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sábado, 14 de novembro de 2020

Análise dos capítulos I a III de Madame Bovary

 Os primeiros capítulos do romance definem o cenário – classe média provinciana – e apresentam as características fundamentais das personagens Emma e Charles. O fracasso de Charles ao reprovar nos exames médicos e asua incapacidade de compreender as palavras de Emma ilustram a sua estupidez e complacência, e a sua consciência dos minúsculos detalhes da física da jovem revelam que ele pensa nela mais como um objeto do que como uma pessoa. Por sua vez, Emma possui uma natureza nada prática, romântica e melancólica – ela deseja um casamento à meia-noite, iluminado por tochas – que, mesmo neste estágio inicial, parece estar em desacordo com a realidade da sua vida.
Madame Bovary não começa a sua narrativa focada na personagem que lhe dá nome; pelo contrário, ao longo dos primeiros capítulos, Flaubert atrasa a introdução da heroína do romance, estratégia que cria expectativa no leitor, que aguarda um vislumbre que seja da protagonista. É quase como se Flaubert nos fizesse penetrar no romance através de várias camadas de perspetiva antes de podermos observar os acontecimentos através dos olhos de Emma. A primeira cena do livro é contada na primeira pessoa do plural. “Nós” somos colegas de classe de Charles, observando a sua chegada atrapalhada à nova escola. De seguida, essa voz narrativa desaparece em segundo plano e Flaubert começa a usar a terceira pessoa, restringindo a maioria das suas observações ao ponto de vista de Charles, a chamada focalização interna. A princípio, Charles parece ser o protagonista da história, enquanto Emma aparenta ser uma personagem algo periférica, ficando a saber factos sobre ela apenas através das perceções de outras personagens. Charles acha-a encantadora, enquanto Heloísa ouviu dizer que ela finge ser afetada.
O romance apresenta duas Madames Bovary antes de Emma: a mãe de Charles e a sua primeira esposa. As relações entre essas mulheres e Charles prefiguram as suas relações com a “Madame Bovary” do título. Tanto a sua mãe dominadora quanto a sua primeira esposa o tornam um homem que espera ser controlado. Madames Bovary é diferente de Emma. Considerando que, como o próprio Charles, as duas primeiras Madames Bovary são mesquinhas e sem imaginação, Emma anseia por uma vida grandiosa e romântica. Nesse sentido, ela tem dificuldade em ocupar o lugar da mãe de Charles ou da sua falecida esposa, enquanto as suas qualidades estão além dos poderes de compreensão do rapaz.

Resumo do capítulo III de Madame Bovary

 Após a morte de Heloísa, Charles torna-se amigo de Rouault e visita a sua fazenda com regularidade, passando o tempo com Emma, observando-a a trabalhar ou conversando com ela sobre o seu tédio no campo. Embora não dê atenção ao significado das suas palavras, Charles logo se apaixona por Emma, e Rouault, um viciado no álcool que administra mal a sua fazenda, concorda em dar sua filha em casamento a esse médico dócil, gentil e bem-educado. Depois do consentimento, Rouault instrui Charles a esperar do lado de fora enquanto ele vai até a casa para perguntar a Emma se aceita o casamento. Posteriormente, informa Charles da concordância da filha com um sinal pré-arranjado, uma veneziana batendo contra a parede. Antes do matrimónio, o casal aguarda o período de luto de Charles passar. Emma quer um casamento romântico à meia-noite, mas no final tem de se contentar com uma cerimónia mais tradicional, com uma comemoração ruidosa.

Resumo do capítulo II de Madame Bovary

 Certa noite, Charles é acordado às 4 da manhã para tratar de uma fratura simples numa fazenda distante. Lá, conhece e fica impressionado com admira a filha do paciente, uma jovem chamada Emma, que foi criada num convento e vive infeliz com a vida no campo. Impressionado com a sua beleza, o jovem volta à fazenda para visitar o seu pai, Rouault, com muito mais frequência do que seria necessário, enquanto a sua perna cicatriza. Heloísa fica desconfiada e pergunta a todos sobre a filha de Rouault, que, segundo lhe contaram, tem tendência a ser gabarola. Ciumenta da aparência e boa educação de Emma, Heloísa força Charles a prometer nunca mais voltar lá. Ele concorda, mas fica a saber logo depois que o advogado da esposa roubou a maior parte do dinheiro de Heloísa e que esta mentiu sobre a sua riqueza antes do casamento. Os pais de Charles discutem violentamente sobre este desenvolvimento, e Heloísa, chocada e humilhada, morre repentinamente, uma semana depois.

Resumo do capítulo I de Madame Bovary

      O romance tem início na escola da aldeia, à qual acaba de chegar um novo aluno: Charles Bovary, filho de um ex-cirurgião do exército e da sua esposa, que mora numa pequena fazenda. Depois de observarmos o seu primeiro dia na escola, seguimo-lo enquanto cresce. O seu pai, que administra mal o dinheiro e é mulherengo com "todas as prostitutas da aldeia", há muito perdeu o respeito da esposa, que dedica o seu afeto ao filho, já que com o marido é impossível. Apesar da maneira ridícula como ela o mima, Charles continua uma criança comum – bem-humorado, mas preguiçoso e sem imaginação. Posteriormente, os pais enviam-no para a faculdade de Medicina, onde falta, regularmente, às aulas e passa o tempo a jogar dominó em vez de estudar. A sua preguiça fá-lo reprovar no primeiro exame médico, uma falha escondida que consegue esconder do pai durante anos. Charles repete o exame e desta vez é aprovado, tornando-se médico. A mãe providencia no sentido de o filho exercer a profissão na aldeia de Tostes. Além disso, encontra também uma esposa para ele - Heloise Dubuc, uma viúva rica, bem mais velha do que Charles, que dedica pouco amor ao novo marido, mas muitas reclamações e repreensões.

Ação / Enredo / Resumo de Madame Bovary

      Madame Bovary começa quando Charles Bovary é ainda um menino, incapaz de se encaixar na sua nova escola e ridicularizado pelos seus novos colegas. Quando criança, e mais tarde quando se torna um jovem adulto, Charles é medíocre e enfadonho. Assim, reprova no seu primeiro exame de Medicina e mal consegue tornar-se um médico rural de segunda categoria. Sua mãe casa-o com uma viúva que morre logo depois, deixando a Charles muito menos dinheiro do que ele esperava.
Pouco depois apaixona-se por Emma, filha de um paciente seu, e os dois decidem unir-se pelo matrimónio. Após um casamento requintado, estabeleceram-se em Tostes, onde Charles possui o seu consultório, no entanto o matrimónio não corresponde às expectativas românticas de Emma. Desde que viveu num convento, ainda jovem, sonha com o amor e o casamento como solução para todos os seus problemas. Depois de assistir a um baile extravagante na casa de um nobre rico, ela começa a sonhar constantemente com uma vida mais sofisticada. Por outro lado, sente-se entediada e deprimida quando compara as suas fantasias à realidade monótona da vida na aldeia e, por fim, a sua apatia deixa-a doente. Quando Emma fica grávida, Charles decide mudar-se para uma cidade diferente na esperança de a esposa recuperar a sua saúde.
Na nova cidade de Yonville, os Bovary conhecem Homais, o farmacêutico da cidade, um fanfarrão pomposo que adora ouvir-se falar. Emma também conhece Leon, um escrivão que, como ela, está entediado com a vida rural e adora evadir-se dessa existência através dos romances que lê. Emma dá à luz a sua filha Berthe, mas a maternidade dececiona-a, pois desejava um filho, e continua desanimada. Entretanto, sentimentos românticos florescem entre Emma e Leon. No entanto, quando ela percebe que o rapaz a ama, sente-se culpada e dedica-se ao papel de uma esposa obediente. Leon cansa-se de esperar e, acreditando que nunca poderá possuí-la, parte para Patis para estudar Direito, partida essa que deixa Emma muito infeliz.
Algum tempo depois, numa feira agrícola, um vizinho rico chamado Rodolphe, que se sente atraído pela beleza de Emma, declara-lhe o seu amor, acabando por a seduzir. Deste modo, envolvem-se num caso amoroso. Emma é indiscreta nestes amores, e todos os habitantes da cidade coscuvilham sobre ela. Charles, porém, não suspeita de nada. A sua adoração pela esposa e a sua estupidez conjugam-se para o cegar relativamente às indiscrições dela. Por sua vez, a sua reputação profissional sofre um duro revés quando ele e Homais executam uma técnica cirúrgica experimental para tratar um homem de pés tortos chamado Hipólito e acabam por se ver forçados a chamar outro médico para amputar a perna. Enojada com a incompetência do marido, Emma lança-se ainda mais apaixonadamente no seu caso com Rodolphe. Ela pede dinheiro emprestado para lhe comprar presentes e sugere que fujam juntos e levem a pequena Berthe com eles. Logo, porém, o cansado e mundano Rodolphe ficou entediado com os afetos exigentes de Emma, pelo que recusa os projetos de fuga e acaba mesmo por a deixar. Com o coração destroçado, Emma adoece e quase morre.
Depois de a esposa recuperar, Charles vê-se a braços com problemas financeiros por ter de pedir dinheiro emprestado para saldar as dívidas de Emma e pagar o seu tratamento. Mesmo assim, decide levá-la à ópera na cidade vizinha de Rouen. Lá, encontram Leon. Este encontro reacende a velha chama romântica entre ambos, e desta vez os dois envolvem-se num caso de amor. Enquanto Emma continua a escapulir-se para Rouen para se encontrar com o amante, simultaneamente endivida-se casa vez mais com o agiota Lheureux, que lhe empresta somas consideráveis a taxas de juros exageradas. Além disso, o seu comportamento descuidado relativamente ao caso amoroso extraconjugal é cada vez maior. Como resultado, em várias ocasiões, conhecidos seus quase descobrem a sua infidelidade.
Com o tempo, Emma fica entediada com Leon. Não sabendo como o abandonar, torna-se cada vez mais exigente. Enquanto isso, as suas dívidas acumulam-se. Eventualmente, Lheureux ordena a apreensão da propriedade de Emma para compensar a dívida que ela acumulou. Com medo que Charles descubra, tenta freneticamente arrecadar o dinheiro de que precisa, apelando para Leon e todos os empresários da cidade. Em desespero, tenta mesmo prostituir-se, oferecendo-se para se envolver de novo com Rodolphe se ele lhe der o dinheiro de que ela precisa. Todavia, ele recusa e, levada ao desespero, Emma suicida-se com arsénico, morrendo numa agonia horrível.
Durante algum tempo, Charles idealiza a memória da esposa, até que encontra as cartas que Rodolphe e Leon lhe enviaram, e é forçado a confrontar-se com a verdade. O viúvo acaba por morrer sozinho no seu jardim, e Berthe é enviada para trabalhar numa fábrica de algodão.
 

terça-feira, 10 de novembro de 2020

Pronome

 1. Definição
 
Pronome é a palavra que, geralmente, substitui um nome ou um grupo nominal, evitando a repetição de elementos.

- A Miquelina teve uma filha. Ela é linda!
 
Pronome é uma palavra formada pelos elementos pro (em vez de) e nome, logo pronome significa em vez do nome.

 
• Com o pronome, recupera-se a ideia de palavras já referidas no texto, constituindo um importante elemento de coesão.

 
• Os pronomes constituem uma classe fechada de palavras.

 
• Os pronomes, substituindo grupos nominais nas frases, nunca ocorrem junto de um nome.

 
• Alguns pronomes podem também substituir:

a) Um grupo adjetival:

O Umbelino era alcoólico, mas deixou de o ser. [“o” = (ser) alcoólico]

b) Um grupo preposicional (com a funa função de complemento indireto):

O Ernesto ofereceu um telemóvel à namorada. Deu-lhe uma bela prenda. [“lhe” = à namorada]

c) Uma frase na sua totalidade:

Carlos Lopes foi campeão olímpico. Isso foi excelente.

 
 
2. Valor anafórico e catafórico do pronome
 
▪ Os pronomes, quando evitam as repetições, podem ter um valor anafórico, ou seja, retomam o antecedente que substituem, ou um valor catafórico, quando precedem os elementos para que remetem:

- O meu filho Eusébio, tive-o [anáfora] aos 26 anos. [Só com o que aparece antes de o se descodifica o significado deste pronome.]

- Ele [catáfora] entrou na sala a correr. “Bolinhas” era um cão brincalhão. [Só com o que aparece depois de ele se descodifica o significado deste pronome: Bolinhas…, cão…]

 
 
3. Subclasses
 
Os pronomes agrupam-se em seis subclasses: pronome pessoal, demonstrativo, possessivo, indefinido, relativo, interrogativo.

 

domingo, 8 de novembro de 2020

Hipálage

      A hipálage consiste na atribuição de uma particularidade que pertence a outra com a qual se relaciona, isto é, estamos perante a transferência, através de um adjetivo qualificativo, de características de uma pessoa para algo com o qual está relacionado.
Dito de forma mais simples, a hipálage é uma figura de estilo em que se transferem características humanas para as partes do corpo, para tecidos ou vestidos, para objetos, etc.
 
Exemplos:

. A tarde descia, pensativa e doce (quem estava pensativa não era a tarde, mas a pessoa que a observada);

. Carlinhos, arreganhando para Eusebiozinho um lábio feroz (o adjetivo feroz refere-se a Carlinhos, no entanto, gramaticalmente, serve de atributo ao lábio);

. cigarro pensativo;

. sobrancelhas meditativas;

. lábios devotos;

. mão pacificadora;

. braço concupiscente;

. braços pasmados;

. sala séria de tons castos;

. leito de ferro virginal;

. meias sonolentas;

. lenta humidade das paredes fatais do Ramalhete;

. chá respeitoso;

. peixe austero;

. as lojas loquazes dos barbeiros;

. saías ligeiras e ilegítimas;

. raspar espavorido dos fósforos;

. charuto preguiçoso;

. gesto risonho;

. pergunta tímida;

. rodar grave de uma carroça;

. grandes braços amigos.

 

Análise de "Pobre velha música"

O poema “Pobre velha música” é uma composição poética de Fernando Pessoa, sem data, publicada na revista “Athena” em dezembro de 1924.
À semelhança do que sucede noutros poemas do ortónimo, o poeta contrapõe o período da infância ao presente, considerando aquela como um “período dourado da sua existência”, o qual, porém, não regressará. No caso da composição poética em análise, é a “Pobre velha música” que simboliza esse período. Note-se, a título de curiosidade, que a mãe do poeta tocava piano, daí não ser de estranhar que esta forma de arte seja presença na sua obra. Aliás, Pessoa escreveu mesmo um poema que se refere, de forma explícita, à sua progenitora tocando o instrumento musical.
 
 
Assunto: ao ouvir a músicas, o sujeito poético recorda a sua infância, e, mesmo não tendo a certeza se foi feliz, solta toda a sua nostalgia presente ao rememorar esse período da sua vida.
 
 
Tema: a nostalgia da infância.
 
 
Estrutura interna
 
1.ª parte (1.ª estrofe) – Nostalgia do sujeito poético suscitada pela música.
 
2.ª parte (2.ª estrofe) – Recordação vaga e indefinida da infância.
 
3.ª estrofe (3.ª estrofe) – Desejo do sujeito poético de regresso ao passado, motivado pelo estímulo musical.
 
 
Desenvolvimento do tema
 
O sujeito poético é motivado por um estímulo sensorial auditivo que o emociona e desperta a sua nostalgia, visto que a música suscita em si recordações da sua infância. Embora seja um período feliz, traz ao «eu» uma grande tristeza e nostalgia, visto que está associado a uma idade perdida que é irrecuperável.
 
Esta temática – a nostalgia da infância – surge na poesia de Pessoa como uma fase da vida feliz, pela inconsciência, pela inocência de nada saber ou pensar, pela despreocupação, pela imaginação. No entanto, trata-se de um tempo impossível de recuperar, daí ser considerado um paraíso perdido.
 
A infância surge sempre em oposição ao presente, constituindo este um tempo negativo, enquanto aquele é recuperado pela memória como uma época de felicidade perdida.
 
Assim, neste poema, os dois tempos – presente e passado da infância – estão em equação: o sujeito poético, de olhar «parado» (no presente), chora quando ouve a música que escutava outrora.
 
A dupla adjetivação em posição pré-nominal do primeiro verso (“Pobre velha”) enfatiza os sentimentos de angústia e a nostalgia do sujeito poético. Subjetivamente, estes adjetivos mostram que a infância é um tempo longínquo e o «eu» lírico apresenta-se nostálgico relativamente às vivências desse tempo. Note-se que, neste passo do poema, está presente igualmente a personificação, visto que quem é «pobre» e «velho» é o sujeito poético que habitualmente ouvia aquela música e que, agora, tem consciência de que esse tempo nunca mais regressará. Daí o choro.
 
De facto, a recordação dessa música, embora de um período feliz da sua vida, aporta-lhe, no presente, grande tristeza, angústia, dor e nostalgia, pois está associada a uma época perdida, a um paraíso perdido, que nunca mais regressará, que é irrecuperável. A música é o elo de ligação entre o passado e o presente.
 
A segunda estrofe abre, precisamente, com a recordação do passado. De facto, o «eu» lembra-se de si enquanto criança que, supostamente, terá ouvido essa música, deixando no ar a dúvida se realmente a ouviu ou simplesmente a música o faz, agora, recordar-se da sua infância.
 
O sujeito poético recorda, de facto, o passado, mas quem, na realidade, ouviu a música foi ele, porém noutra idade, noutra fase da sua vida e com outros sentimentos. O «outro» era o «eu» enquanto criança e ele recorda-se de si próprio nesse período a escutá-la. Isto só vem confirmar a antítese passado / presente que percorre o texto.
 
Na última estrofe, o sujeito poético revela um desejo desesperado (“ânsia tão raiva” – v. 9) de regressar ao passado (“Quero aquele outrora!”). Esses sentimentos de raiva e angústia é acentuado pela exclamação. O sujeito poético afirma desconhecer se foi feliz na infância, no entanto deseja veementemente viver de novo esse período da sua vida (“Com que ânsia…”); todavia, reconhece que tal é impossível, o que gera a sua ira (“tão raiva”).
 
Segue-se uma interrogação retórica (“E eu era feliz?” – v. 11), através da qual o «eu» se questiona e destaca a dúvida acerca da felicidade vivida no tempo da infância, para a qual não tem resposta: “Não sei”.
 
Daqui o sujeito poético projeta-se num plano temporal que é impossível concretizar: ser criança e ser adulto, numa simbiose entre o passado e o presente. O «eu» lírico exprime o desejo de regressar ao passado, conotado com a felicidade que enraíza no tempo mítico de uma infância imaginada, mas questiona-se também se terá, efetivamente, vivido esse tempo de alegria, ou se esta será apenas produto da sua imaginação.
 
O paradoxo do verso 12 procura responder à dúvida: “Fui-o [feliz] outrora agora”. Apesar da incerteza de ter vivido uma infância feliz (“E eu era feliz?”) (devido à memória vaga desse tempo e, possivelmente, por essa felicidade ser apenas imaginada), o som da música tem o condão de o fazer feliz, no presente: “Fui-o outrora agora”. Da associação entre o «outrora» e o «agora», vivenciados em simultâneo, resulta a expressão da felicidade possível: a que permanece na memória e é presentificada através da música. Essa felicidade, portanto, acontece apenas no pensamento, no instante em que uma música motiva a memória do tempo da imaginação, da inocência e da inconsciência.
 
 
Síntese do poema

A nostalgia da infância é desencadeada pela audição da música (v. 1).

A música no passado é diferente da que recorda no presente (vv. 5-8) – a perceção de dois modos de ouvir.

O passado é lembrado de forma vaga / difusa e duvidosa (vv. 6, 11-12).

A felicidade na infância é construída no presente, através da memória, da recordação (vv. 10-12).

O passado e o presente fundem-se, sendo vividos em simultâneo (v. 12).

 
 
Retrato do sujeito poético

Ao longo de todo o poema, o sujeito poético revela grande dúvida e incerteza acerca das razões da sua emoção (“Não sei por que agrado” – v. 2) e da realidade / veracidade dessa felicidade na infância (“E eu era feliz? Não sei…” – v. 11).

Situado no presente, o «eu» deseja retornar à infância, o tempo da inocência, da inconsciência e da ausência da dor de pensar (vv. 9-10).

O sujeito poético sente-se triste e irritado por a infância ser um tempo perdido e irrecuperável (“Com que ânsia tão raiva / Quero aquele outrora!” – vv. 9-10).

O sujeito poético, de «olhar parado», chora, cheio de dor, sendo as suas lágrimas causadas pelo sentimento de perda inexorável e de infelicidade que o dominam no presente.

O sujeito poético sente saudade, angústia e nostalgia da infância, época que deseja recuperar: quando ouve a música, lembra-se do passado em que também a ouvia, e chora com saudades desse tempo.

Presentemente, revela abulia, inércia, perda da vontade, que se traduzem na dor de pensar (“Enche-se de lágrimas / Meu olhar parado.” – vv. 3-4).

O «eu» lírico sente uma permanente incapacidade de ser feliz (“E eu era feliz? Não sei”).

 
 
Estrutura formal

• Estrofes: 3 quadras.

• Rima:

- esquema rimático: ABCB

- versos brancos alternados com versos rimados cruzados

• Métrica: redondilha menor.

 
 
A temática da infância
 
A nostalgia da infância é um dos temas fundamentais de Fernando Pessoa ortónimo, partilhado por Álvaro de Campos.
Para Pessoa, a infância é um tempo passado irrecuperável perdido, o tempo longínquo em que era feliz sem saber que o era, o tempo em que ainda não tinha iniciado a procura de si mesmo e, por isso, não se tinha fragmentado.
Em Pessoa, a passagem da infância à idade adulta não é um processo evolutivo e tranquilamente natural; pelo contrário, é um processo de rutura. Passado e presente não se completam, antes se opõem; não há uma continuidade entre eles. Aquele é um tempo de felicidade, alegria inconsciente, enquanto o presente é nostalgia, ânsia, desconhecimento de si mesmo e do futuro.
A infância funciona como uma espécie de refúgio, tendo como motivações a insatisfação com o presente e a incapacidade de o viver em plenitude.
Por outro lado, a infância é sentida como uma cadeia de instantes que se vão sucedendo, sem qualquer relação entre eles, provocando no «eu» poético a sensação de fragmentação e de ausência de identidade.
Estes dados geram em si uma visão bastante negativa e pessimista da existência, que o futuro tenderá a aprofundar, visto que é o resultado de sucessivos presentes carregados de negatividade.
 

sábado, 7 de novembro de 2020

Zôjô-ji Temple in Shiba

Kawase Hasui (1925)

Análise de "Ó sino da minha aldeia"

      Este poema foi publicado, inicialmente, em 1914, no número único da revista “A Renascença”, e, em 1925, no terceiro número de “Athena”, datado de 1924, com ligeiras diferenças de pontuação e ortografia entre ambas as publicações. O manuscrito mais antigo do texto integral do poema data de 8 de abril de 1911, mas, na realidade, nasceu um pouco antes.
O poema corresponde ao primeiro de uma série de dois poemas antecedidos pelo título “Impressões do Crepúsculo”, com os quais Pessoa estreou a sua publicação ortónima em poesia portuguesa após o seu retorno da África do Sul.
 
Em 11 de dezembro de 1931, Fernando Pessoa escreveu uma carta a João Gaspar Simões onde, em dado passo, afirma o seguinte: “Nunca senti saudades da infância; nunca senti, em verdade, saudades de nada. Sou, por índole, e no sentido direto da palavra, futurista. Não sei ter pessimismo, nem olhar para trás”. O poeta admite ter saudades apenas das pessoas a quem amou e que queria ainda vivas, mas no dia de hoje, com as idades que teriam agora. Mais à frente acrescenta que as saudades expressas nas suas obras eram “atitudes literárias”, sentidas intensamente por instinto dramático, tendo dado como exemplo deste fenómeno o poema “Ó sino da minha aldeia”.
Em rigor, este poema, longe de ser inspirado na infância de Pessoa, tem a sua raiz em composições dos poetas novecentistas Luís Palmeirim e João de Lemos. De facto, Pessoa inspirou-se nesses poetas menores portugueses. Uma versão inicial do poema, constituída então apenas pelo primeiro verso e pela última estrofe, tem uma dedicatória: “A João de Lemos, mas escrito por Fernando Pessoa”. Vários poemas de Lemos e Palmeirim denunciam essa influência exercida junto do autor de Mensagem na composição de “Ó sino da minha aldeia”.
 
 
Tema: a nostalgia da infância.
 
 
Assunto: o sujeito poético, ser errante, recorda o passado, tempo de felicidade, como um bem perdido e irreparável, encontrando apenas conforto e sentido para a vida no período da infância.
 
 
Estrutura interna
 
1.ª parte (1.ª quadra): Apresentação do tema do poema.
 
2.ª parte (2.ª e 3.ª quadras): Descrição dos efeitos do toque do sino no sujeito poético.
 
3.ª parte (4.ª quadra): Conclusão do poema – associação do som do sino à saudade e ao passado do sujeito poético.
 
 
Desenvolvimento do tema
 
▪ O sujeito dirige-se, no primeiro verso, ao sino, através de uma apóstrofe e da sua personificação (dado que lhe confidencia os seus sentimentos), interpelando-o. Ao longo do poema, diversos elementos deíticos sugerem a existência de um diálogo entre ambos: os pronomes pessoais de 1.ª pessoa (“me”, “mim”), os determinantes possessivos de 2.ª pessoa (“tua”, “teu”) e as formas verbais na 2.ª pessoa (“tanjas”, “soas”).
 
▪ A presença do nome «aldeia» logo no verso 1 é bastante significativa. De facto, ele poderá simbolizar o espaço da infância, um espaço de intimidade, metáfora da interioridade do sujeito poético.
 
▪ Note-se a presença da hipálage nos dois versos iniciais (“Ó sino da minha aldeia / Dolente […]”), visto que o adjetivo «dolente» se refere ao sujeito poético, que, de facto, sofre, e não ao sino. Este recurso expressivo sugere a intimidade de uma memória que se reativa e que está na origem da saudade.
 
▪ O toque do sino, como se verá na terceira e na quarta estrofes, tem efeitos no sujeito poético, não lhe sendo de forma alguma indiferente. Pelo contrário, atinge-o no âmago: “Cada tua badalada / Soa dentro da minha alma.”. O sino toca dentro da alma do sujeito poético, lembra-o de memórias de infância. Quer isto dizer que cada badalada desperta no «eu» reminiscências e nostalgia de um passado distante – real ou imaginário: “Sinto mais longe o passado, / Sinto a saudade mais perto”.
 
▪ À medida que o sino toca, acentua-se essa nostalgia do passado e a primeira pancada tem o som de repetida, visto que soa na alma do sujeito poético (vv. 3-4). A aldeia é uma metáfora da interioridade do «eu»: “Cada tua badalada [espaço exterior] / Soa dentro da minha alma” [espaço interior] – traduz uma interação entre a alma e o tempo, que metaforicamente sugere a união do espaço exterior com o interior.
 
▪ O toque do sino estimula a memória do sujeito poético (v. 4), pois fá-lo recordar a sua infância, o passado distante que se associa a um sonho (vv. 11-12). É um eco do passado que, longe de alegrar o «eu», suscita nele a saudade da infância, uma época dourada mas irrecuperável (vv. 15-16). Os adjetivos “dolente” e “calma” (v. 2), que caracterizam respetivamente o toque do sino e a tarde em que o sujeito o escuta, remetem para a durabilidade do som, que não se apaga da sua memória.
 
▪ Na segunda estrofe, o sujeito poético mostra o efeito que o sino, símbolo da dolorosa passagem do tempo, tem em si. Assim, começa por afirmar que as memórias de um passado saudoso assolam a sua alma tão lentamente como a tristeza da vida (versos 5 e 6), comparando, deste modo, a lentidão do soar do sino com o seu próprio estado de espírito caracterizado pela nostalgia. Além disso, à medida que o sino toca, acentua-se no sujeito poético a saudade de tempos passados e “[…] a primeira pancada / Tem o som de repetida”, pois soa tanto no espaço exterior como no interior, isto é, na alma do «eu». Esse seu ecoar instaura nele uma certa melancolia e tristeza.
 
▪ A comparação dos versos 5 e 6 [e a elipse (omissão do adjetivo «lento»)] entre o soar do sino e a caracterização da vida sugere que ambos se pautam pela lentidão, o que indiciará que o tempo pode custar a passar para o sujeito poético, associando-se, assim, à nostalgia, à tristeza e à melancolia.
 
▪ O poeta identifica o toque do sino com o sujeito poético. De facto, a caracterização que é feita daquele corresponde ao seu estado de espírito, daí a tal identificação entre ambos. Assim, tal como o toque do sino, o sujeito lírico sente-se dolente e triste. Por outro lado, o som do toque do sino é-lhe tão familiar que “a primeira pancada / Tem um som de repetida”, ou seja, a primeira pancada tem o som de repetida porque o «eu» já a tinha ouvido no passado. Ao escutá-la, lembra-se do som que ouvia na sua infância, por isso era como se fosse repetida.
 
▪ Na 3.ª estrofe, o sujeito poético compara o sino a um sonho: “És para mim como um sonho”. O toque do sino remete o sujeito poético para um passado distante, o qual não voltará, fazendo, assim, com que essas memórias pareçam um sonho, despertando nele a nostalgia de uma infância perdida; o toque é como um sonho, porque transporta o «eu» para o passado, fazendo parecer aquilo um sonho. O toque ele não ouve não é o físico, mas o do seu sonho.
 
▪ No verso 3 da terceira estrofe, o sujeito poético revela algum inconformismo, devido à constante procura do «eu». O adjetivo «errante» significa sem destino, sem esperança, remete para alguém que vagueia sem rumo ou sem sentido, reforçando a ideia de que só na infância encontra o conforto e o sentido para a vida. Neste caso, o sujeito poético considera-se errante, pois vive numa constante procura do «eu», sofrendo assim de solidão e ansiedade, que deixa transparecer o conformismo e a incapacidade de se encontrar e aceitar algo, sendo feliz.
 
▪ Na 4.ª e última estrofe, o sujeito poético recorre à anáfora e à antítese (bem como à aliteração em /s/) “Sinto mais longe o passado, / Sinto a saudade mais perto”, ganhando consciência de que a inconsciência e a felicidade que experimentou na infância não poderão ser revividas.
 
▪ Isto gera a saudade e a nostalgia de um tempo passado perdido, do único momento de felicidade plena: a infância. A anáfora da forma verbal «Sinto» (vv. 15-16) concorre para enfatizar a frustração e a nostalgia do sujeito poético.
 
 
Retrato do sujeito poético
 
O estado de espírito do sujeito poético é caracterizado pela solidão, pela ansiedade e pela nostalgia do passado da infância, traços sugeridos pelos adjetivos «dolente», «lento», «triste» e «distante», pelos advérbios «longe» e «perto», pelo nome «saudade», pelo campo lexical da tristeza («dolente», «triste», «errante») e da saudade («sonho», «distante», «passado»). Algumas destas características são comuns ao sino, que é dolente, lento, triste e vibrante.
 
 
Formalmente, o poema é constituído por quatro quadras em redondilha maior. O tempo verbal predominante é o presente do indicativo (o tempo encontra-se fragmentado e o presente remete para a vivência passiva do momento, pela recordação saudosista do passado), na 1.ª pessoa (3.ª estrofe, vv. 1-4), que traduz a identificação do poeta com o sujeito poético.
 

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Análise de "Quer'eu en maneira de proençal"

Género textual: cantiga de amor composição cujo sujeito poético é masculino (o trovador), que faz o panegírico (o elogio) da “senhor”, uma dama geralmente casada.
 
 
Resumo
 
O trovador declara que vai fazer «agora» uma cantiga de amor à maneira dos provençais, dando a entender que, até então, tinha composto muitas cantigas de amigo, sendo que decidiu produzir, no presente, um cantar à maneira dos poetas provençais.
Assim, elogia muito a sua «senhor», à qual não falta todo o «valor ou formosura ou bondade»; mais do que isso, Deus fê-la tão «completa de virtudes» que é mais valiosa do que «todas as do mundo».
Deste modo, segue os lugares-comuns da época e do género, pelo que, na segunda estrofe, prossegue o panegírico da dama: é muito sociável, quando é precisos sê-lo, e muita sensata/ajuizada; em suma, é a melhor de todas (“quando non quis que lh’outra foss’igual”).
Na terceira estrofe, a «senhor» é apresentada como uma projeção platónica do Bem, do Belo e da Virtude: até a afalar e a rir sobreleva as demais damas; além disso, é leal. O trovador conclui que desconhece quem possa ter eloquência bastante para falar suficientemente das suas qualidades, até porque, além daquilo que é só «ben», não há nada mais que dela possa ser dito.
 
 
Assunto: o trovador manifesta o seu desejo de fazer agora uma cantiga de amor à maneira provençal, onde possa louvar a sua senhora, a quem não falta virtude nenhuma, pois Deus a criou mais dotada de qualidades (físicas e sobretudo morais) que todas as mulheres do mundo.
 
 
Tema: o panegírico da mulher       ® ideal
(elogio)                         ® inacessível
® perfeita
® divinizada (deusa)
 
 
Estrutura interna
 
1.ª parte (1.ª cobla): o sujeito poético revela a sua intenção / o seu objetivo («fazer agora um cantar d’amor»).

 
NOTA:
 
1) O verso 1 denota a influência dos cantares da Provença na lírica galaico-portuguesa. A influência dessa estética encontra-se nos seguintes aspetos:
® o uso da mestria;
® a idealização da mulher como a melhor de todas;
® a enumeração das qualidades da dama;
® o amor cortês.
 
 
2.ª parte (2.ª-3.ª coblas) - Caracterização da Senhora (objeto):
 
física:
- formosa: «fremusura»
- bela: «beldade»
- sorriso bonito: «riir melhor / que outra mulher»
 
psicológica e moral:
- bondosa / generosa: «bondade»
- sábia: «sabedor de todo ben»
- perfeita: «comprida de ben»
- sensata / ajuizada: «bon sem»
- leal
 
social:
- honrada / possuidora de grande valor: «prez»
- «de mui gran valor»
- possuidora de boas maneiras / muito sociável: «mui comunal»
- «falar mui ben e riir melhor»
 
         Em síntese, estamos perante um retrato essencialmente psicológico: todas as características se orientam para a caracterização da alma, do espírito da senhora; que aponta para o retrato da mulher idealizada.
 
         Por outro lado, e atendendo à cantiga "Proençaes soen mui ben trobar", na qual D. Dinis denuncia o fingimento dos trovadores provençais, relacionando-a com esta cantiga, concluímos que ele também sabe trovar à maneira provençal e fá-lo de forma apreciável, demonstrando conhecer bem a técnica provençal e os seus artifícios poéticos, chegando mesmo a socorrer-se de termos provençais ("prez"). De facto, esta cantiga é quase um manifesto poético dos cantares de amor provençais. O próprio D. Dinis não deixa lugar a dúvidas ao afirmar logo nos versos iniciais:
"Quer' eu en maneira de proençal
fazer agora um cantar d' amor".
 
 
Conceção do amor e da mulher
 
         A mulher das cantigas de amor é uma mulher criada pela imaginação do poeta, distante da vida e da realidade, inacessível, a mulher-deusa. Ela é perfeita a todos os níveis, o que a coloca num plano superior, tornando-se inacessível ao sujeito poético, o que lhe causa sofrimento.
         Pelo contrário, a donzela das cantigas de amigo é uma rapariga real, simples, popular, do campo, movida por um amor real e sincero.
         Ao invés, na poesia de influência provençal, o que há é um amor-adoração, ao sabor do idealismo platónico. Podemos classificá-lo como artificial ou artificioso, pois ele é apenas a força ideal que alimenta a inspiração do poeta.
         A mulher retratada nesta cantiga é idealizada, dentro de uma visão platónica do amor. É uma mulher vista de longe, construída pela imaginação do poeta, é uma deusa intocável a quem o trovador rende a sua homenagem, a sua vassalagem. A sua beleza e o bem que possui são, de acordo com a teoria platónica, uma ideia pura. O amor cortês apresenta-se como ideal, como aspiração que não tende à relação sexual, mas surge como estado de espírito que deve ser alimentado.
 
 
Relação entre o sujeito poético e a mulher (amada)
 
Moldada pela relação feudal entre senhor/suserano e vassalo, na cantiga de amor há um grande distanciamento entre o sujeito poético / trovador e a mulher amada. Esta é a suserana e o trovador é o vassalo, o qual celebra as qualidades inexcedíveis da senhora, com toda a devoção e lealdade, segundo as regras do código do amor cortês.
 
 
Recursos poético-estilísticos
 
         1. Nível fónico
 
. Estrofes: três coplas uníssonas, isométricas, constituídas por 7 versos.
. Rima  - abbacca;
- emparelhada e interpolada;
- consoante;
- pobre ("amor"/"senhor") e rica ("mal"/"leal";
- aguda ou masculina.
. Metro: versos decassílabos agudos.
. Ritmo binário.
. Transporte: vv. 1-2, 6-7, 8-9, 18-19, 19-20.
. Refrão: esta cantiga não possui refrão, como sucedia com muitas de amigo, porém os dois versos finais de cada estrofe, nomeadamente das duas primeiras, funcionam como se o fossem pela posição e pela repetição de ideias. De facto, esses versos servem para realçar o quão perfeita e ímpar é esta mulher.
 
 
         2. Nível morfossintático
 
. Adjetivação (vv. 6, 9, 11, 18): estão na base do retrato da senhora e são essencialmente de ordem psicológica, pois o objetivo do trovador é fazer realçar as características morais e psicológicas da Senhora.
. Nomes:
- proençal: determina a origem e influência em Portugal das cantigas de amor;
- Deus: caracteriza a mulher como ideal e perfeita, pois todas as suas qualidades têm origem em Deus;
- ben: significa que a mulher é um ideal, que possui as qualidades supremas concedidas a um ser.
. Advérbio agora: pressupõe um passado poético de D. Dinis, que é cantiga de amigo, género que o rei-poeta também cultivou.
. Equilíbrio entre a coordenação e a subordinação: equilíbrio entre a expressão de sentimentos e o tom narrativo.
. Verbos:
® pretérito perfeito: a caracterização da Senhora, que recebeu de Deus só qualidades;
® presente: a intenção de fazer uma cantiga de amor;
® futuro: o tema da cantiga ® louvar a Senhora.
. Orações causais, temporais e consecutivas: indiciam um maior cuidado na elaboração do discurso; as orações subordinadas causais das segunda e terceira estrofes estabelecem um nexo de causalidade em relação à primeira estrofe, pois aquelas coblas funcionam como justificação do propósito da cantiga.
. Conjunção subordinativa «ca»: esta cantiga de amor, à semelhança de outras, apresenta inicialmente uma ideia que tem de ser justificada no resto da composição. Neste caso, o trovador afirma que a mulher que vai louvar é única e termina mesmo a primeira cobla constatando que Deus criou uma mulher perfeita que «mais que todas las do mundo val». A estrofe seguinte (bem como a terceira) inicia-se com a conjunção subordinativa causal «ca» (v. 8), que introduz a “listagem” das qualidades da «senhor» que comprovam a afirmação final da primeira cobla. A progressão do texto nas cantigas de amor segue frequentemente esta linha de desenvolvimento.
. Linguagem embutida de provençalismos: sen (senso), prez, comprida de ben, loor.
. Polissíndeto: explicita o entusiasmo e o deslumbramento do sujeito lírico, bem como destaca, por acumulação, o conjunto de qualidades da mulher amada.
. Poliptoto: o jogo com as formas do verbo "fazer".
. Sinonímia: «fremosura» / «beldade»; «comprida de ben» / «sabedor de todo ben e de mui gran valor», etc.
 
 
         3. Nível semântico
 
. Hipérboles: o sujeito exalta a sua "dona", faz o seu panegírico, da mulher que excede todas as outras: "mais que todas no mundo val"; "ca non há, trálo seu ben al", “quando non quis que lh’outra foss’igual” ninguém a excede nas suas qualidades; nenhuma se lhe compara; ou seja, a dama é colocada num plano de superioridade relativamente ao trovador.
. Comparações: encarecem e superlativam a mulher, louvando-a, colocando-a num pedestal onde se revela superior às outras "tanto a fez Deus comprida de bem / que mais que todas las do mundo val"; "e rir melhor / que outra mulher".
 
 
Classificação
 
1. Cantiga de amor: composição poética de carácter lírico, cujo emissor é um trovador que exprime os seus sentimentos amorosos em relação a uma dama frequentemente designada por "mha senhor".
         O poeta elogia e louva as qualidades invulgares e singulares da mulher amada a nível físico, moral, psicológico e social, de forma hiperbólica, seguindo o modelo provençal.
 
1.1. Formal:
- cantiga de mestria (= sem refrão);
- cantiga de atafinda.
 
         A Provença, pelo seu clima ameno, favorece a caça e as cruzadas, o que faz com que o nobre passe muito tempo fora do castelo. É uma sociedade matriarcal: a castelã é que tinha a seu cargo o controle político, social e económico; é a senhora no seu feudo. Daí ser natural que os trovadores procurem conquistar benefícios e benesses da "senhor".
         O trovador acaba por transpor para o plano amoroso uma situação do plano social:
 
 
         As cantigas de amor tratam sempre o tema do amor em duas vertentes:
- o trovador exprime o seu amor arrebatador, mas sempre de forma espiritualizada, ainda que sofra da coita de amor;
- o elogio da mulher amada.
         Nestas cantigas, o trovador dirige-se à "senhor" numa atitude de vassalagem e subserviência, rendendo-lhe o culto que o "serviço amoroso" lhe impunha. Este serviço amoroso orientava-se por um código rígido de comportamento ético: as regras do amor cortês, que vêm na linha da poética da "fin' amors", recebidas da Provença.
         Assim, e de acordo com este código:
* o trovador teria de mencionar comedidamente o seu sentimento (mesura), a fim de não incorrer no desagrado (sanha) da mulher amada;
* o trovador teria que ocultar o nome dela ou recorrer a um pseudónimo (senha);
* o trovador tinha que prestar à amada uma vassalagem que apresentava 4 fases:
® fenhedor: o trovador limitava-se a suspirar pelo amor da sua dama;
® precador: o trovador ousava declarar-se;
® entendedor: o trovador já era ouvido pela dona;
® drudo: o trovador era amante.
 

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