Português

quarta-feira, 31 de julho de 2019

"Fim", de Mário de Sá Carneiro

            Este poema, constituído por duas quadras de rima interpolada e emparelhada (abba / cddc), data de 1916 e foi escrito na capital francesa.

            O texto gira em torno de um tema que se pode sintetizar do seguinte modo: encontrar sentido apenas na morte e através dela. O sujeito poético confere à sua morte e ao seu funeral o tom grotesco que lhe rira a dignidade, como para mais achincalhar-se.

            Começando a análise pelo título, nota-se nele uma espécie de humor satânico que se estende a toda a composição. O sujeito poético expressa o desejo de o seu post-mortem, o seu funeral, a sua morte, ser celebrado com grande euforia e espetáculo: marcado pelo bater de latas, berros, pinotes e palhaços, desejo esse que sugere uma autorridicularização. É uma sugestão irreverente que deixa escapar um profundo autodesprezo. Por outro lado, a performance circense de palhaços e acrobatas conota uma alegria no encontro com a morte.

            As ideias de teatralidade e representação são conferidas pela presença precisamente dos palhaços e acrobatas, típicas figuras do espetáculo circense, que resume a faceta de clandestinidade, de transgressão incutida na excentricidade do último desejo, o de um funeral à moda andaluza. Esta arte de rua, marginal, constitui também o tema de “Partida de Emigrantes”, um triplico de Almada Negreiros. Num dos quadros, os saltimbancos de rua dominam a cena do cais representado. A sua presença representa a transgressão, a marginalidade que pode ser ignorada, desprezada e ostracizada, mas não suprimida, porque existe. No poema em análise, o sujeito lírico, na última jornada da sua existência, transforma o que deveria ser um cerimonial triste e pesaroso, de acordo com as convenções ocidentais, numa festa de rua, dominada pelo clima de festa, provocatória. O fim é celebrado e transformado numa comemoração de vida, a pretexto da morte, e acompanhado por artistas marginais com quem comunga o mesmo sentido transgressor. Isto significa que o conceito tradicional de funeral não é o enunciado no texto: um funeral é uma cerimónia caracterizada por uma atmosfera grave e de pesar, mas neste caso é manifesto o desejo do «eu» de que o seu seja um momento de festa e de folia.

            O ato caricato de transportar o caixão sobre um burro sugere a irreverência diante da morte e traduz também uma ideia de escárnio pelo próprio fim. Além disso, tem os enfeites à moda da Andaluzia, que devem ser vibrantes, vistosos.

            Quanto ao burro, no texto simboliza a obscuridade. Note-se que, na Índia, o animal serve de montaria para divindades funestas, como Nairrita, guardião da região dos mortos, o que só confirma a ideia de que o poema aponta para a figura do fim.

            A figura do palhaço, para Chevalier e Gheerbrant, é a representação do rei assassinado. Simboliza a inversão da compostura régia nas suas palavras e atitudes. A majestade é substituída pela irreverência; a soberania pela ausência de toda a autoridade; o temor pelo riso; a vitória pela derrota; as cerimónias sagradas pelo ridículo; a morte pela zombaria. O palhaço é como o reverso da medalha, o contrário da realeza, a paródia encarnada.

            Por um lado, a composição remete para um deboche numa ocasião cercada de solenidade; por outro, as atitudes a que ele incita traduzem uma celebração pela sua morte, como se se tratasse de um benefício para o mundo, talvez para si mesmo. O corolário do cortejo reside na sua exigência de que o caixão seja transportado sobre um burro, um claro menosprezo do seu próprio funeral, revelando, deste modo, a pouca importância atribuída a si mesmo e à sua vida. Deste modo, ele revela-se uma pessoa excêntrica, caprichosa e determinada, sendo que, no momento em que manifesta o seu desejo, o seu estado de espírito é exaltado e quase febril.

            Em suma, a estruturação mental do poema é clara. De facto, o sujeito poético deixa um conjunto de indicações bastante precisas sobre:
● o tipo de funeral: à andaluza;
● o meio de transporte para o levar à sua última morada: um burro;
● as ações a desempenhar pelos acompanhantes da sua cerimónia fúnebre: bater em latas, romper aos berros e aos pinotes, fazer estalar chicotes no ar;
● os participantes e responsáveis pela animação do evento: palhaços e acrobatas.

A nota final é clara: esta é a sua vontade expressa, pois a um morto nada se recusa.


Bibliografia:
- Neusa Sorrenti, “Mário de Sá Carneiro, poeta: um Narciso entre Eros e Tânatos”;
- Carlos Ferreira, Mário de Sá Carneiro: Do Percurso do Poeta às Práticas no Programa de Português do Ensino Secundário.

"As Misteriosas Cidades de Ouro": capítulo I


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terça-feira, 30 de julho de 2019

Exames nacionais do ensino secundário - 2.ª fase - 2019

138  |   Português Língua Segunda   |   19-07-2019
501  |   Alemão  |  23-07-2019
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517  |   Francês  |  23-07-2019
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623  |   História A   |  23-07-2019
635  |   Matemática A  |  22-07-2019
639  |   Português  |  19-07-2019
702  |   Biologia e Geologia  |  23-07-2019
706  |   Desenho A  |  23-07-2019
708  |   Geometria Descritiva A  |  23-07-2019
712  |   Economia A  |  18-07-2019
714  |   Filosofia  |  22-07-2019
715  |   Física e Química A  |   18-07-2019
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732  |   Latim A  |  18-07-2019
734  |   Literatura Portuguesa  |  18-07-2019
735  |   Matemática B  |  22-07-2019
835  |   Matemática Aplicada às Ciências Sociais |  22-07-2019
839  |   Português Língua Não Materna - B1  |  19-07-2019

Exames nacionais de 9.º ano - 2.ª Fase - 2019

91   |   Português   |    19-07-2019
92   |   Matemática   |   22-07-2019
93   |   Português Língua não Materna - A2   |   19-07-2019
94   |   Português Língua não Materna - B1   |   19-07-2019

Correção do Exame Nacional de Português - 12.º ano - 2019 - 2.ª fase

Exame Nacional de Português - 12.º ano - 2.ª fase - 2019 - Enunciado

sexta-feira, 19 de julho de 2019

Conselho ou concelho?


     Desta vez, é o jornal do regime, o Expresso, a dar uma daquelas marteladas na língua portuguesa! Isto ocorre logo após a esposa do seu dono ter feito uma brincadeira com os professores. Lá diz o povo sábio: não cuspas para o ar...

     Aproveitemos a ocasião para uma breve explicação, sem desprimor para a pobreza da rima.

     Os dois vocábulos existem na língua portuguesa: são parónimos (um escreve-se com s e o outro com c).

     A palavra usada erradamente no texto - conselho - provém do latim consiliu- ("deliberação", "assembleia") e significa «opinião que se emite sobre o que convém fazer»; «parecer»; «ensinamento»; «juízo»; «tino»; «resolução»; «determinação»; «corpo coletivo que dá parecer sobre certos negócios públicos»; «assembleia de ministros, de professores, etc.», etc.

     Por sua vez, o termo concelho provém do latim conciliu- ("assembleia") e significa «circunscrição administrativa», «subdivisão do distrito», «município».

     Como é evidente, o escrivão da notícia referia-se à segunda palavra: CONCELHO.

terça-feira, 9 de julho de 2019

O classicismo francês: a época de Luís XIV

            Em França, as guerras de religião haviam rematado no século XVI pelo Edicto de Nantes (1598) e o advento da dinastia bourbónica. Deste compromisso precário entre a burguesia huguenote e a aristocracia católica resulta, como fiel da balança, a política absolutista de Richelieu, Mazarino e Luís XIV, profundamente diferente, no seu significado social, do absolutismo peninsular. A coroa sustenta, além da nova burocracia do absolutismo, a velha aristocracia de sangue, que, domesticada depois do esmagamento da Fronda, faz uma vida ociosa de corte. A burguesia ascende, em parte, à categoria de cargo, prevalece na administração central, enriquece com os fornecimentos e arrematações dos impostos da Coroa, impõe a política mercantilista que permite o desenvolvimento da manufatura (indústrias de luxo, mineração, construção naval, têxteis, etc.). Batidos os Filipes na Paz dos Pirenéus de1659, a França torna-se a potência hegemónica da Europa. Mas a «guerra do dinheiro», de conquista surda dos mercados e do ouro, conduzida por Colbert e as suas Companhias contra as outras potências, empurra Luís XIV a uma série de lutas armadas que desprestigiam o absolutismo e dão lugar ao agravamento da situação económica das massas populares.
            Sob o ponto de vista cultural, o grande foco é ainda então a corte, que deve à corte madrilena a iniciação em muitos requintes. No campo literário, Honoré d’Urfé, com o início da Astrée e, 1608, introduz na corte francesa o formalismo da alegoria pastoral anteriormente consagrada pela Diana de Montemor, dando o modelo para as damas preciosas dos salões da marquesa de Rambouillet e de M.lle. Scudéry; e Corneille, com o Cid (1636-37), adapta o drama espanhol ao gosto francês, inaugurando o teatro clássico em França. Mas a um estado de coisas político e social mais estável e a um nível já superior corresponde um espírito mais analítico e racionalista, um sentimento de vida mais confiante, mais equilibrado e menos patético que o prevalecente em Espanha. Há uma enorme floração de doutrinadores e preceptistas literários, cheios de ponderação sensata, entre os quais se destacam o poeta Malherbe, à entrada do século, e Boileau, cerca do último quartel (Arte Poética, 1674). Ao mesmo tempo a Academia Francesa (1635) e vários gramáticos racionalistas desempenham o seu papel de codificação e apuramento linguísticos.
            No terreno filosófico, a figura dominante do século XVII francês é Descartes, também um dos criadores da álgebra, da geometria analítica e da mecânica. A sua filosofia, como a do seu contemporâneo inglês Bacon, centra-se no problema da metodologia científica (Discurso do Método, 1637). Em última análise, o método cartesiano reduz-se a interpretar os fenómenos segundo esquemas mecânicos, geométricos e algébricos. Descartes, por outro lado, acautela o idealismo tradicional e a teologia, e não discute as instituições políticas e sociais do tempo; sustenta a imaterialidade e eternidade do espírito, mas concebido como simples consciência das leis mecânicas do mundo, e afirma a existência de Deus, mas como garantidor da realidade objetiva das leis científicas – um Deus, aliás, que (pelo menos sob certa leitura de Descartes) é a negação mesma do milagre.
            Com Newton, Pascal e Leibniz, além do método experimental, integram-se no pensamento científico os conceitos de energia e de infinito. A preocupação da infinidade e da omnipotência divinas, agora que a ciência impunha uma conceção infinitista e energética do mundo, sente-se nos Jansenistas de Port-Royal, de que Pascal foi a figura dominante.
            À ascensão do absolutismo em França corresponde o teatro de Corneille (Horácio, Cinna, 1640), em que se apresenta sempre a vitória da autodisciplina cívica do protagonista sobre as paixões pessoais mais veementes. Com Racine, os conflitos da tragédia já lisonjeiam mais as paixões, e a noção de dever desloca-se do clima cívico para o clima familiar (Fedra, 1677). Um e outro levam à maior perfeição o esquema das três unidades (ação, lugar e tempo), que ao teatro clássico francês uma grande densidade psicológica e ideológica. Entretanto, a comédia de caracteres de Molière, fundindo o racionalismo francês com a experiência de palco da Commedia dell’Arte, critica penetrantemente a hipocrisia e a fatuidade do sistema feudal remodelado sob o absolutismo, atingindo ao mesmo tempo a caça ao lucro, ou ao prazer e várias deformações psicológicas, típicas não só da nobreza mas também da burguesia dirigente, com um poder de apreensão que os ideólogos burgueses perderão mais tarde no seu propagandismo revolucionário (Preciosas Ridículas, 1659; D. João, 1665; Tartufo, 1669; As Sabichonas, 1672, etc.).
            Os sintomas de dissolução ideológica do regime de Luís XIV começam por se fazer sentir nos meios aristocráticos. Tal como na aristocracia tory inglesa, desenvolve-se o ceticismo galante dos libertinos, que transvasa para as obras de um estilo seco e cínico (Máximas de Rochefoucauld, 1665, Caracteres de La Bruyère, 1688, Fábulas de La Fontaine, 1668); os espíritos volvem-se para as pequenas coisas, registam efemérides e ditos, redigem memórias, correspondência literária, mantêm o tom racionalista, mais virado para o mundo psicológico ou para uma perspetiva pessimista do mundo social (Memórias do cardeal de Retz e do duque de Saint-Simon; Cartas de M.me de Sévigné; Princesse de Clèves, romance de M.me de Lafayette, 1678). Entre 1680 e 1715 decorre o período que Paul Hazard denomina de «crise da consciência europeia», no qual se confirma o descrédito das instituições e formas culturais da época de Luís XIV.

O papel da Inglaterra seiscentista

            Na França e na Inglaterra, o capitalismo comercial e a cultura burguesa não dominam tão livremente, mas, por vias mais sinuosas, impõem a sua influência.
            Na Inglaterra, o absolutismo dos Tudors elimina desde Henrique VIII a alta aristocracia feudal e o clero regular, mas a nobreza que ascende com as secularizações (gentry) e a burguesia de Londres mantêm o controlo do fisco pelo Parlamento. Os filhos segundos da gentry, vedado o acesso à carreira do clero regular, das armas ou do funcionalismo, em resultado das secularizações e da moderação do fisco régio, ingressam por isso na burguesia. A Coroa garante o monopólio, a que se associa, das companhias criadas para fazer o corso às frotas hispânicas e conquista os entrepostos do Báltico, do Mediterrâneo e depois do Índico e da América do Norte. O reinado de Isabel (1558-1603) e ainda o do primeiro Stuart, Jaime I, correspondem por isso, não apenas ao desenvolvimento de uma cultura amaneirada de corte, em que se salientam a poesia para canto e o pastoralismo convencional (Sidney, Spenser, John Lily, autor do romance Euphues, 1579-80, donde derivou o nome de eufuísmo para o estilo culto inglês), mas também ao surto de uma riquíssima escola teatral em que se fundem o naturalismo renascentista, a cultura universitária de muitos dramaturgos, a ânsia de aventura e domínio, as inquietações ideológicas da burguesia, o estilo floreado da corte (Marlowe, Shakespeare, Ben Jonson, Fletcher, etc.).
            O desenvolvimento posterior da burguesia e o endurecimento da sua ideologia puritana, por um lado, a reação correspondente por parte dos monarcas Stuarts e da aristocracia mais exclusivamente agrária, por outro lado, precipitam depois as revoluções de 1648 e 1688, cujo saldo final é uma vitória sobre o absolutismo por parte de uma coligação tácita entre a burguesia londrina menos puritana e a aristocracia Whig, que lhe está estreitamente ligada. Estas duas camadas vão realizar durante o século XVIII uma dupla revolução: a revolução agrária da enclosure, eliminação do pequeno campesinato feudal, já iniciada em começos do século XVI, e a revolução industrial. Através das vicissitudes seiscentistas, o puritanismo revolucionário exprime-se literariamente pela obra de Milton (Paraíso Perdido, 1667) e Bunyan (Caminhada do Peregrino, 1678); a aristocracia opõe ao zelo puritano um teatro e um lirismo profundamente cínicos e intelectuais (Wycherly, Congreve, Lovelace, etc.).
            Por meados do século XVII, a Sociedade Real de Londres, ilustrada por figuras como Roberto Boyle e Newton, torna-se o foco mundial da investigação científica, onde se lançam as bases de uma nova disciplina da física, a dinâmica, articulada com o também recente cálculo infinitesimal. No desenvolvimento do empirismo e sensualismo inglês, Hobbes e Locke sucedem a Francisco Bacon, que em 1620, com o Novum Organum Scientiarum, dera o primeiro tratado de metodologia científica experimental. Locke, o filósofo da revolução de 1688, que escreve em inglês para toda a gente, e não já em latim escolástico, é o pensador que mais influência exerce na Europa por todo o século XVIII. Este conjunto de circunstâncias sociais e culturais explicam que a Inglaterra, país onde a revolução burguesa, embora menos radical e rematando num compromisso que dura até à época vitoriana (reforma eleitoral de 1832), se antecipa de um século à da França e, em geral, do Continente, seja no início do século XVIII a herdeira imediata das criações holandesas de inícios do século XVII: jardins, conforto do lar, pintura de paisagem, de retrato e de interiores, jornalismo, filosofia progressiva, livre-cambismo, teoria dos direitos fundamentais do homem e da divisão dos poderes do Estado.

O papel precursor da Holanda

            Enquanto os domínios ultramarinos permitiam à aristocracia peninsular um reagrupamento defensivo em torno da Coroa, mantendo na sociedade e na cultura de Portugal e Espanha certas características feudais, e propiciavam depois uma hegemonia política mundial da Espanha que atinge o apogeu sob Filipe II (1556-98), e se prolonga até ao desfecho da Guerra dos Trinta Anos (1618-48) – em alguns países da Europa Ocidental, não sujeitos ao seu domínio, a estrutura social e política sofre consideráveis alterações. É que, afinal, a Bolsa de Antuérpia (1531), centro do comércio continental das especiarias portuguesas, e os banqueiros da Alemanha do Sul, principais financiadores das Coroas peninsulares, apesar das sucessivas falências individuais, tinham exercido o real controlo da nova economia mundial recém-nascida. Os recursos dos reinos de Portugal e Espanha esgotavam-se já no século XVI, cada vez mais incapazes de ocorrer aos gastos da oligarquia administrativa e militar e de satisfazer os juros de dívidas astronómicas. A nova aventura cavaleiresca em Marrocos afunda-se em Alcácer Quibir (1578); a Casa da Áustria acrescenta o império português aos seus domínios, mas em 1588 vê a sua «Invencível Armada» batida pelos Ingleses. O século XVII vai assistir ao triunfo de um grande capitalismo mercantil, constituído em companhias de acionistas particulares que pertencem, indiferentemente, a vários credos ou nações e que utilizam um Estado nacional como garantia do seu monopólio.
           A inovação parte dos Holandeses, cujos armadores, associando-se a capitais internacionais (em grande parte dos Marranos, ou Cristãos-Novos expulsos da Península), criam, a partir de 1592, as célebres Companhias das Índias, primeiro para fazer a guerra de corso às frotas filipinas, e depois para desalojar o império Habsburgo dos seus principais entrepostos da Indonésia, Índia, África do Sul e Central. A expansão colonial holandesa é facilitada por um tolerantismo comercialista, próprio de um Estado federativo, descentralizado, dir-se-ia que ele próprio imagem de uma empresa por ações. A Banca de Amesterdão (1611) torna-se o centro do capitalismo internacional. O calvinismo, dominante entre a burguesia holandesa, reabilita o juro e a especulação bancária.
            A Holanda torna-se na primeira metade do século a estante giratória com prateleiras para as heresias que minam os estados monarco-feudais: refúgio dos judeus peninsulares, dos dissidentes ingleses fugidos aos Stuarts, dos huguenotes franceses. Giordano Bruno, Galileu, Descartes editam lá as obras que teorizam a mecânica celeste e geral; impressores holandeses, como os Elzevir, erguem a arte tipográfica a um novo nível; nasce das informações bolsistas a imprensa periódica, com as Gazetas; o naturalismo renascentista prolonga-se ali. Trata-se do culto da ciência experimental e algébrica (Huyghens), que através da ótica e da criação do microscópio lança a microbiologia com Leeuwenhoek; um judeu de origem portuguesa, Bento de Espinosa, identifica Deus com a Natureza, critica a autoridade de quaisquer Escrituras Sacras e do poder monárquico, concebe a liberdade moral como não passando de uma consciência interiorizadora da causalidade universal, considerando comportamento ético apenas aquele que só obedece a razões – depois de armado com o conhecimento das causas. Grócio fundamenta o direito internacional em regras que julga existirem, não por decreto sobrenatural, mas na natureza humana (direito natural). A escola holandesa de pintura inovadoramente naturalista, substitui a iconografia religiosa por retratos, interiores burgueses e paisagens (Franz Hals, Hooch, Vermeer, Hobbema, Ruysdael). Rembrandt, como veremos, representa já algo para além desse naturalismo.
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