição, o púlpito tornou-se o local a partir do qual alguns padres podiam falar, criticar e acusar. Com a restauração e D. João IV, o púlpito serviu de tribuna para o comentário político e crítico ao Poder e à Sociedade; a pregação chegou a todas as classes sociais e foi ouvida por multidões que não sabiam ler.
            Por outro lado, enquanto discurso de caráter religioso, o sermão torna-se uma das armas fundamentais da Contrarreforma. Os seus traços mais significativos na época eram os seguintes:
▪ a dimensão teatral e espetacular da oratória religiosa (por exemplo, o púlpito da igreja de S. Roque, em Lisboa, configura um exemplo da importância deste elemento arquitetónico na igreja seiscentista);
▪ o púlpito constitui um palco e o pregador um ator (a oratória jesuíta ensinava ao futuro pregador, para além dos preceitos formais, como deveria dispor as pregas do hábito, os gestos que deveria fazer, o tom de voz a empregar, a linguagem fácil, etc.);
▪ o sermão tinha uma função lúdica, idêntica à das demais artes de palco da época, nomeadamente o teatro, a ópera, o ballet, os enterros, as procissões, as toradas ou os autos de fé);
▪ o seu ritual social torna-o, muitas vezes, numa prática que visa culpabilizar e admoestar os ouvintes, daí a necessidade do caráter de deleite intelectual, em que frequentemente se transformou;
▪ a associação de elementos e rituais inerentes à prática do sermão, como a luz e o incenso.
            De facto, embora já existisse há quase dois mil anos como forma de divulgação do Evangelho, ganhou preponderância em épocas de confusão doutrinal, como sucede no século XVII, no contexto da Contrarreforma, quando a Igreja se viu confrontada com a necessidade de recuperar para a fé aqueles que dela se tinham afastado e de consolidar a adesão espiritual de quem permanecera fiel a Roma. Deste modo, no Concílio de Trento elaborou-se um vasto programa de divulgação da doutrina cristã, baseado sobretudo na formação dos sacerdotes, na pregação e no ensino do catecismo. Os pregadores deveriam expor os vícios que deveriam evitar e as verdades que deveriam praticar, para poder escapar ao Inferno e alcançar a felicidade eterna.
            O sermão constituía, por isso, um grande acontecimento. Instalado no púlpito, diante da multidão expectante, o pregador desenvolvia as suas ideias num sermão de estrutura clássica: exórdio, exposição, confirmação e peroração.
            Frequentemente, o orador expunha antecipadamente o assunto do sermão e eventualmente a sua divisão em partes, de modo a facilitar a participação dos ouvintes. Por outro lado, como a confirmação poderia conter elementos (conceitos ou comparações de difícil compreensão, por exemplo) que dificultariam a compreensão e o acompanhamento do auditório, antecipar o assunto constituiria uma medida indispensável para a sua perceção e apreensão.
            O pregador teria até a esse momento atingido um duplo objetivo: expor alguns conceitos doutrinais (desempenhando assim a função didática que cada sermão deve ter), e aqueceu psicologicamente o ambiente, como convém antes de se dar início às considerações morais destinadas a comover os presentes e a fazer nascer neles o desejo de se emendarem. Nesta altura, ganha grande importância a técnica de evidenciar a enormidade dos bens e dos males mais ou menos deduzíveis do assunto exposto. Para alcançar o resultado desejado, o pregador, aumentando aos poucos o seu tom de voz, servir-se-á do arsenal retórico habitual – descrições, comparações, alegorias – e mesmo de alguns expedientes teatrais.
            A confirmação culminará com alguma consideração ou algum efeito reservado para o final devido ao seu grande poder emotivo. De seguida, o pregador, sem deixar que sesse clímax emotivo se extinga, prepara-se para a conclusão do sermão, que consiste em geral numa enumeração dos seus melhores argumentos, convenientemente ampliados.
            Os seus efeitos, porém, eram de curta duração, pois, passadas algumas semanas, a situação retornava ao mesmo.
            Nas palavras de Margarida Vieira Mendes (“Apresentação crítica”, in Sermões do Padre António Vieira), «O púlpito era um palco e o pregador um ator a tentar exibir do melhor modo possível a sua palavra, ajustando as modulações da sua voz aos efeitos visados junto do auditório. […] A pregação era um espetáculo, tanto quanto possível espetacular. […] Aliás, uma das tradicionais categorias de funções oratórias era o delectare (deleitar), para além do docere (ensinar) e do movere (mover ou influenciar o comportamento do ouvinte) e estava no espírito da Contrarreforma a captação e catequização das multidões não tanto pela razão, que se estava cada vez mais revelando perigosa para a religião de então, mas antes pela sensibilidade, pelo prazer, pelo puro gozo intelectual, e também pelo terror e piedade que moveriam (movere) os espectadores […].
            Para além dos temas religiosos, tratavam-se as questões sociais, políticas, económicas, literárias e militares. Daí que as qualidades do pregador fossem essenciais para o sucesso do sermão: a palavra fácil, a imagem sugestiva, a sonoridade da voz, o gesto teatral e arrebatado.
            Tudo isto se reflete na arquitetura dos templos barrocos, carregada de ornamentação, de imagens e palavras fulgurantes, lado a lado com os finos prazeres sensuais de aromas de incenso, música dos moletes, brilhos de luzes, faulhando de velas, refletidos de ouros, pratas, pedras preciosas, lhamas e brocados.

            Texto adaptado de:
. MORÁN, Manuel, e ANDRÉS-GALLEGO, José, 1995. “O Pregador”. In VILLARI, Rosario (Dir.), 1995. O Homem Barroco (tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo). Lisboa. Presença (pp. 117-142);
. MENDES, Margarida Vieira, 1992. “Apresentação crítica”. In Sermões do Padre António Vieira (apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de Margarida Vieira Mendes). 4.ª ed. Lisboa: Editorial Comunicação (pp. 15-17) (1.ª ed.: 1982).

Definição de «sermão»

            O sermão insere-se na arte de pregar, é uma forma de oratória, consistindo num discurso sagrado sobre alguma verdade da doutrina de Cristo, o que significa que se destina a ser proferido oralmente.
            O vocábulo sermão deriva, etimologicamente, do latim sermo, onis, que significa conversação. Posteriormente, sermão acabou por significar, por um lado, repreensão e, por outro, convencer, persuadir alguém a seguir determinado caminho moral ou religioso.


A oratória


            A oratória, ramo da argumentação, é a «arte de discursar em público, com o objetivo de persuadir o auditório».
            A oratória agrupa os autores que se empenharam, pela eficácia da palavra, em persuadir os outros da justiça e da verdade das suas causas. Há várias espécies de oratória:
- forense ou jurídica: defende os direitos civis dos cidadãos;
- política: incide sobre as deliberações referentes ao bem comum das sociedades;
- académica: versa temas culturais;
- sagrada: o orador fala em nome de Deus e proclama uma mensagem ligada aos valores divinos.
            De uma forma mais simplista, podemos dividir a oratória em dois grandes conjuntos: a profana, cujos maiores representantes foram Demóstenes (384-322 a.C.), na Grécia; Cícero (106-43 a.C.), em Roma; Almeida Garrett (1799-1854) e José Estêvão (1809-1862), em Portugal.
            No século XVII, a oratória adquire uma enorme importância sob a forma do sermão, perspetivado como arte de palco e a base da cerimónia social mais significativa: a pregação.
            Por outro lado, na segunda metade do século XVI e na primeira metade do século XVII, a música tornou-se muito importante no acompanhamento da mensagem sagrada. No século XVIII, a oratória musical fixou-se entre as grandes formas da história da música. São bem conhecidas as obras geniais de J. S. Bach (1685-1750), Haendel (1685-1759), Haydn (1732-1809) e Mozart (1765-1791).

            Uma regra que o orador deve ter em consideração é o bom conhecimento do auditório a quem se dirige. Quanto mais for esse conhecimento, maiores serão as possibilidades de êxito das ideias/teses que defende, daí a necessidade de um prévio estudo do perfil do destinatário. O orador tem que adequar a sua argumentação, a sua linguagem às características do seu auditório/destinatário.
            O método de pregação do Padre António Vieira, por exemplo, consiste na utilização de lugares-comuns facilmente reconhecíveis pelo seu auditório, que, seguindo as normas da época, desenvolvia a argumentação dos seus sermões recorrendo a “conceitos predicáveis”.
            Outra regra da argumentação é que não age sobre evidências, pois o que é evidente não necessita nem de demonstração nem de apresentação de argumentos a favor ou contra. A argumentação não pode ser a afirmação da verdade, porque todo o verdadeiro diálogo nunca esgota a possibilidade de investigação da verdade. A argumentação não pode partir do pressuposto de que uma conclusão retórica seja, por definição, a conquista de uma verdade universal. Argumentar é procurar coerência onde existe dúvida, é descortinar sentido num paradoxo, mas também pode ser dar sentido a uma absurdidade ou a uma contradição.
            A argumentação é sobretudo contestação.

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...