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terça-feira, 1 de agosto de 2023

Análise do poema "Ode a uma estrela", de Pablo Neruda


 
Ao subir à noite
no terraço
de um arranha-céus altíssimo e
aflitivo
pude tocar a abóbada noturna
e um ato de amor extraordinário
apoderei-me de uma estrela celeste.

 
Era uma noite negra
e eu deslizava
pelas ruas
com a estrela roubada em meu bolso.

 
De trémulo cristal
parecia
e era
num átomo
como se levasse
um pacote de gelo
ou uma espada de arcanjo na
cintura.

 
Guardei-a,
temeroso,
debaixo da cama
para que ninguém a descobrisse,
sua luz poré
atravessou
primeiro
a lã do colchão,
depois
as telhas,
e o telhado da minha casa.

 
Incómodos
tornaram-se
para mim
os afazeres mais comuns.

 
Sempre com essa luz
de astral acetileno
que palpitava como se quisesse
retornar para noite,
eu não podia
dar conta de todos
os meus deveres
cheguei a esquecer de pagar
as minhas contas
e fiquei sem pão nem mantimentos.

 
Enquanto isso, na rua,
se amotinavam
transeuntes, boémios
vendedores
atraídos sem dúvida
pelo insólito clarão
que viam sair de minha janela.

 
Então
recolhi
outra vez minha estrela,
com cuidado
a envolvi num lenço
e mascarado entre a multidão
passei sem ser reconhecido.

 
Tomei a direção oeste,
rumo ao rio Verde,
que ali sob o arvoredo
flui sereno.

 
Peguei a estrela da noite fria
e suavemente
lancei-a sobre as águas.

 
E não me surpreendeu
notar que se afastava
como um peixe insolúvel
movendo
na noite do rio
seu corpo de diamante.

 
    Ode a uma estrela” é um poema que integra a obra Terceiro livro das odes, publicado em 1957, e que foi traduzido para português do original “Oda a uma estrella”, que possui nove estrelas, enquanto na versão em língua portuguesa contém onze. Por outro lado, a composição vem acompanhada por belíssimas ilustrações, em folhas duplas, de modo que ela aparece numa das folhas e, na outra, predomina a ilustração. É por esta razão que existe um número diferente de estrofes nas duas versões.
    O que é uma ode? O vocábulo «ode» é de origem grega e significava «canto» (de exaltação de herói ou de um feito). No caso vertente do poema de Neruda, formalmente é composto por versos brancos e sem métrica regular, enquanto, no que diz respeito ao conteúdo, se centra na introspeção sobre o sofrimento de amor, o que está de acordo com a visão épica da existência que a ode atual busca, dado que a temática referida é universal porque aplicável a todos os homens.
    A primeira estrofe do poema coloca-nos perante um sujeito poético que se encontra aflito, à noite, num terraço de arranha-céu. Estes três versos iniciais permitem deduzir que se trata de alguém que mora numa grande cidade, habitada por muitas pessoas (a referência ao arranha-céu), mas que se sente aprisionado por essa selva de pedra. Num ímpeto de liberdade, toca a “abóbada noturna”, uma imagem poética da noite, arqueada como uma abóbada. Depois rouba, num extraordinário ato de amor, rouba uma estrela do céu.
    Na segunda estrofe, na noite negra, o sujeito poético desliza pelas ruas com a estrela roubada, que guarda no seu bolso. Chegado a casa, acondiciona-a, receoso, debaixo da cama, para que ninguém a descobrisse, no entanto o seu brilho é tão intenso que a sua luz / o seu brilho atravessa a lã do colchão, as telhas e o telhado da sua casa. A frustração surge quando o «eu» constata que o brilho da estrela torna incómodos os seus afazeres mais simples. A estrela roubada continua a brilhar intensamente, à semelhança das fagulhas que se soltam de uma soldagem, e quer retornar à noite de onde foi retirada. Este facto impede o «eu» de executar todos os seus deveres, chegando mesmo a esquecer-se de pagar as suas contas, ficando sem pão e mantimentos, isto é, a preocupação com a estrela afeta não só as questões menores da sua vida, mas também o essencial, como a alimentação. Fazendo uma leitura metafórica do poema, o sujeito poético não é feliz, dado que o que ama (a estrela como metáfora da mulher) tem vida própria e não o quer.
    Enquanto isso, na rua, aglomeram-se diferentes pessoas, todas atraídas pelo brilho incomum que sai da casa do sujeito lírico, o que torna a sua vida ainda mais complicada. Todo este tumulto à frente da sua residência leva-o a recolher a estrela, envolvê-la num lenço e sair, mascarado, com ela, para não ser reconhecido.
    O «eu» caminha em direção ao rio Verde e lança a estrela suavemente sobre as águas. E constata que não fica surpreendido com o comportamento do astro ao ser lançado ao rio: ela move o seu corpo de diamante, como um peixe insolúvel, adjetivo que tanto pode significar aquilo que não se dissolve como aquilo para o que não há solução.
    Assim sendo, podemos concluir que a estrela tem vida própria, tanto que não se adequa aos padrões atuais da vida de um homem comum; por outro lado, ela representa, para o ser que a rouba, um problema e uma fonte de inquietação e perturbação.
    Quer isto dizer que a composição poética nos fala de um homem comum (vive numa grande cidade, precisa de trabalhar ara comprar pão e mantimentos e pagar as suas contas, ou seja, é uma pessoa como outra qualquer) que, por gostar de estrelas, rouba uma e, ingenuamente, a esconde em sua casa. Porém, a estrela parece adquirir vida própria, não se adapta à vida deste homem.
    Lido metaforicamente, o poema coloca-nos na presença de um homem que, num desatino causado pela paixão, rouba do céu uma estrela, com a intenção de a ter só para si. Deste modo, Neruda suscita o tema da paixão e da possessão do amor, isto é, suscita em nós o questionamento sobre os limites do verdadeiro amor ou como são as relações entre o amante e o ser amado. No final, essa relação de posso do objeto desejado torna-se uma relação de privação com esse objeto de desejo, dado que entrega a estrela ao rio.
    Prosseguindo a leitura metafórica do poema, Neruda constrói nele uma metáfora do ser humano e das relações amorosas: o que é o ser amado em relação àquele que o ama; até que ponto se pode amar, sem que esse amor sufoque, anule, a pessoa amada; como identificar a linha ténue que separa a paixão da posse.
    Além da metáfora, o poema gira em torno da metonímia. Do alto de um arranha-céu, o sujeito poético, enlouquecido de amor, toca a abóbada noturna e apossa-se da estrela, que se faz notar sobretudo através da emissão de um brilho intenso. Por isso, o objeto roubado é comparado a diversas coisas, como a um “trémulo cristal”, a “um pacote de gelo” ou a “uma espada de arcanjo na cintura”, tal é a sua delicadeza e incandescência.
    Ao entrar em casa e guardar a estrela para que ninguém saiba que a possui, a luz que ela emite vai do micro para o macroespaço, atravessando o colchão, as telhas e saindo da casa pelo telhado. Assim sendo, os seus raios alcançam o espaço externo, apesar dos esforços do sujeito poético em esconder o objeto amado.
    Dentro desta conceção metonímica da estrela, na sexta estrofe, a estrela, ou mais precisamente a sua luz, adquire traços de personagem. Mais do que isso, personifica-se: “palpitava como se quisesse / retornar para a noite”. Ou seja, estamos na presença de uma estrela com desejos e vontades. Nesse momento, o sujeito poético apercebe-se de que ele e o objeto amado possuem interesses conflituantes: “eu não podia / dar conta de todos / os meus deveres / cheguei a esquecer de pagar / as minhas contas / e fiquei sem pão nem mantimentos”. De modo semelhante, do lado de fora da casa, amontoa-se um conjunto de pessoas, cuja atenção é despertada não pela estrela em si, mas pelo brilho que emite e que a casa não pode conter por ser tão intenso: sai pela janela da casa e chega ao espaço externo.

sexta-feira, 28 de julho de 2023

Organização, registo e tratamento de informação


    Ouvir um texto (ou um professor) e tirar apontamentos ao mesmo tempo é difícil e exige treino, trabalho e preparação. Além disso, é impossível registar tudo o que se ouve, pelo que é fundamental selecionar a informação realmente importante e registá-la de forma sintética. São as chamadas ideias-chave.
    Deste modo, para se ter um bom desempenho nesta atividade de ouvir, selecionar e registar a informação, é importante seguir os passos seguintes:

1.º) Se se conhecer antecipadamente os tópicos, organizar uma grelha de registo a partir da listagem dos tópicos.

2.º) Ouvir atentamente o texto e ir tomando notas, usando abreviaturas, traços, setas, etc.

Tomar notas consiste em registar:

i) as ideias-chave;

ii) palavras soltas;

iii) as expressões mais importantes.

3.º) Organizar as notas tomadas.

4.º) Sintetizar o texto a partir das notas tomadas.

5.º) Ouvir novamente o documento, se for possível, e confirmar, corrigir ou completar o texto produzido.

 

quinta-feira, 27 de julho de 2023

O caso da loira misteriosa, de John Banville


    
A ação decorre em Bay City, Califórnia, no início dos anos 50 do século passado, num momento em que o detetive Marlowe se vê com pouco trabalho e só.
    É então que lhe aparece uma nova cliente, Clare Cavendish, uma mulher casada que deseja que Marlowe encontre Nico Peterson, seu ex-amante. Rapidamente, descobre que o indivíduo morreu há dois meses num caso de atropelamento e fuga. Para sua grande surpresa, quando comunica o facto a Clare, esta responde-lhe que já sabe e acrescenta que, afinal, procurou o detetive porque viu Nico, poucos dias antes, na rua, quando viajava de táxi. Assim sendo, quem seria a pessoa atropelada? Difícil de saber, pois o seu corpo foi cremado após a autópsia. O que se sabe é que o falecido tinha a carteira de Peterson no bolso, vestia as suas roupas e foi identificado no local do acidente pelo gerente do clube Cahuilla. A própria irmã do sujeito, no dia seguinte, confirmou que era ele.
    Depois de conversar com uma aspirante a atriz que conheceu Peterson, Marlowe desloca-se à casa onde este morou, onde é surpreendido pela sua irmã e, pouco depois, ambos recebem a visita inesperada de dois mexicanos armados. O detetive é agredido e deixado inconsciente e Lynn Peterson levada pelos desconhecidos. 
    Já em sua casa, recebe a visita de Clare Cavendish. Os dois fazem amor e, logo depois de a mulher partir, recebe uma chamada da polícia a comunicar-lhe que encontraram o corpo de Lynn muito mal tratado numa berma. Marlowe desloca-se até ao local e mantém um breve diálogo com Bernie Ohls, um polícia duro e rude que toma conta do caso. Dois dias depois comparece no funeral e, de seguida, regressa ao escritório. Assim que estaciona o carro, é abordado por um indivíduo que o coage a entrar no veículo de Lou Hendricks, um criminoso dono de um casino ligado ao negócio do jogo, da prostituição e da droga, entre outros, que também está interessado no caso de Nico Peterson, por isso oferece mil dólares a Marlowe para trabalhar para si e procurar o homem desaparecido, todavia o detetive recusa.
    Nessa noite, recebe uma chamada de Clare para ir a sua casa: o irmão, Everett, sofreu uma overdose enquanto chutava para a veia. Ele chama o Dr. Loring. Quem costumava fornecer-lhe a droga era Nico e foi Everett quem o apresentou à irmã. O médico dá-lhe uma injeção e vai-se embora.
    No capítulo XVIII, Marlowe visita de novo o Cahuilla Club, na pessoa de Floyd Hanson, o dono, que lhe põe algo na bebida que o deixa inconsciente. Quando desperta, apercebe-se de que está amarrado a uma cadeira, com as mãos atrás das costas, guardado por um grupo de homens chefiado por Wilberforce Canning, um grande investidor imobiliário da região. No mesmo espaço e igualmente presos estão os dois mexicanos que raptaram e assassinaram Lynn. Um deles encontra-se já morto. Por outro lado, ficamos a saber que Canning é pai de Nico e Lynn e quer saber o motivo por que Marlowe procura o filho. O detetive é torturado (a sua cabeça é enfiada na piscina duas vezes) para confessar o que sabe sobre todo o caso, mas, como nada diz, deduz que terá o mesmo destino dos mexicanos, por isso consegue desequilibrar um dos homens que o segura e retirar a arma com que Hanson o ameaça (este não tem coragem para disparar). Depois, obriga os bandidos a entrar na piscina até à parte mais funda e foge do local, ainda grogue pela droga com que foi posto inconsciente. Pouco depois, pára o carro junto a uma cabina telefónica e liga para a polícia. Esta prende os facínoras todos, à exceção de Canning, que consegue fugir, apanhando um avião rumo a Toronto.
    De noite, Marlowe recebe uma chamada de Bernie, comunicando-lhe que Floyd Hanson se havia enforcado na prisão. Uma segunda chamada acontece, passada uma semana sem novidades. Do outro lado da linha telefónica está Nico Peterson. O encontro entre ambos tem lugar num local público. Nico pede-lhe que entregue a Lou Hendricks uma mala contendo dez quilos de heroína, enviada do México por um traficante chamado Mendy Menendez. Este costumava enviar uma encomenda do género a cada dois meses e Hendricks tratava da distribuição da droga. Nico era o correio. O seu aspeto e o seu caráter confirmam aa suspeitas do detetive de que, na verdade, Clare nunca tinha sido amante do traficante. Nico tinha decidido reter o produto e fazer o negócio com outra pessoa, só que não resultara, porque a pessoa em questão tinha sido assassinada pela esposa depois de esta o ter surpreendido com uma amante.
    A confissão acontece: Nico frequentava o clube de Hanson, dado que o chantageava depois de, enquanto homossexual, o ter tentado seduzir quando o irmão de Lynn era jovem. Os dois fingiram a morte do próprio Nico: vestiram um vagabundo que trabalhava no clube de Hanson com as roupas de Nico, depois de o primeiro o ter provavelmente assassinado, ou o indivíduo ter morrido de  causas naturais, e levaram-no para a estrada num carrinho de mão. Previamente, ele combinara com a irmã identificar o corpo como sendo o seu. Antes de se separarem e depois de Marlowe aceitar entregar a mala a Hendricks, Nico confirma que nunca se envolveu romanticamente com Clare, que ela se situa num estrato bem superior ao seu e que jamais olharia para ele de forma sentimental.
    Marlowe telefona a Bernie Ohls e sintetiza-lhe os últimos acontecimentos (a existência de Peterson enquanto mula de droga de Menéndez, a ideia de aquele guardar um carregamento para si e o vender a italianos, a não concretização do plano, a fuga de Hendricks), acrescentando que lhe enviou a chave do cacifo onde guardou a mala com heroína pelo correio.
    A pedido do detetive, este e Clare encontram-se na casa dela. Lá, encontra-se também Terry Lennox, um velho conhecido de Marlowe e o verdadeiro amante de Clare, cuja mulher tinha sido assassinada anos antes, o que levou à sua fuga para o México (havia suspeitas de que tinha sido ele a assassiná-la), onde forjou o seu suicídio e se sujeitou a uma intervenção cirúrgica de alteração do rosto. Em todo o processo, foi auxiliado por Menéndez e Randy Starr, um sujeito que estivera com eles na guerra, bem como pelo próprio detetive. Na realidade, Terry chamava-se Paul Marson e era natural de Montreal, não de Salt Lake City.
    Terry instruiu Clare para se encontrar com Marlowe em nome de Menéndez, para procurar Nico. O envolvimento físico pode ter resultado de uma opção da mulher para convencer o detetive a prosseguir a investigação ou de uma vontade autêntica de se envolver com ele. Por sua vez, o mexicano enviou os dois assassinos com a mesma finalidade. Pelo caminho, fizeram Lynn como vítima. Entretanto, entra na sala Everett. Ao reconhecer Terry, identifica-o como o culpado pela sua iniciação no vício da heroína e aponta-lhe uma arma. Quando aquele reage e lhe tenta arremessar um cinzeiro, Rett dispara e atinge-o mortalmente na testa.
    Marlowe liga a Joe Green, outro agente da lei. Este prende Everett, enquanto Clare amaldiçoa o irmão e chora a morte do seu amado. O detetive privado, que, afinal, não chegou a ser pago, paga o preço de se ter apaixonado por ela, enquanto reflete sobre o Terry Lennox que conhecera no passado, um homem bom e generoso, e a transformação que nele se operara.

quarta-feira, 26 de julho de 2023

Análise do poema "Laço de fita", de Castro Alves


    Este poema foi escrito em 1868 e faz parte da obra Espumas Flutuantes, publicada em 1870, a única em vida do poeta, que faleceu aos 24 anos. Além de cantar o amor nos seus textos, Castro Alves também o viveu. De facto, em meados de 1866, conheceu, apaixonou-se e tornou-se amante de Eugénia Câmara, a “dama negra”, uma atriz portuguesa. Embora não seja taxativo que o poeta tenha escrito este poema diretamente motivado por esta paixão, a realidade é que compôs várias composições lírico-amorosas movido por essa paixão.
    O poema descreve a paixão do sujeito poético por uma jovem mulher que participa num baile e usa como adereço um laço de fita no cabelo. Há que ter presente que a dança é um motivo que acompanha a humanidade deste a Pré-História, por exemplo em rituais religiosos que contemplam elementos dançantes. Além disso, é importante observar que diversos animais, nomeadamente aves, executam movimentos coreográficos relacionados com o acasalamento. Na chamada cultura ocidental, desde os poemas homéricos (a Ilíada e a Odisseia), passando pela própria Bíblia (onde encontramos a performance de Salomé para convencer Herodes a executar João Baptista) até à contemporaneidade, a dança tem acompanhado o ser humano. No caso da literatura, foi a partir do século XIX, através de artistas como Mallarmé, que se deu uma aproximação entre a literatura, nomeadamente a poesia, e a dança.
    O título do poema constitui uma sinédoque que representa o corpo da mulher amada, o qual será envolvido pelo sujeito poético numa valsa ansiosa e palpitante. Observe-se, a este propósito, a forma como o «eu» materializa progressivamente o «abraço» do par enamorado, como se pode comprovar por palavras / expressões como «prendi», «qu’enlaça», «enroscava-se», «prisioneiro», «cadeias», «elos», que estão dispostos no poema de forma a construir a imagem poética do abraço, em função do qual ele se descobre definitivamente “acorrentado” à amada.
    Por outro lado, o “laço de fita” é também a imagem projetada do casal enlaçado no momento da dança: o par amoroso “enrosca-se” suavemente como um laço de fita. Além disso, este é ainda uma espécie de serpente que «enlaça» e «enrosca», que encanta todos os que contemplam a sua beleza envolvente e sedutora, serpente essa que simboliza a descoberta e a revelação do amor e do seu fruto proibido. A tudo isto associa-se a dança como elemento de sedução e desejo que toma parte no ritual de corte e conquista. Basta recordar as singelas cantigas de amigo bailias em que a donzela convidava as amigas para bailar, sabendo que os amigos lá estariam para as ver.
    Na primeira estrofe, temos todos os aspetos importantes, que se vão repetir nas seguintes. Repete-se o motivo e explora-se o refrão, que é uma característica popular. É um poema universal, em que se desenvolve um motivo: o laço de fita como elemento simbólico e sensual. A fita é simbólica e é o elemento mais importantes do poema. A sua construção lembra uma cantiga com refrão e é dotada de uma enorme simplicidade.
    O poema abre com uma interrogação e uma apóstrofe dirigida à mulher que nos mostra que deve ser mais nova do que o «eu»: “Não sabes, criança?” De seguida, confessa-lhe a sua paixão por ela: “’Stou louco de amores”. O objeto que despertou esse sentimento é um adereço usado pela mulher: um laço de fita que ela usa no cabelo durante um baile / uma festa, um objeto metonímico (sinédoque), isto é, designa a parte da “formosa Pepita” que desperta a sua líbido. A referência ao objeto está presente em todas as estrofes, com ligeiras diferenças, mostrando a forma como o sujeito poético está envolvido pelo laço, no qual se esconde um fetiche, um desejo. Atente-se na repetição da locução prepositiva «no» no terceiro verso (“Mas onde? No templo, no espaço, nas névoas?”), que enfatiza a paixão e o modo como o «eu» a «vê» em múltiplos lugares.
    O laço de fita constitui, assim, uma metáfora que se metamorfoseia noutras: é um laço, pois prende, une. Essas metáforas acumulam-se a partir da segunda estrofe, na qual elementos da natureza são associados aos cabelos de Pepita e à sua capacidade de sedução. Assim, a associação das madeixas à “selva sombria” mostra como a mulher tinha cabelos pretos, ondulados e em abundância. Por seu turno, a imagem bíblica da serpente aponta para a ideia do pecado, de acordo com a tradição judaico-cristã: o Diabo disfarçou-se de serpente para convencer Eva a desobedecer a Deus e a comer a maçã. No caso deste poema, é o laço de fita e a forma como está preso aos cabelos que lembra a serpente, sendo o pecado o homem mais velho desejar uma jovem (menina?). Por outro lado, o nome da mulher – Pepita – constitui ao mesmo tempo um apelido e uma metáfora, contribuindo para a construção de um retrato feminino que se distancia do arquétipo romântico da figura feminina inatingível e intocável. No que diz respeito ao cabelo, estes simbolizam a sensualidade feminina. De facto, o seu agitar, o abanar de um lado para o outro, ou o desfazer do penteado, representam a sensualidade feminina. Em quantos filmes já não deparámos com o gesto da mulher sacudir os seus cabelos, com o auxílio das mãos ou não, para chamar a atenção e/ou seduzir o elemento masculino? Neste caso concreto, esta menina-mulher seduz o sujeito poético e torna-o cativo dos seus encantos.
    Na terceira e na quarta estrofes, o «eu» lírico revela que está numa festa (“Meu ser, que voava nas luzes da festa”), na qual viu subitamente a mulher e o seu laço de fita e desta forma se prendem em ambos, ele que era um pássaro livre. Esta metáfora do pássaro, que representa o «eu», mostra como, ao vê-los, deixou de ser livre (“voava”) e foi seduzido pelo adorno do cabelo. Ele tentou libertar-se dessa «prisão» (“Debalde minh’alma se embate, irrita…”), soltar-se do laço de fita, luta (“se embate”), mas é em vão, pois ele não consegue desprender-se do laço, isto é, da sedução e da paixão por Pepita: “O braço, que rompe cadeias de ferro, / Não quebra teus elos, ó laço de fita.” Atente-se no recurso à hipérbole para evidenciar a força da sedução e da paixão em que o sujeito poético se enleou: os braços que quebram cadeias de ferro são incapazes de quebrar os elos com um singelo laço de fita.
    Na quinta estrofe, o sujeito poético, de forma exaltada / entusiástica (“Meu Deus!”), reflete sobre os atributos dos astros, falenas, anjos e, como é evidente, da sua Pepita, que usa um laço de fita que o faz morrer de amor por ela. Esta referência é construído de forma contrastante, evidenciada pelo uso da conjunção coordenativa adversativa no último verso da estrofe: “Mas tu… tens por asas um laço de fita.” Nenhum ornamento, por mais belo que seja, supera o encanto daquele laço de fita.
    A sexta estrofe remete para um momento anterior recente em que a amada dançava a valsa (a forma verbal «voavas» sugere a leveza com que dançava, como se voasse, como se deslizasse no solo, sem tocar com os pés no chão). Com quem dançava ela? Com o «eu» poético ou com outro homem, enquanto aquele apenas observava? A interrogação “Por que é que tremeste?” parece sugerir que é o sujeito lírico quem efetivamente baila com a mulher. Além disso, indicia que não era apenas ele que se deixara seduzir pela mulher, pois a forma verbal «tremeste» mostra que também ela foi seduzida e o desejava, por isso tremeu.
    Por outro lado, esta estrofe confirma que a figura feminina retratada se afasta bastante do já referido modelo romântico da mulher intocável e inatingível, uma espécie de virgem pudica, pois esta tanto seduz como igualmente sente desejo. Pepita não consegue esconder que também deseja o sujeito lírico, uma atitude muito pouco comum na época, incluindo no contexto literário. A atração é mútua.
    A sétima estrofe mostra o entusiasmo e a excitação do «eu», que antevê o cenário em que os dois se encontrarão quando o baile e a festa terminarem. Ele imagina-a a despir-se (“despindo os adornos”) na alcova, isto é, no quarto, desfazendo o laço de fita e o penteado à luz da vela (“N’alcova onde a vela ociosa… crepita, / Talvez da cadeia libertes as tranças”), que ciosamente crepita. Porém, nos dois últimos versos, introduzidos por nova conjunção coordenativa adversativa, através da antítese, o sujeito poético reforça a sua condição de cativo do laço de fita: “Mas eu… fico preso / No laço de fita.”
    A última estrofe esclarece que nem mesmo a morte, anunciada através da perífrase e do eufemismo, apagará a sua atração pelo laço de fita, ou seja, confinar o que sente pela mulher. Além disso, faz-lhe um pedido: ele deseja que, quando morrer, lhe retirem os seus títulos, os seus «louros» (metáfora que traduz a ideia de um feito, uma vitória, a conclusão com sucesso de algo, e da respetiva recompensa) e o honrem com o laço de fita da mulher amada: “E dá-me por c’roa… / Teu laço de fita.”. Recordemos que os heróis da Antiguidade eram reconhecidos através da colocação na cabeça de uma coroa de louros ou de ramos de oliveira.
    À semelhança do que sucede com outras composições de Castro Alves, este poema faz uso de uma linguagem carregada de sensualidade e erotismo, projetada num laço de fita. O amor, em Castro Alves, ao contrário do que sucede com a primeira geração romântica brasileira, não é abordado como um sentimento platónico, puro e idealizado, mas como sinónimo de paixão, de sensualidade e erotismo – o que está em causa é o desejo carnal, a líbido. As mulheres que encontramos nos seus poemas são sensuais, insinuantes, sedutoras, bem longe da idealização de outros poetas.
    Em suma, neste poema, o sujeito poético descreve a sua paixão por uma mulher jovem que encontrou num baile e que usava um adereço que granjeou a sua atenção: um laço de fita. A partir daí, essa figura feminina, uma menina-mulher sensual, vai envolvendo e seduzindo o «eu» por meio desse adereço, que se torna uma espécie de fetiche para ele.
    Por outro lado, habitualmente, no campo do jogo da sedução, é o homem que seduz a mulher, contudo, neste poema de Castro Alves, há uma inversão de papéis, pois é a jovem que seduz um homem mais velho, que se lhe refere como «criança» e regista o processo de encantamento e de sensualidade vivido. Os cabelos são um elemento muito importante a ter em conta, desde logo porque é neles que se encontra o objeto de que se enamora. Neste contexto, é importante ter presente que, na época da elaboração do poema, as mulheres o usavam preso e apenas o soltavam na presença do marido.
    Quem seria esta Pepita? Afrânio Peixoto considera que seria, provavelmente, Maria Carolina de Almeida Torres, uma linda e travessa menina, enteada de uma irmã de Alvares de Azevedo, ou Sinhá Lopes dos Anjos, filha de um médico baiano, de São Paulo, correspondente e amigo de Castro Alves. Mas poderão ser outras: Eugénia, Leonídia, Agnese, Ester, Brasília Vieira, Idalina, Sinhazinha Lopes, Tereza, Joana, Lúcia ou Dalila.

terça-feira, 25 de julho de 2023

Análise do poema "O navio negreiro", de Castro Alves


    “O navio negreiro” foi publicado após a promulgação da lei Euzébio Queirós, datada de 1850, que proibia o comércio de escravos, e a legislação de 1854 que impedia o desembarque de navios negreiros nas costas brasileiras. Está dividido em seis secções, de extensão diversa, compostas sobretudo por sextilhas e versos decassílabos, abordando temáticas ao gosto romântico, como, por exemplo, a liberdade do ser humano, ou outras, como a visão sensorial e emotiva da Natureza. Por outro lado, essas seis secções partem do ambiente exterior e envolvente para o interior do navio negreiro, culminando com uma crítica acutilante à nação que permite realidades tão degradantes e infames como a escravidão.
    A primeira secção abre com a localização especial e a descrição do cenário através da anáfora “Stamos em pleno mar”, que inicia as quatro quadras iniciais. Além do mar, é referido outro espaço – o céu – e os dois confundem-se (“Doudo no espaço / Brinca o luar […] / E as vagas após ele correm… causam”), num movimento agitado, indiciado pelas formas verbais no presente do indicativo «correm», «causam» e «saltam», bem como o adjetivo «inquieta». Além destes recursos, encontramos também, logo a partir da primeira estrofe, comparações bem expressivas (“Como turba de infantes inquieta”, “como espumas de ouro”) e a animalização de elementos da Natureza (“Brinca o luar – dourada borboleta”, “Nesta seara os corcéis o pó levantam”).
    A referida confusão do mar e do céu fica bem clara: “Dois infinitos / Ali se estreitam num abraço insano”), concretizando-se “num abraço insano” que recupera a ideia de loucura anteriormente já sugerida pelo adjetivo «doudo» (verso 1). Essa confusão faz-se tanto de características físicas (“azuis, dourados”) percecionadas pelo sentido da visão como psicológicas (“plácidos, sublimes”), para posteriormente se transformar numa unidade: “Qual dos dous é o céu? Qual o oceano?” Mar e céu não se distinguem.
    De seguida, o «eu» poético foca-se na embarcação, nomeando-o (“veleiro brigue”) e identificando alguns dos seus elementos: “abrindo as velas”, “vibrações marinhas”, etc. A comparação entre o barco e as andorinhas confirma a forte conexão entre o mar e o céu, comungando ambos do mesmo movimento.
    A quinta estrofe é marcada por várias interrogações, que suscitam dúvidas para as quais parece não haver resposta: “Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço?” (note-se a associação entre a indefinição, o desconhecimento do rumo do barco e a imensidão do oceano que atravessa). De seguida, o mar adota a forma de um deserto (“neste saara”) que é atravessado metaforicamente pelas ondas (“os corcéis o pó levantam”) que “não deixam traço”). O sujeito poético, situado num plano superior contempla esse cenário (“Embaixo – o mar em cima – o firmamento”), sentindo-se feliz (“Bem feliz quem”) por poder usufruir daquela paisagem sublime (“Sentir deste painel a majestade”) e sem limites (“E no mar e no céu – a imensidade!”). As emoções do «eu» – de felicidade, prazer, êxtase – baseiam-se no que os diferentes sentidos captam: o tato (“que doce harmonia traz-me a brisa!”) e a audição (“Que música suave ao longe soa!”; “como é sublime um canto ardente!”), além da visão. Dirigindo-se a Deus (“Meu Deus!”), ele parece antever desde já o canto dos náufragos num mar imenso e que não se detém (“Pelas vagas sem fim boiando à toa!”).
    A atenção do sujeito poético centra-se, então, no veleiro. Começa por se dirigir aos “Homens do mar!” para, de seguida, os caracterizar psicologicamente (“rudes marinheiros”) e anunciar a diversidade de nacionalidades a que pertencem (“dos quatro mundos!”). Apesar disso, há um traço comum que os une: possuem um passado semelhante (“Crianças que a procela acalentara”) e têm o mar como destino (“No berço desses pélagos profundos!”).
    A estrofe seguinte abre com um apelo, traduzido pela repetição do verbo «esperar» no imperativo: “Esperai! Esperai!”. O «eu» marca claramente a sua presença no texto através do uso da primeira pessoa do pronome pessoal forma de sujeito (“deixai que eu beba…”), nutrindo-se da sua criação (“Esta selvagem, livre poesia”), caracterizada por meio de uma hipálage que a apresenta como um canto acompanhado pela música do mar (“Orquestra – é o mar que ruge pela proa / E o vento, que nas cordas assobia”).
    De seguida, o «eu» poético procura encontrar uma justificação através da anáfora: “Por que foges assim…? / Por que foges do…?”). Segue-se-lhe a expressão do desejo de o acompanhar (“Oh! quem me dera acompanhar-te”), estabelecendo uma comparação entre “a esteira” e o “doudo cometa”, numa clara retoma da relação entre o mar e o céu que foi iniciada no começo do poema e está sempre associada à ideia de loucura, novamente veiculada pelo adjetivo «doudo».
    A última quadra da primeira secção introduz um novo elemento – o albatroz –, designado como “águia do oceano” e a quem o sujeito poético faz um apelo: “dá-me estas asas”. Neste ponto, convém ter presente a influência que a literatura francesa exercem sobre os autores brasileiros pós-independência. Assim sendo, é possível associar esta referência ao albatroz ao poema “L’ Albatros”, da autoria de Charles Baudelaire, e identificar várias semelhanças: o cenário semelhante, a presença do mar, a narração de uma cena ocorrida em alto mar, os mesmos atores – os marinheiros, a identificação entre o «eu» e o albatroz, a superioridade espacial e espiritual do poeta relativamente ao homem comum, associada a um domínio aéreo e celeste. Por outro lado, enquanto símbolo da poesia, o albatroz adquire um caráter demoníaco quando é posto em paralelo com o Leviathan, o monstro bíblico que vive no mar e aí permanece se não for acordado. Capaz de devorar o Sol, Leviathan é a entidade que, por extensão, devora do divino e, assim, possibilita a imposição do mal. Tal como sucede no poema de Baudelaire, o albatroz é o companheiro do poeta e com ele desempenha a mesma tarefa de transmissor de uma mensagem. Além disso, enquanto símbolo da liberdade, esta ave estabelece, através da associação com Leviathan, uma ligação estreita com o espaço marítimo, dominando-o.
    Na segunda secção, descritiva como a primeira, o sujeito poético contra a sua atenção nos marinheiros, os quais trocaram o seu lar em terra por um novo no mar, cujo ritmo é poesia (“Ama a cadência do verso / Que lhe ensina o velho mar!”) e merece ser cantado (“Cantai!”).Apesar de o mar ser um espaço repleto de perigos e associado à morte, o «eu» incita os marinheiros a não a recearem (“que a morte é divina!”), enquanto o barco desliza e se afasta envolvido pelo sentimento da saudade (“Resvala o brigue à bolina / Como golfinho veloz. / […] Saudosa bandeira acena / As vagas que deixa após.”).
    De seguida, o sujeito lírico elogia-os por serem de várias nacionalidades e se submeterem ao desafio de enfrentarem as viagens marítimas por outras terras. A cada nacionalidade é associado um referente diferente: à espanhola, “as cantilenas / Requebradas de langor”; à italiana, a cultura lírica clássica (“Relembra os versos de Tasso”) ou a história de Romeu e Julieta (“Canta Veneza dormente / – Terra de amor e traição”); à inglesa, o espaço insular e o conquistador Nelson; à grega, a cultura clássica, pela referência a Ulisses e a Homero (“Do mar que Ulisses cortou, / […] Vão cantando em noite clara / Versos que Homero gemeu…”). Os únicos marinheiros que não possuem qualquer referente são os de origem francesa, aludindo o sujeito poético, de forma genérica, a um passado glorioso (“Canta os louros do passado / E os loureiros do porvir!”).
    A última estrofe desta secção apresenta-nos três versos que englobam todos os marinheiros (“Nautas de todas as plagas”), formando um conjunto que aprecia a viagem e que encontra nela uma certa melodia celeste (“Vós sabeis achar nas vagas / As melodias do céu!...”).
    A terceira secção é a mais breve, pois é constituída por uma única sextilha, e traça-nos uma visão genérica da situação vivida no interior do navio, caracterizada por um ambiente de horror e indignação (“Que quadro de amarguras! / E canto funeral!... Que tétricas figuras!... / Que cena infame e vil… Meu Deus! Meu Deus! Que horror!”), traduzido pelas exclamações, pelas reticências e pelas repetições. O vocabulário enquadra-se no campo semântico do terrível: “amarguras”, “funeral”, “tétricas”, “infame e vil”, “horror”. Perante este cenário, novamente observado a partir de um plano superior, o sujeito poético mostra-se, desta vez, chocado com o que vê, não escondendo a sua revolta e o seu repúdio.
    A quarta secção é bem mais extensa: seis sextilhas. Nelas, descrevem-se os horrores que acontecem no navio. O primeiro verso remete para a figura de Dante: “Era um sonho dantesco”. Tal significa que a embarcação é a encarnação do Inferno descrito pelo escritor italiano, com a diferença de que a ele vão parar não os mortos ,mas os vivos. A presença da cor vermelha remete para o «sangue», que é a consequência dos violentos castigos sofridos pelos marinheiros (“Tinir de ferros… Estalar de açoite…”), uma mancha negra que se confunde com a noite (“Legiões de homens negros como a noite”) e que causa horror mesmo que numa atividade lúdica (“horrendo a dançar”).
    A estrofe seguinte traz-nos uma figura feminina que amamenta os seus filhos não com leite, mas com sangue, num cenário horrendo: “cujas bocas pretas / Rega o sangue das mães”. Outras mulheres mais jovens (“Outras moças, mas nuas e espantadas”) movimentam-se no meio dos cadáveres (“No turbilhão dos espectros arrastados”), ansiosas e magoadas, mas em vão (“Em ânsia e mágoa vãs!”).
    As imagens paradoxais da sextilha posterior mostram-nos que o cenário descrito não gerou qualquer pranto, antes se ouve uma “orquestra irónica, estridente” e ocorre uma dança macabra, da qual emerge um ser macabro, uma serpente, que simboliza o Mal: “E da ronda fantástica a serpente / Faz doudas espirais”. A vocalização do sofrimento (“Ouvem-se gritos…”) incita ao castigo e não à piedade (“o chicote estala / E voam mais e mais…”).
    Nova imagem mostra-nos que os escravos formam uma cadeia de agrilhoados (“Presos nos elos de uma só cadeia”) que, paradoxalmente (“E chora e dança ali!”), estão unidos por diferentes sinais de loucura, em resultado da brutalidade de que são vítimas: “Um de raiva delira, outro enlouquece, / Outro, que martírios embrutece, / Cantando, geme e ri!”. O capitão do navio é, simultaneamente, o carrasco: “o capitão manda a manobra, / […] «Vibrai rijo o chicote, marinheiros! / Fazei-os mais dançar!...”.
    Os três versos iniciais da terceira estrofe repetem-se na última sextilha desta secção: o Inferno constitui um pesadelo em que já não são corpos que se anunciam, mas «sombras». Num tumulto de ruídos (“Gritos, ais, maldições, preces ressoam!”), sobressai a figura de Satanás, como se Deus estivesse surdo às preces dos escravos.
    Na quinta secção, o sujeito poético interpela Deus para que este lhe dê uma justificação para tanto sofrimento que observa (“Dizei-me vós, Senhor Deus! / Se é loucura… se é verdade / Tanto horror perante os céus?!”), o qual se apresenta como uma mancha indelével (“Ó mar, porque não apagas / […] / De teu manto este borrão?...”) contra a qual nenhum elemento consegue atuar: “Astros! noites! tempestades! / Rolai das imensidades! / Varrei os mares, tufão!”). Perante aquele quadro e, sobretudo, a atitude de Deus, que, em vez de se compadecer de tamanho sofrimento e horror, ri (“Que não encontram em vós / Mais que o rir calmo da turba”), o sujeito poético fica indignado e furioso. Ao verificar que o seu apelo não é escutado e atendido, recorre à Musa, que funciona como alegoria do poema de denúncia: “Dize-o tu, severa Musa, / Musa libérrima, audaz!...”).
    Na estrofe seguinte, o «eu» poético atribui uma identidade aos supliciados: primeiro às figuras masculinas (“São os filhos do deserto / […] / A tribo dos homens nus”), depois às femininas (“São mulheres desgraçadas”). Os homens viveram um passado em que eram “simples, fortes, bravos” e hoje veem-se reduzidos a “míseros escravos”, reduzidos a nada (“Sem luz, sem ar, sem razão…”). Por seu turno, as mulheres são associadas a Agar, personagem bíblica que emprestou o corpo a Sara, esposa de Abraão, para lhe assegurar a descendência através do filho Ismael, e que foi vítima da ingratidão de Sara e da cobardia de Abraão, conservando ambos um papel positivo e remetendo para Deus a responsabilidade de banir Agar. Esta representa, pois, a mãe martirizada (“Como Agar sofrendo tanto, / Que nem o leite de pranto / Têm que dar para Ismael.”), sofredora e incapaz de amamentar os filhos. Todas estas personagens foram retiradas do seu habitat natural (“Lá nas areias infindas, / Das palmeiras no país”), do qual se têm de despedir (“Adeus, ó choça do monte, / Adeus, palmeiras da fonte!... / Adeus, amores, adeus…”). Segue-se a travessia do deserto (“Depois, o areal extenso / Depois, o oceano de pó”), que leva à desistência (“Ai! quanto infeliz que cede, / E cai p’ra não mais s’erguer!...”) e à morte (“Mas o chacal sobre a areia / Acha um corpo que roer”). Na sequência, é apresentado o contraste entre um passado de liberdade (“Ontem a Serra Leoa / […] / O sono dormido à toa / Sob as tendas d’amplidão”) e um espaço ilimitado e um presente com um espaço confinado, infecto e imundo – o porão (“o porão negro, fundo / Infecto, apertado, imundo”) –, onde ronda a morte (“Pelo arranco de um finado, / E o baque de um corpo ao mar…”).
    A estrofe seguinte retoma a oposição entre os dois tempos, um passado de liberdade e um presente de maldade, escravidão e sofrimento (“Ontem plena liberdade / Hoje… cúmulo de maldade / Nem são livres p’ra morrer”), compondo um cenário que suscita o riso escarninho de Satanás (“E assim zombando da morte / Dança a lúgubre coorte”). Esta secção fecha de forma circular com a repetição liberal da primeira sextilha.
    A sexta e última secção do poema, composta por três oitavas, compreende uma feroz crítica por parte do sujeito poético dirigida à sua pátria por manter a prática de atos desumanos como a escravatura: “Existe um povo que a bandeira empresta / P’ra cobrir tanta infâmia e cobardia!...”. Tudo isto deixa-o ainda mais indignado: “E deixa-a transformar-se nessa festa / Em manto impuro de bacante fria!” A interpelação dirigida a Deus traduz a incompreensão pelo facto de a sua pátria – representada pela bandeira – se manter indiferente a tanto sofrimento, mesmo que apenas traduzida através da poesia.
    Na oitava seguinte, o sujeito poético dirige-se à bandeira (“Auriverde pendão de minha terra”) e revolta-se por esta servir dois propósitos distintos: ela foi o símbolo de um povo vitorioso, cheio de esperança e livre (“Estandarte que a luz do sol encerra / E as promessas divinas da esperança… / Tu que, da liberdade após a guerra, / Foste hasteado dos heróis na lança”), porém atualmente é desprezível, pois permite a escravatura e a morte (“Antes te houvessem morto na batalha / Que servires a um povo de mortalha!…”). Atente-se no recurso ao adjetivo «auriverde», que aponta para as cores da bandeira brasileira (verde e amarelo),símbolo da identidade nacional e valorizador da riqueza natural do ouro e das florestas do Brasil.
    O poema termina com o sujeito poético a manifestar a sua vergonha pela situação que descreveu (“Extingue nesta hora o brigue imundo / O trilho que Colombo abriu nas vagas”. A descoberta de Colombo deixou nos mares uma ferida (“Da etérea plaga”); se a descoberta do Novo Mundo só acarretou coisas vis, era preferível que as navegações nunca tivesse ocorrido.
    Por outro lado, a composição apresenta um subtítulo: “Tragédia no mar”. O nome «tragédia» remete para o modo dramático e, num sentido mais geral, reporta-se a uma situação caracterizada pela ocorrência de uma desgraça, enquanto a expressão “no mar” remete para uma localização espacial, um local muito vasto, isolado e solitário, traços que acentuam a tragicidade da situação.
    As personagens do texto formam dois grupos conflituantes: o dos dominados (os escravos) e o dos dominadores, representado pelo capitão. Eles, mesmo sem comunicarem entre si, configuram um quadro particularmente trágico que choca quem a ele assiste. Sucede que a situação descrita no poema está presente noutra forma de arte: a pintura “Navio Negreiro”, da autoria de Johann Moritz, um pintor alemão que viajou pelo Brasil entre 1822 e 1825, pintando os povos e os seus costumes, quando integrou a missão do barão Langsdorff. Desde logo, são óbvias as semelhanças entre os títulos das duas obras de arte. Além disso, no quadro encontramos um cenário que é constituído por um amontoado de negros, homens, mulheres e crianças. Os corpos nus formam uma mancha negra que se junta à ausência de luz nesse espaço algo cavernoso, interior e fundo. Confinados a esse espaço exíguo – o porão, no qual se veem prateleiras onde tem de se acomodar aquele amontoado de escravos –, isolados no meio de um mar sem retorno, estas figuras estão agrilhoadas com correntes e algemas, símbolos de domínio, ordem e poder. Contrastando com a multidão de escravos seminus, três homens brancos, envergando roupas limpas e bem tratadas, transportam um escravo morto que é necessário retirar do navio. Deste modo, tanto no poema como na pintura, assistimos a um drama da tortura que a figura bíblica de Agar representa. Perante esta mãe sofredora, os cristãos não se compadecem minimamente. O conflito entre duas forças desiguais é claro e o Mal não tem solução: à força em número de escravos, completamente desmaterializada, opõe-se a força política encarnada pelo capitão (“No entanto o capitão manda a manobra, / E após, fitando o céu que se desdobra / Tão puro sobre o mar”), que desvia o olhar em vez de se apiedar, como faz o «eu» poético. A vida dos escravos é regida pela sociedade dos brancos; o escravo perde a sua identidade e a sua existência pertence ao seu senhor.

Análise do poema "Viagem", de Cecília Meireles


 
No perfume dos meus dedos,
Há um gosto de sofrimento,
Como o sangue dos segredos
no gume do pensamento.

 
Por onde é que eu vou?

 
Fechei as portas sozinha.
Custaram tanto a rodar!
Se chamasse, ninguém vinha.
Para que se há de chamar?

 
Que caminho estranho!

 
Eras coisa tão sem forma,
tão sem tempo, tão sem nada…
– arco-íris do meu dilúvio! –
que nem podias ser vista
nem quase mesmo pensada.

 
Ninguém mais caminha?

 
A noite bebeu-te as cores
para pintar as estrelas.
Desde então, que é dos meus olhos?
Voaram de mim para as nuvens,
com redes para prendê-las.

 
Quem te alcançará?


Dentro da noite mais densa,
navegarei sem rumores,
seguindo por onde fores
como um sonho que se pensa.

 
Por onde é que vou?


    No poema, estão presentes duas figuras: um «eu» e um «tu». A lógica nele seguida é semelhante à de outras composições poéticas de Cecília Meireles: antes de o «tu» ser referido, a atenção concentra-se no «eu». A esse propósito, observe-se o uso do determinante possessivo logo no verso 1: “meus dedos”.
    O texto abre com uma sinestesia (“No perfume dos meus dedos, / Há um gosto de sofrimento” – há uma mistura do olfato e do tato, que, por sua vez, é associado ao paladar”), que, além de misturar vários sentidos, os associa ao campo das emoções e do intelecto, amalgamando “dedos”, “gosto”, “sofrimento” e “pensamento”. Note-se que o pensamento é associado a algo cortante, o gume. Desta forma, o sujeito poético apresenta-nos um «eu» complexo que, simultânea e confusamente, interage com o mundo através dos sentidos, das emoções e do intelecto.
    O nome «perfume», presente logo no verso inicial, pode constituir uma referência ao poder encantatório da poesia. Recordemos, a este propósito, as palavras de Otávio Paz (O arco e a lira), segundo o qual “A atitude do poeta é muito semelhante à do mago”.
    A segunda estrofe – um monóstico – associa-se ao título, dado que o sujeito poético, embora desconhecendo o caminho, parece iniciar uma trajetória: “Por onde é que eu vou?”
    A terceira estrofe foca-se num objeto concreto e inanimado: as portas. O «eu» anuncia que as fechou, mas de um modo não convencional, pois, em vez do movimento habitual para as manejar, as roda. Ora, o ato de rodar é mais demorado do que o gesto habitual, o que exige sacrifício e esforço por parte do «eu»: “Custaram tanto a rodar!”. Por sua vez, a presença do pronome indefinido «Ninguém» realça a sua solidão e o apelo em vão: “Se chamasse, ninguém vinha.” Por outro lado, o recurso ao pretérito perfeito do indicativo (“Fechei”) sugere uma tentativa difícil de se desenvencilhar do passado. A interrogação seguinte (“Para que se há de chamar?”) acentua a solidão e a inutilidade de qualquer esperança na obtenção de ajuda.
    Novo monóstico sugere que as experiências do passado deram lugar à tentativa de experimentar novas vivências: “Que caminho estranho!” Esta exclamação evidencia o espanto do sujeito poético face à estranheza do caminho que se lhe oferece. Convém notar que os monósticos do poema são caracterizados pelo tom questionador (interrogações) ou de perplexidade (exclamação). Sucede que esses questionamentos e esse espanto estão associados ao presente, como se este tempo fosse estranho ao «eu», que aparentemente tem mais familiaridade com o passado (bem como com o futuro). O passado está associado à memória e a factos que sucederam, ao passo que o futuro é incerto, hipotético, dado que ainda não aconteceu. Assim sendo, justifica-se plenamente a identificação do sujeito poético com o passado e o futuro em detrimento do presente, visto que é neles que reside a atemporalidade, isto é, a possibilidade de transgredir as imposições do cronológico.
    Após uma “viagem” pela natureza do «eu» poético, a quinta estrofe introduz o «tu» de forma repentina e inesperada. A sua descrição é feita de forma ambivalente. De facto, começa por ser referido como «coisa», algo que o afasta da ideia de humano. Isto significa que ele se aproxima do indefinido ou do domínio em que as palavras se tornam insuficientes para qualquer tipo de conceituação. Essa incapacidade de definição do «tu» abrange os dois versos iniciais da estrofe: “Eras coisa tão sem forma, / tão sem tempo, tão sem nada…”.
    No entanto, no verso 3, demarcado por travessões e finalizado por exclamação, o «tu» é caracterizado como “arco-íris do meu dilúvio!”, um fenómeno natural, portanto. O facto de o «tu» ser associado a um fenómeno natural bastante raro, caracterizado pela multiplicidade de cores, sugere que o «tu» proporciona ao sujeito poético cor e claridade, num cenário onde predomina o caos e a escuridão. Por outro lado, o interlocutor ser representado por um arco-íris pode sugerir a sua capacidade de trazer serenidade e alegria, suavizando a existência conflituosa do «eu». Esse contacto entre o «eu» e o «tu» ocorreu no passado, como se pode depreender do uso do pretérito imperfeito do indicativo (“Eras”), o que significa que foi trazido para o presente através da memória, bem como a valorização daquele tempo sobre este último.
    Novo monóstico interrogativo (“Ninguém mais caminha?”) enfatiza a solidão do sujeito poético, bem como evoca a sua ausência de familiaridade relativamente ao caminhar, já indiciada em “Que caminho estranho!”.
    O início da sétima estrofe (“A noite bebeu-te as cores / para pintar as estrelas”) sugerem a «morte» do interlocutor, mas este evento faz parte também do passado, que é revivido no presente através da memória. Deste modo, podemos associar o título do poema a uma nova viagem existencial, a do sujeito poético pelas suas experiências passadas, presentes e até as possíveis futuras. Por outro lado, essa viagem pelo tempo parece ser impulsionada, essencialmente, pela necessidade de se unir ao «tu».
    No terceiro verso desta estrofe, é destacada a ação do olhar: “Desde então, que é dos meus olhos? / Voaram de mim para as nuvens.” Será através do olhar que o sujeito poético  poderá reentrar o «tu», como se depreende a partir da penúltima estrofe. Essa viagem far-se-á pela “noite mais densa”, para o céu, o lugar onde o interlocutor se encontra e o lugar que indicia uma referência à morte. Dado que se associa à incerteza, ao mistério, compreende-se que o céu, simbolizando a morte, apresente as mesmas características do mar. Procurando recuperar a ligação perdida ao «tu», essa espécie de “paraíso perdido”, o futuro consiste em prosseguir a viagem, isto é, em navegar pelos mistérios da morte através da sua própria contemplação. De tudo isto resulta a noção de que esse reencontro é incerto e a razão da viagem constitui a própria busca.

Análise do "Poema de finados", de Manuel Bandeira


    Ao contrário de muitas outras composições poéticas, este texto é caracterizado pela regularidade formal. Assim, é constituído por 12 versos octossílabos, distribuídos por três quadras, com rima entre o segundo e o quarto versos de cada estrofe, sendo os demais brancos ou soltos. Existe ainda rima interna nos versos 3 (“procura”/”sepulturas” – esta rima enfatiza o clima de morbidez presente no poema desde o verso inicial) e 11 (“quero”/”espero”).
    O tema do texto é a morte, mais concretamente o testemunho da perda do pai do sujeito poético, associado à sensação da morte do próprio «eu». A isto soma-se uma súplica do sujeito, órfão paterno, para que o leitor do poema tenha compaixão de si e lhe dedique uma oração. Note-se que o título se encontre no plural, pelo que não se refere “ao finado” pai, mas encadeia “pai e filho”, como se ambos estivessem “finados”, “mortos”. A palavra “finado” é o particípio do verbo «finar» e indica aquilo ou aquele que se finou, que faleceu (eufemismo).
    O primeiro verso do poema alude ao Dia de Finados: “Amanhã é dia dos mortos”. Esta é uma data da liturgia cristã, que cai oficialmente no dia 2 de novembro, posterior ao Dia de Todos os Santos, que aproxima o divino (santos) e o terreno (os mortos, a finitude).
    O culto dos mortos é um ritual muito antigo que faz parte da maior parte das religiões. Inicialmente, estava ligado aos cultos agrários e de fertilidade, dado que as pessoas criam que, como as sementes, os mortos eram sepultados com vista à sua ressurreição. No caso da Igreja Católica, o Dia de Finados foi criado como um vínculo suplementar entre os vivos e os mortos. Já no século I d.C., os cristãos rezavam pelos seus entes falecidos: visitavam os túmulos dos mártires para orar pelos que tinham morrido. Mais tarde, no século V, a Igreja passou a dedicar um dia do ano para rezar por todos os mortos, pelos quais ninguém rezava e dos quais ninguém se lembrava. No século X, a Igreja católica instituiu oficialmente o Dia de Finados e, a partir do século seguinte, os papas Silvestre II (1009), João XVII (1009) e Leão IX (1015) passaram a obrigar a comunidade a dedicar um dia aos mortos. No século XIII, esse dia passou a ser comemorado no dia 2 de novembro, porque o primeiro é a Festa de Todos os Santos. Com o passar do tempo, a celebração ultrapassou o seu traço exclusivamente religioso e passou a estar associado a um momento emocional: a saudade de quem perdeu entes queridos. Presentemente, o Dia de Finados é um dos feriados mais universais, sendo que as pessoas costumam celebrar os seus mortos levando flores aos túmulos e rezando por eles.
    O sujeito poético, através de formas verbais no imperativo na segunda pessoa do singular, dirige-se a um «tu», pedindo-lhe que vá ao cemitério e procure a sepultura do seu pai (dele, «eu» lírico), num tom confessional. A reiteração da forma verbal «vai», no imperativo, por ser idêntico à forma do verbo «ir» no presente do indicativo, suaviza a ordem e sugere um pedido.
    Neste poema, o «eu» poético procura a representação da presença do ouvinte, uma característica da língua falada. Assim, o «eu» dialoga com um «tu» implícito, propiciando um tom próximo da conversa e atenuando a distância entre o «eu» poético e o leitor. Exemplos deste diálogo são o verso 1 (“Amanhã que é dia dos mortos”) e os versos 2 a 8,onde o suposto diálogo com o interlocutor é marcado por formas verbais no imperativo (“vai”, “procura”, “leva”, “ajoelha”), através das quais o «eu» se dirige ao «tu» com uma série de ordens/pedidos. Desta forma, o sujeito poético cria um clima de cumplicidade entre ambos.
    A segunda quadra inicia-se com novo pedido do «eu» poético, através da linguagem coloquial, exemplificada pelo uso do advérbio de intensidade «bem» no verso 5: que o seu interlocutor leve rosas ao túmulo do seu pai. Este gesto de depositar flores numa sepultura corresponde ao cumprimento de um ritual católico para homenagear os que já partiram. A essa oferenda soma-se a postura / posição de humilhação reverente e religiosa (a genuflexão) e a prática da oração. No entanto, o verso seguinte introduz uma nota incomum e ilógica relativamente ao culto: a reza não se destina ao pai (morto), mas ao filho (vivo). Como se justifica este pedido, esta súplica? O filho, o «eu» poético, sofre pela ausência dos seus entes queridos mortos, nomeadamente o pai, de tal forma que a dor e a solidão que o caracterizam levam-no a desejar a morte.
    Neste contexto, o verso 8 é muito significativo: o sujeito poético, ao recorrer ao termo coloquial «precisão», mostra que a necessidade dele, do filho, é muito maior que a necessidade de oração do pai morto. A morte aplacaria o sofrimento de que padece enquanto vivo. Tudo isto, no fundo, casa com a visão cristã pessimista da existência: a vida é sofrimento e amargura. Este pessimismo é acentuado pela reiteração do pronome indefinido «nada», que representa o fim dos desejos e das expectativas em relação à vida: “Pois nada quero, nada espero”. As perdas dos entes queridos levam o sujeito poético a sentir-se só, por isso pede aos que estão de forma que se compadeçam do seu sofrimento. Ele sente essa perda como uma antecipação da sua própria morte, como uma sensação de morte em vida.
    Deste modo, a identidade do «eu» poético passa a ser a do pai morto, pois ele também se julga falecido. Relembre-se que um pai, normalmente, representa um modelo para o(s) seu(s) filho(s), além de simbolizar refúgio, proteção. Ora, sendo assim, perdê-lo é ficar só e por sua conta no mundo, desabrigado, desprotegido, caso não seja emocionalmente autónomo, como parece ser o caso do «eu» poético. Neste contexto, o último verso do poema constitui uma espécie de profissão de fé, uma completa identificação com o pai, sempre presente na sua vida.
    Para finalizar, uma última nota para o ritmo do poema, um ritmo entonacional, durativo e pausado, nomeadamente pela presença da pontuação, de que é exemplo o uso da vírgula no verso 7, que tem como efeito a criação de uma dupla leitura: o sujeito poético desdobra-se entre o «eu» e aquele do qual se fala. Um outro recurso usado pelo sujeito lírico é a chamada técnica do «feedback», cuja função é esclarecer o que o «eu» quer dizer. São exemplos deste processo os versos 3 e 4 e 7e 8.

Diogo Ribeiro: vice-campeão mundial de natação

Análise de "Visitações, ou o poema que se diz manso"


O conglomerado de Pais Natais

Roger Blachon

Análise do poema "Evocação do Recife", de Manuel Bandeira


    O poema “Evocação do Recife”, de Manuel Bandeira, foi escrito em 1925 a pedido do escritor e amigo Gilberto Freyre, para representar o Recife da meninice do poeta.
    O texto, que aborda a temática da infância, é constituído por 80 versos, alternadamente longos e curtos e sem pontuação. Por outro lado, ele constitui um exemplo de revolução contra a poesia tradicional brasileira, como se pode comprovar pelo uso da linguagem simples e coloquial, pela valorização do quotidiano, do universo comum, rotineiro, habitual, recriado a partir do olhar artístico. Em várias passagens do poema, o poeta aproveita o espaço em branco da folha para dispor as palavras, trabalhando, assim, o aspeto visual do texto.
    O título, “Evocações do Recife”, antecipa o tema do poema: o resgate, através da evocação da infância vivida em Recife, capital de Pernambuco, mais concretamente a cidade que a memória do homem adulo preservou. O nome “Evocação” deriva da forma latina “evocatione”, que significa “chamar a si”, “recordar”, “relembrar”. Assim, o sujeito poético faz uma viagem no tempo que o transporta até um passado remoto, o da infância feliz, fundamental para a formação do homem adulto que rememora o passado. O sujeito lírico recorda, pois, esses momentos de felicidade com ternura, como se fosse ainda a criança que brincava na rua.

 
Abertura do poema
    Esta primeira parte do poema constitui uma espécie de prólogo, destinado a apresentar o tema que será desenvolvido: um olhar ternurento, não sobre o Recife atual, moderno, mas do passado provinciano, que ele vai evocar e celebrar – a cidade da sua infância. Para o conseguir, começa por a desmistificar para, de seguida, a particularizar através de várias imagens e impressões tiradas da memória.
    Ao «eu» poético não interessam os factos históricos presentes nos livros didáticos, mas o espaço das primeiras aventuras, das experiências amorosas, das primeiras frustrações e primeiras descobertas.
    Assim sendo, o verso inicial constitui uma espécie de chamamento do Recife, lugar da sua meninice, para, logo de seguida, explicitar, através do advérbio de negação «não» e do paralelismo semântico, aquilo que não quer evocar. Começa pela “Veneza Americana”, isto é, o lugar comum, cuja associação está relacionada com o facto de os rios Capibaribe e Beberibe estarem incorporados na paisagem da cidade de Recife, dividindo-a em três bairros, excluindo a ideia de dependência e uma imagem exterior, estrangeira. De facto, a expressão ”Veneza americana” do verso 2 constitui uma referência aos dois rios mencionados, que determinam a paisagem da cidade de Recife, dividindo-a em três bairros principais, daí esse apelido. No poena, inicialmente, o nome do curso de agua é grafado em conformidade com a norma culta (Capiberibe) e, de seguida, foi escrito segundo a fala popular (Capibaribe).
    Essa negação do que é exterior ao próprio Brasil prossegue nos versos 3 e 4: “Mauritssatd, que significa “Cidade de Maurício, é uma alusão ao período de domínio neerlandês do Recife, governado por Maurício de Nassau (“Não a Mauritssadtd dos armadores das Índias Ocidentais”). Mauritssadt era o nome dado pelo administrador neerlandês Maurício de Nassau a Recife por ocasião da invasão neerlandesa. Por seu turno, “o Recife dos Mascates” constitui uma alusão à Guerra dos Mascates, que teve lugar em Pernambuco no início do século XVIII e que envolveu os mascates, que lutavam pela independência de Recife contra os senhores o engenho de Olinda.
    O Recife que evoca não é, igualmente, “o […] que aprendi a amar depois” nem o “das revoluções libertárias”, uma alusão à Revolução Praieira, ocorrida entre 1848 e 1849, de caráter liberal, quando o povo se revoltou contra os latifundiários e os comerciantes portugueses. Neste passo, a cidade é apresentada como um espaço de transformação, representada pela presença de dois tempos verbais, traduzidos pela expressão “aprendi a amar” e pelo vocábulo “depois”.
    Essa transformação é rememorada pelo «eu» poético nos versos seguintes. No sétimo, ele refere o Recife inocente (“sem história nem literatura”), como a infância, não impregnado de «história» e sentido racional, antes um Recife de sensações, de primeiras impressões sobre o mundo, ou seja, o Recife da sua formação. A expressão “sem mais nada” não contém um sentido negativo; traduz a essência do que foi a cidade para o sujeito poético, o Recife da experiência empírica da criança e  das suas descobertas e experiências.
    O verso 9 encerra esta primeira parte, definindo o seu foco. Todos os versos anteriores, a partir do primeiro, são construídos de forma negativa, mas o nono perde esse tom: “Recife da minha infância”. OI determinante possessivo «minha» particulariza a cidade: não é uma qualquer, é a do «eu». Por outro lado, o uso da primeira pessoa do singular confere grande subjetividade a essa rememoração do espaço e do tempo da infância. O verso 10 significa que as características históricas do Recife são substituídas pelas lembranças da infância do poeta.


Exame do Recife
    Seguidamente, o sujeito poético descreve, de forma pormenorizada, os instantâneos da vida quotidiana da sua infância, como se ele estivesse, pelo fluxo da consciência, a caminhar pelas ruas da sua meninice, palco das suas inesquecíveis brincadeiras. Ao recordá-las, associa-lhes várias figuras dessa fase da sua vida: Totônio Rodrigues (sobrinho do avô do poeta), Aninha Viegas, a preta das bananas, os vendedores de rolete de cana e de amendoim, a rua da União, a rua do Sol, o rio Capibaribe, o sertãozinho de Caxangá e a casa do avô. Essa associação é feita através de formas verbais no pretérito imperfeito (“brincava”, “botava”, “tomavam”, etc.), que retratam ações passadas que se prolongam no tempo.
    Estamos parente uma espécie de crónica da infância, por meio da qual recorda o espaço (a Rua da União), as brincadeiras (“eu brincava de chicote-queimado e partia as vidraças da casa de dona Aninha Viegas”) e as figuras humanas (dona Aninha Viegas, Totônio Rodrigues, etc.). Além disso, o «eu» poético dá-nos conta de impressões rápidas, descrições subjetivas: “Totônio Rodrigues era muito velho e botava o pincenê na ponta do nariz…”. Este verso, por exemplo, constitui uma impressão, um instantâneo da memória, uma fotografia.    
    O verso 12 dá-nos conta de mais comportamentos, hábitos e relações interpessoais: “Depois do jantar as famílias tomavam a calçada com cadeiras, mexericos, namoros, risadas”. O seguinte prossegue a crónica da infância, ainda que de forma ambígua, pois o coloquialismo “a gente” tanto pode referir-se a «eles», as crianças, como incluir o sujeito poético no grupo: “a gente”, isto é, “nós, crianças”.
    Os versos 14 a 16 continuam a recordar as brincadeiras infantis, neste caso através de formas verbais no presente (“sai”), para introduzir uma celebração e recuperar uma pluralidade de vozes: “Os meninos gritavam: / Coelho sai! / Não sai!”. A estrutura fragmentada do poema é representada pelas brincadeiras infantis (“chicote-queimado”), pelas figuras humanas que povoam o imaginário do poema (“Aninha Viegas”, “Totônio Rodrigues”) e pelas situações comuns da vida quotidiana: “cadeiras nas calçadas”, “mexericos”, “namoros”, “risadas”.
    A forma verbal «politonavam” sugere a ideia de canto em vários tons através das “vozes macias” (sinestesia), que entoam a cantiga infantil: “Roseira dá-me uma rosa / Craveiro dá-me um botão”. Os parênteses e as reticências dos versos 20 e 21 funcionam como uma espécie de aparte, introduzindo um tipo de comentário do «eu» adulto, o qual proporciona que a cantiga infantil adquira um outro significado. Assim, a rosa em botão são meninas que não envelheceram, pois morreram jovens, ao contrário do sujeito poético, que envelheceu e, agora, rememora o passado.
    Os três seguintes (22 a 24), que poderiam constituir um só, visto que estão espacialmente fragmentados, encerram o parêntesis e regressam ao passado, recordando o som de um sino ecoando pela noite (pela memória?). Desta forma, o «eu» poético funde dois planos: o objetivo (ligado à cidade) e o subjetivo (relacionado com as recordações de infância).
    A expressão coloquial “Uma pessoa grande” traduz a visão infantil do sujeito lírico de um adulto, uma pessoa mais velha. Esse adulto é Totônio Rodrigues, sobrinho do avô do poeta, uma figura muito velha. E a memória continua a fluir, centrando-se agora nos costumes da época (o fogo, o hábito de fumar) e na frustração do «eu» por não poder gozar da liberdade total dos adultos: “E eu tinha raiva de ser menino porque não podia ir ver o fogo.”

 
Impressões pessoais mais marcantes
    Além das figuras humanas, também as ruas são rememoradas pelo sujeito poético, dado questão associadas a momentos de alguma felicidade. A recordação começa pela Rua da União, que é referida pela segunda vez, agora enfatizada pela presença das reticências, que sugerem o saudosismo do «eu», como se, após nomear a rua, soltasse um suspiro.
    Os nomes dos arruamentos (“União”, “Sol”, “Saudade”, “Aurora”) reforçam a ideia dos valores humanos e apontam para o princípio das coisas essenciais, não contaminadas pela “história” e, por isso, puras, essenciais. Novos parênteses, no verso 34, refletem de novo a fala do homem adulto e as suas impressões do presente, as quais configuram uma crítica e revelam o seu distanciamento da cidade do Recife, pois desconhece como está e o próprio nome, resistindo apenas a “geografia” na sua memória. Por outro lado, as ruas são associadas a gestos transgressores da infância: fumar e pescar escondido. O uso de formas verbais no infinitivo mostra que essas transgressões não são objeto de censura, antes são encarados com naturalidade, enquanto modos de descobrir o mundo.
    A memória, por vezes, é traiçoeira. Assim, o «eu» engana-se no verso 39 ao pronunciar o nome “Capiberibe”, mas logo se corrige: “Capibaribe”. O travessão indica a fala. Estas duas formas de grafar o nome do rio estão relacionadas, também, com um episódio ocorrido numa aula, quando o poeta era aluno de José Veríssimo, professor de Geografia no Ginásio Nacional de Recife. Certo dia, o professor perguntou qual era o maior rio de Pernambuco e o poeta, querendo ser o primeiro a responder, gritou “Capibaribe”, como sempre ouvira pronunciar (com «a»). O professor retorquiu-lhe de forma irónica: “Bem se vê que o senhor é um pernambucano” (pois os pernambucanos pronunciavam o nome do rio com o tal «a») e corrigiu-o: “Capiberibe”.
    São vários os exemplos do recurso à linguagem coloquial e um deles é o 41, nomeadamente pela presença da expressão “Lá longe”, que aponta, de forma imprecisa, em termos de distância, para o espaço do “sertãozinho” (atente-se no diminutivo, que, neste caso, sugere afetividade e mão tamanho/dimensão).
    O verso 42 volta a relacionar a infância à ideia de liberdade: a palha serve ao «eu» do passado como banheiro, isto é, um espaço privilegiado de liberdade. Da infância fazem parte também as brincadeiras, as cantigas de rua, as travessuras e igualmente aquilo que poderíamos chamar primeira experiência erótica, concretamente a visão de uma mulher nua a tomar banho. Este passo obedece a uma construção curiosa: a localização temporal indefinida, característica do mundo infantil – por exemplo, das lendas ou dos contos populares – (“Um dia”); a visão da “moça nuinha” (o nome «moça» a sugerir a sua juventude; o diminutivo usado para intensificar a nudez, isto é, a mulher estava muito, completamente nua); a reação intensa à visão (“Fiquei parado o coração batendo”) e a reação descontraída e divertida dela (“Ela se riu”). O nome «alumbramento» intensifica a reação do «eu» poético ao episódio, o seu deslumbramento, que pauta a descoberta do desejo, o prenúncio do crescimento e do fim da infância. O verso 51 dá-nos conta do passo seguinte no processo de aprendizagem e crescimento: o contacto físico com a mulher (“eu me deitei no colo da menina”).


O poeta mira o Brasil
    O poema está prenhe de impressões, normalmente dadas de forma fragmentária, como sucede de novo nos versos 47 e 48, a partir da rememoração das cheias causadas pelo rio. As exclamações do verso 47 (“Cheia!  As cheias!”) indiciam a impressão viva que ficou marcada na memória do «eu», a desordem e os estragos que ela causaram (o boi morto, as árvores, os destroços), ideias acentuadas pelo acumular de palavras sem conjunções a liga-las e/ou vírgulas a separá-las. Dito de outra forma, essa sucessão de vocábulos e a ausência de pontuação (verso 47) sugerem a fúria com que as águas das enchentes arrastavam as coisas e a imagem das coisas arrastadas velozmente pela água da cheia, o que permite também que o leitor visualize a cena. Dentro da fúria da natureza (verso 48), o «eu» poético contempla a intervenção humana (“ponte do trem de ferro”) e a coragem e o caráter destemido do ser humano comum (“caboclos destemidos em jangadas de bananeiras”).
    Os versos seguintes proporcionam-nos o conhecimento da cultura do estado de Pernambuco, começando pelas manifestações religiosas cristãs (“Novenas” – verso 49), seguindo-se as comemorações típicas, como as Cavalhadas. O verso 51 retoma, como vimos anteriormente, a questão da descoberta da afetividade e do desejo (“Eu me deitei no colo da menina e ela começou a passar a mão nos meus cabelos”).
    O verso 54 e seguintes levam-nos de volta à Rua da União e aos elementos típicos que lhe estão associados: os frutos (as bananas), as figuras humanas (a preta que vende bananas, vestida ainda como escrava – “pano da Costa” –, os vendedores), os produtos comercializados (bananas, roletes de cana, amendoins) – as comidas típicas da região. Qual a importância destas referências? Uma nação, um povo também se define(m) pelos seus hábitos e costumes alimentares.
    Por seu turno, os pregões indiciam o prazer que o «eu» poético sentia ao ouvi-los, publicitando os ovos e o seu custo (a pataca era a moeda usada no Brasil na época), porém este passo não termina de forma eufórica, antes de forma bem melancólica. De onde vem essa melancolia? Do facto de tudo o que recorda e lhe traz uma enorme felicidade ter ocorrido “há muito tempo” (e hoje já não existe).


Consciência do homem em relação à poesia
    Entre os versos 63 e 71, a linguagem parece explodir de brasilidade, com palavras/expressões como “a gente”, “nuinha”, “midubim”, “me lembro”; com o registo de fala em “coelho sai / não sai”; com o pregão “ovos frescos e baratos / dez ovos por uma pataca”. Essa linguagem típica opõe-se à linguagem académica, retórica e artificial, a qual não exprime os valores brasileiros. Ora, é um pouco isso que se encontra entre os versos 63 e 66, que se reportam à vida da infância que não era mediada, sujeita às normas e interferências externas, como acontece com os livros e os jornais. O verso 64 e seguintes descrevem o homem comum, não subordinado aos dogmas do bom gosto dos jornais e dos livros; a fala do povo é o reflexo de uma forma singular de viver, não mais tributária do colonizador ou da Europa. A língua errada do povo é a língua certa do povo; o português lusitano e o português brasileiro separaram-se, como o mostra a sinestesia “fala gostoso”, que sugere o modo como a língua era falada pelos brasileiros: com prazer, com naturalidade, sem seguir já a sintaxe que, por causa da passagem do tempo, se afastou da dos antigos colonizadores. “É macaquear / A sintaxe lusíada”: o poeta defende a ideia de aproximar a escrita da fala do povo, “porque ele é que fala gostoso o português do Brasil”. Aqui, Manuel Bandeira retoma o projeto de Mário de Andrade sobre a necessidade de abrasileirar a língua.
    Posteriormente, o poema centra-se no «nós», isto é, nos poetas brasileiros, dos quais o «eu» faz parte, que continuam a macaquear, isto é, a imitar de forma caricata / grotesca a sintaxe portuguesa, criticando, assim, a submissão brasileira ao português de Portugal. Por outro lado, o sujeito poético revela a inocência e a ignorância da ordem do mundo que caracterizaram a sua infância, bem como a ideia de que o exterior pouco ou nada contribuiu para a sua formação. As suas raízes, com efeito, estão no Recife, com as suas ruas, cheiros, cores, fauna, flora e figuras humanas.


Lamento e reflexão sobre a passagem do tempo
    A parte final do poema mostra a consciência do «eu» de que a infância já passou, ficou no passado, porque, afinal, o tempo decorre, a vida é breve e a velhice e a morte aproximam-se. É, por isso, que ele recorda, de modo triste e melancólico, as imagens do passado: “Recife”, “Rua da União”, “A casa do meu avô”, ou seja, a cidade, a rua, a casa. De seguida, através de uma exclamação, exprime toda a sua incredulidade e melancolia pelo fim da infância: “Nunca pensei que ela acabasse!” (v. 76).
    O poema finaliza com a referência à morte do avô, à perda do Recife da sua infância, da Rua da União e da própria casa do avô, tudo perdido no tempo. O sujeito poético, mesmo que em estado de choque, está consciente da passagem do tempo e da efemeridade da vida (“Tudo lá parecia impregnado de eternidade”). O Recife morto é o da infância, cujo maior valor é o facto de ser brasileiro e autêntico, com os seus modos de viver, de agir, de alimentar e de conviver.

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