● Após a boda, plena de cantorias e alegria,
os recém-casados ficam sozinhos e Inês começa a lavrar e a cantar de felicidade.
Ela, que agora se julga livre, está tão feliz que retoma espontaneamente os
bordados que antes lhe causavam tanto enfado.
● A cantiga (“Si no os hubiera mirado / no
penara / pero tan pouco os mirara.”) prenuncia o seu casamento: o «eu»
manifesta a dor provocada pela relação com o ser amado (“penara”), o que sugere
que o casamento de Inês será infeliz.
● Brás da Mata, que até então se apresentara
como um homem galante e respeitador, revela-se um tirano autoritário, impondo à
esposa um conjunto de interdições:
→
proíbe Inês de cantar (“Vós cantais Inês Pereira / […] que esta seja a
derradeira”);
→
ordena-lhe que se cale (“Será bem que vos caleis”);
→ proíbe-a
de lhe responder, devendo acatar tudo quanto ele disser sem retorquir (“E mais
sereis avisada / que não me respondais nada”);
→
proíbe-a de conversar com quem quer que seja (“Vós não haveis de falar / com
homem nem molher que seja”);
→
proíbe-a de sair de casa, incluindo ir à igreja (“nem somente ir à igreja”);
→
impede-a de estar à janela (“Já vos preguei as janelas, / por que vos não
ponhais nelas”).
Em suma, Inês ficará fechada em casa, «como freira
d’Odivelas». Esta comparação mostra como o Escudeiro é um tirano que
manterá Inês presa na sua residência.
● Comparando este passo da peça com a vida da
jovem enquanto solteira, poderemos concluir que a sua vida de casa é pior do
que nessa altura, visto que o marido se revela mais autoritário e repressivo do
que a Mãe, trancando Inês e não lhe dando hipótese sequer de dizer o que pensa.
● Como se pode justificar esta mudança de
atitude do Escudeiro? Se recuarmos até ao momento em que Brás da Mata surge em
cena pela primeira vez, recordaremos que ele desconfiava da seriedade de Inês,
por isso é «natural» que, agora, a prenda em casa e a vigie, após o casamento.
Por outro lado, como sabemos, o Escudeiro apenas escondeu, momentaneamente, o
seu verdadeiro caráter, que nós já conhecíamos a partir dos diálogos com o
Moço, para conquistar Inês. Nessas conversas, Brás da Mata mostrara um
comportamento violento e agressivo (“Faria bem de ta quebrar / na cabeça, bem
migada”) e um caráter autoritário que agora de manifesta (“homem sesudo / traz
a mulher sopeada”).
● Qual é a reação de Inês à postura do
Escudeiro? A jovem mostra-se surpreendida, não compreendendo a razão das
interdições a que é sujeita (“Que pecado foi o meu? / Porque me dais tal
prisão?”). Inês começa a perceber que se iludiu e cometeu um erro ao casar com
Brás da Mata, no entanto manifesta-se submissa: “Bofé, senhor meu marido, / se
vós disso sois servido, / bem o posso eu escusar”. Ela é repreendida pro fazer
aquilo que em casa da mãe faria sem restrições: cantar.
● Como justifica à esposa o Escudeiro
o seu comportamento? A ironia dos versos “Vós buscastes discrição, / que
culpa vos tenho eu?” mostra a Inês que foi ela quem quis um homem como ele, o
que significa que a jovem é a única responsável pelas consequências da sua
escolha. Ironicamente, acrescenta que está preocupado com Inês e que apenas a
quer proteger: “Pode ser maior aviso, / maior discrição e siso / que guardar eu
meu tesouro?”.
● Por outro lado, as interrogações retóricas
e as metáforas (“meu tesouro” e “meu ouro”) permitem ao Escudeiro mostrar
o quão preciosa a esposa é para ele e como a quer proteger (o seu bem maior) da
cobiça alheia.
● Em suma, a vida de casada de Inês caracteriza-se
pela reclusão em casa, pela ausência de contacto com o exterior e com outras pessoas,
pela absoluta submissão aos ditames do marido (“Vós não haveis de mandar / em
casa somente um pelo. / Se eu disser isto é novelo / havei-lo de confirmar.”),
pelo medo dele (“E mais quando eu vier / de fora haveis de tremer”) e, como se
verá alguns versos adiante, pela entrega ao trabalho.
● De seguida, o Escudeiro comunica ao Moço a
sua decisão de partir para as “Partes d’Além”, isto é, para o Norte de África
(Marrocos), para guerrear e fazer-se cavaleiro.
● Antes de partir, incumbe o Moço de uma
missão: na sua ausência, vigiará Inês e o seu comportamento, mantê-la-á fechada
em casa e assegurar-se-á de que as suas ordens serão cumpridas: “olha por amor
de mi / o que faz tua senhora / fechá-la-ás sempre de fora.”. Relativamente a
Inês, permanecerá encerrada em casa a lavrar.
● No diálogo que se segue, o Moço queixa-se
que não tem recursos para se sustentar, porque Brás da Mata continua pobre.
● O Escudeiro incentiva, por isso, o Moço a
roubar, indo “por essas vinhas”, a matar a fome com “rabisco”, nas “figueiras”,
comendo favas e “túbaras da terra”. Estes conselhos comprovam, novamente, a
falta de valores e de princípios do Escudeiro, que são ridicularizados, através
da ironia, pelo seu criado.
● Retrato de Brás
da Mata
Após o casamento com Inês, o
Escudeiro mostra o seu verdadeiro caráter:
▪
cruel
▪
autoritário
▪
agressivo
▪
opressivo e tirânico, pois não permite que Inês
→
cante
→ lhe
responda
→
fale com alguém
→
saia de casa em qualquer circunstância
→
mande em casa “somente um pelo”
→ o
contrarie, tendo de concordar sempre com o que ele disser
→
ordena ao Moço que vigie constantemente Inês e a mantenha sempre fechada em
casa
▪
ambicioso: parte para Marrocos para se fazer cavaleiro na guerra;
▪
pobre:
→ não
deixa dinheiro ao Moço para se governar;
→
aconselha-o a alimentar-se percorrendo as vinhas, comendo figos, favas e
cogumelos.
É de realçar o contraste entre o
amavio das palavras do Escudeiro enquanto pretendente e o seu comportamento
agressivamente machista de casado. O fingimento e as mentiras acabaram e veio à
tona o verdadeiro caráter de Brás da Mata.
Por outro lado, a decisão que o
Escudeiro toma de ir para o Norte de África parece resultar de um duplo
equívoco:
→
Inês esperava do casamento uma intensa vida social e vê-se sujeita à situação
inicial de clausura, dedicada às tarefas caseiras (“vós lavrai e ficar per i”);
→ o Escudeiro,
defraudado na expectativa de colmatar pelo casamento a sua crónica penúria,
vê-se obrigado a procurar na guerra um meio de subsistência ou, quiçá, de
promoção social.
● Cómico de
situação
A situação que se desenrola neste
passo da farsa propicia o cómico em torna da figura de Inês, que vê o seu sonho
de vida desfazer-se. De facto, tudo lhe sai ao contrário e ela apenas se
iludiu: a jovem que quis ascender socialmente, desafiando as convenções da
época, foi castigada, pois não soube contentar-se com o seu estado.
● Dimensão satírica do diálogo
O diálogo entre Brás da Mata e o Moço
revela, novamente, a pobreza e a miséria da baixa nobreza decadente
(representada pelo Escudeiro), que vive de aparências, e a exploração dos
serviçais (Moço), que são enganados e explorados e passam fome por não
receberem a remuneração devida. As soluções sucessivas que Brás da Mata
apresenta para acudir à fome do seu serviçal acentuam a sátira e a comicidade,
pela referência a alimentos ridículos e, por vezes, roubados. Por outro lado,
esta cena revela ainda a insensibilidade do Escudeiro face a quem o serviu
sempre, apesar das condições degradantes que lhe proporcionou.
● A condição da mulher medieval
A partida de Brás da Mata para o
Norte de África, deixando o Moço a vigiar Inês, mostra como, na época de Gil
Vicente, a mulher era totalmente submissa ao marido, e, na sua ausência, ela
estava privada de ter vida própria. O seu estatuto social é tão baixo que até o
criado tem poder sobre ela.
● Recursos estilísticos:
.
Comparação: “Estareis aqui encerrada / Nesta casa tão fechada, /
Como freira d’Odivelas.” (vv. 801-803) ®
tirânico, o Escudeiro manterá Inês encerrada em casa, como numa prisão.
. Metáforas:
‑
“Que guardar o meu tesouro?
Não
sois vós, mulher, meu ouro...” (vv. 810-811) ®
Inês queria um marido discreto, com siso. Ora, haverá homem mais “avisado” do
que aquele que procura guardar a sua mulher, o bem mais precioso, da cobiça
alheia?
. Ironia do
Moço:
‑ “Se vós tivésseis dinheiro, ü
Não seria senão bem.” (vv. 824-825) ï
‑ “Co dinheiro que leixais ï
Não comerei eu galinhas...” (vv. 831-832) ý denuncia a
penúria do Escu-
‑ “E convidarei minha prima.” (v. 839) ï
deiro
‑ “I-vos vós, embora, à guerra, ï
Qu’eu vos guardarei oitavas.” (vv. 847-848) þ